Terceiro filme da atual fornada que recicla o afetado Hercule Poirot (Kenneth Branagh, que mais uma vez também dirige a produção), personagem mais conhecido dos romances detetivescos de Agatha Christie, “A noite das bruxas(A Hauting in Venice, 20th Century Studios, 2023) apresenta o protagonista em fim de festa em uma aventura passada no seu ocaso, em 1947, quando já se encontra recluso e aposentado, entediado com o ostracismo. Com elenco menos estelar que os anteriores “Assassinato no Expresso do Oriente” (2017) e “Morte no Nilo” (2022), esta penúltima aventura literária do agora cansado de guerra detetive belga – última posta para jogo pela autora, em 1969, já que a derradeira “Cai o Pano” seria publicada somente em 1975, mas havia sido escrita nos anos 1940 – se beneficia principalmente da presença da malaia Michelle Yeoh, vencedora do Oscar deste ano de ‘Melhor Atriz’, como curiosidade de quermesse.

Confira abaixo o trailer oficial legendado de “A noite da bruxas” (Divulgação):

Como sempre, um livro da autora serve, sobretudo, para Branagh caprichar na concepção visual de um filme de época, praticamente um costume picture (ótimos penteados em perucas que flertam como cinema noir criadas por Samuel James), usando todo o aparato do cinema digital – incluindo muitas tomadas aéreas feitas com drones, obsessão generalizada da indústria audiovisual de hoje – para impregnar de atrativos o tradicional whodunnit, gênero literário no qual o leitor procura desvendar, dentre muitos suspeitos, aquele que cometeu o crime.

Terceira produção da nova safra cinematográfica que ressuscitou Hercule Poirot no cinema, "A noite das bruxas" flerta com o cinema de horror.
“Pânico” com aroma renascentista: máscaras venezianas cumprem a função de aproximar essa nova aventura de Agatha Christie dos filmes slasher. (Foto: Divulgação)

Tais recursos estão aí: prontos para (tentar) capturar a atenção das novas gerações de um público que atualmente precisa do apelo pirotécnico para ir ao cinema e que poderia achar tediosa a clássica cena de muitos suspeitos reunidos numa sala enquanto um pomposo investigador apresenta as diversas motivações para cada um deles ser o assassino, enquanto vai se desvencilhando de um a um para finalmente chegar àquela epifania elucidativa final.  

Terceira produção da nova safra cinematográfica que ressuscitou Hercule Poirot no cinema, "A noite das bruxas" flerta com o cinema de horror.
Sessão espírita: a vidente vivida por Michelle Yeoh conduz a tentativa de se comunicar com os mortos nesta produção capitaneada pelo diretor de “Belfast“. James Dornan, que foi um dos protagonistas deste filme, retorna em sua parceria com Branagh. (Foto: Divulgação)

 Neste aspecto estético, o longa-metragem funciona podendo ser considerado a graficamente mais refinadas das três realizações lançadas até agora, com o talento bem-aproveitado do diretor de fotografia Haris Zambarloukos para criar uma Veneza aterradora, macabra e grand guignol a fim de embalar a premissa do filme: a possibilidade de o cético Poirot embarcar em um mistério que pode ser sobrenatural. Esse cabo de força entre o caráter cético de alguém que tem como matéria-prima a análise racional e os indícios prematuros de que pode estar lidando com o universo místico é o acepipe oportunista perfeito para pegar carona no Zeitgeist pós-pandêmico, procurando cativar uma plateia que, até pouco tempo atrás, precisava escolher entre o curandeirismo da cloroquina e a eficácia lógica da vacina.

Terceira produção da nova safra cinematográfica que ressuscitou Hercule Poirot no cinema, "A noite das bruxas" flerta com o cinema de horror.
Mistérios do além: a nova aventura de Hercule Poirot mescla suspense e terror, disposta a conquistar o público fiel de uma era em que as produções desse gênero andam em alta. (Foto: Divulgação)

Mas, é principalmente pela caracterização gótica da mais oriental das cidades italianas que “A noite das bruxas” dá cabo da sua maior missão: contrabalançar o sedutor cenário mal-assombrado com o roteiro esquemático de Michael Green, que não consegue criar empatia por ninguém. Todo mundo é muito artificial, tão epidérmico quanto um leve arranhão no antebraço.

Apesar disso, é gostosa (mas esquecível) a experiência de assistir a esta Sessão da Tarde na sala escura que, se não chega a empolgar, não compromete, podendo divertir. Vale pelo requinte técnico. Afinal, nenhum livro de Christie chegou ao século 21 incólume, sem que houvesse envelhecido paulatinamente na proporção em que o mundo ficou menos ingênuo e as motivações dos assassinatos de verdade, presentes nos noticiários dos jornais, carregam significações bem mais desconfortáveis que as dos crimes literários. Como se emocionar com a motivação do grupo de passageiros de um trem, no caso de “Assassinato o Expresso do Oriente”, quando o público é constantemente esbofeteado por relatos muito mais assustadores da vida real, como o crime cometido por Suzane Von Richthofen ou aquele que ceifou a vida do menino Henry Borel? Mesma coisa com essa nova produção.

“A noite das bruxas” é a primeira vez que outra personagem que desvenda mistérios criada por Christie aparece na telona – a escritora Ariadne Oliver, interpretada por Tina Fey, de verde ao centro. (Foto: Divulgação)

Nesse viés, a realidade de tempos mais sombrios parece engolir a capacidade de catarse de qualquer obra de Agatha Christie, escritora mais adequada a décadas menos complicadas. Por isso, é louvável a vivência de ir à sala de exibição para conferir como mistérios tão datados podem ser recauchutados através de uma lanternagem bem-feita, com o apelo de uma cinematografia moderninha. Apesar de a proposta de promover sustos embalando filme de suspense com casca de terror ser deficiente, este combo, de narrativa clássica e carpintaria bem-acabada, tem lá o seu charme, compensando o ingresso para conferir sem alarde essa pouco conhecida peripécia de Hercule Poirot.              

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