Aos poucos, os estilistas que explodiram nos anos 1970/80 vão saindo de cena. A semana começa menos colorida com o anúncio da morte neste domingo (4/10) de Kenzo Takada (1939-2020), em Neuilly-sur-Seine, causada pela covid. Com o japonês, que estourou em 1970 na estreia de sua marca homônima, toda uma geração de criadores vai desaparecendo da face da terra, como acontece regularmente com o star system no cinema, quando talentos vão se sucedendo. Desde 2008, o mundinho da moda vem sofrendo baques: desde este ano com Yves Saint-Laurent, a moda vai perdendo ininterruptamente aqueles baluartes que viriam por codificar a era do consumo, elevando a passarela de espetáculo para poucos abastados ou profissionais do métier à condição de expressão maior do showbizz para as massas, em proporções até então inimagináveis e em pé de igualdade com as apresentações de pop stars, grandes eventos esportivos e premiações das telas. Em 1978, Kenzo já demonstrava sua visão de palco: desfilou coleção numa tenda de circo, com direito a ele mesmo entrando, ao final, num elefante. Marajá da elegância? Nada disso! Antenadíssimo. E bamba das cores e prints descoordenados, em composições bombásticas, o que lhe garantiu seu espaço. Agora, o designer se reúne a outras lendas das agulhas que vimos partir nesses últimos anos: além de YSL, Sonia Rykiel (2016), Azzedine Aläia (2017) e Karl Lagerfeld (2019).

Kenzo, duas fases: na sua fase final, de designer de interiores, a qual se dedicou nos últimos 20 anos… (Reprodução)

… E quando rapidamente estourou e Paris, no início dos anos 1970. Com pouco dinheiro, o estilista japonês radicado em Paris comprava sobras de tecidos em saldões para fazer patchworks levados da breca (Reprodução)

Com suas camisas coloridíssimas, echarpes idem, tudo com estampinhas étnicas ou florais que, em composês cromáticos, serviam de base para blazers lisos em veludo ou microfibra, em gamas vivas, bottoms fluidos, jeans e boa alfaiataria, Kenzo preconizou o multiculturalismo ao trazer ao ocidente a liberdade de cores afinadinha com referências colhidas ao redor do planeta. Ele consolidou o desejo de viajar pelo mundo através da moda, elevando à décima potência aquilo que Saint Laurent já vinha fazendo, mas com a expertise de quem veio não de Paris, muito menos logo dali, em algum ponto próximo do Mediterrâneo, mas do outro lado do globo para conquistar a Cidade-Luz. O designer pesquisava padronagens e cartelas de cores com afinco, criando para elas (e depois também para eles) peças que despertavam a vontade de usar, num patamar de bem-estar quase incompreensível para os ocidentais, que haviam perdido há 200 anos o gosto pelas misturas de cores no guardarroupa, no limiar da Revolução Industrial, quando se institucionalizou a sobriedade como atributo a ser perseguido na modernidade.

Mélange de prints: Kenzo manteve nos dark eighties o apreço pelo colorido esfuziante dos seventies. O resultado? Virou estilo! (Reprodução)

Na tessitura genética da sua Jungle Jap, Kenzo fez questão de manter as estampas étnicas e florais em misturinhas que ele sabia fazer como ninguém! (Reprodução)

Com uma pitada intelectual, seu estilo bon chic, bon genre carregava no tempero planetário. Curry fashion. Os franceses, que haviam conquistado boa parte dos continentes por séculos, traziam na alma o trauma de terem perdido quase todas as possessões. Viram na criação de Kenzo a possibilidade de recuperar o gostinho de quando ainda controlavam muitos territórios além-mar, do Suriname ao Vietnã, passando por Tunísia e Argélia. A psicologia da moda deu liga. O estilista nascido em Himeji acabaria na contramão do minimalismo nipônico dos seus colegas – Yohji Yamamoto, Issey Miyake e Rei Kawakubo, da Comme de Garçons –, em cujas coleções predominava o preto e branco, ao explorar essas outras potências até o final, quando vendeu a grife para o grupo LVMH em 1999. A brand continuou com seu DNA e ele passou a se dedicar à decoração. Vida que segue.

A primeira loja de Kenzo Takada, na Galerie Vivienne, acabaria virando romaria chique de gente que procurava um estilo descolado em flerte com o planeta. Amantes fashionistas da África e Ásia encontrariam ali um porto seguro para fugir da mesmice ocidental (Reprodução)

A coleção da Kenzo, sob a batuta de Humberto Leon e Carol Lim em 2013, resgatava a África que sempre fascinou o fundador da marca (Reprodução)

Como seus pares de fornada, Kenzo fica na história da moda do século 20 por unir a genialidade à sorte de ter aparecido num bom momento. Se beneficiou da visibilidade que a passarela ganhou, a partir dos oitenta, como dianteira da mola propulsora do consumo, atingindo a pole position enquanto engrenagem máxima da identidade, afinadíssima com aquilo que, logo depois, ganharia o jargão de life-style. Foi via de mão dupla: a popularidade da grande moda fez a fama dos super estilistas e eles, por sua vez, a consagraram definitivamente com o seu trabalho, impulsionando o desejo de consumo de tal forma que, na década seguinte, todo mundo queria ser fashion designer e essa formação acadêmica explodiria. Ao sair do gueto das altas rodas, a moda pontificou no imaginário popular como arte & expressão, catapultando estilistas como Kenzo ao pódio das celebridades, pelo menos até a expansão do consumo começar a minguar, a partir da recessão causada pelo estouro da bolha imobiliária no final dos anos 2000. Por isso, a moda perde espaço, mas o legado fica. E o designer será lembrado como aquele que, na essência, antecipou a globalização, abrindo espaço para outros surgidos vinte e cinco anos depois, tipo John Galliano.

Em 2016, a coleção em parceria da Kenzo com H&M fazia questão de atualizar o legado do designer para os genzers (Reprodução)

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