Alita: Anjo de combate” (Alita: Battle Angel”, Twentieth Century Fox e outros, 2019) chega nas telas com credenciais de responsa: o roteiro e produção de James Cameron, pela primeira vez em um grande projeto desde “Avatar” (2009), e Robert Rodriguez na direção da adaptação para a telona dos mangás de Yukito Kishiro. O próprio diretor de “Titanic” (1998) cogitou dirigir o longa-metragem, mas acabou declinando por conta da continuação de “Avatar” que anda lhe tomando o tempo, conferindo o comando ao cineasta de “O mariachi” (1992), “Um drink no inferno” (1996) e “Sin City: a cidade do pecado” (2005). O filme é boa diversão, vale o ingresso e impressiona pela construção do universo cyberpunk de uma Terra decadente, ambientada num futuro pós-glorioso do planeta. Mas para por aí.

A protagonista digital Alita, do novo filme de Robert Rodriguez, é inspirada na série de mangás de Yukito Kishiro e, por isso, o produtor James Cameron optou por manter as proporções dos olhos da personagem avantajados, na tradição do desenho de quadrinhos japonês. Nas primeiras exibições-teste, a reação foi negativa, mas Cameron peitou a ideia e mandou ampliarem ainda mais a dimensão. “Queria que o público visse a humanidade da ciborgue através das pupilas enormes”, revelou (Foto: Divulgação)

Confira abaixo o trailer oficial legendado (Divulgação):

Na colcha de retalhos dessa narrativa distópica, abraçada por Cameron após a utopia ecológico-futurista de “Avatar”, há uma série de lugares comuns no sci-fi, o que diminui o impacto, apesar do deslumbrante 3D que apresenta a Cidade de Ferro, com deliciosa concepção visual inspirada nas favelas cariocas, como a ensaiada no último  filme de Steven Spielberg, “Jogador Nº 1” (2018).

As favelas do Rio serviam de inspiração para o visual da Cidade de Ferro, aglomerado urbano de “Alita: Anjo de combate“. A estética final é deslumbrante (Foto: Divulgação)

Nessa fantasia passada no ano 2563, três séculos após uma guerra interplanetária contra Marte, quem vive na tal megalópole terrestre habita uma espécie de Pavão-Pavãozinho caótico, poluído e chegado a um lixão no melhor estilo da Los Angeles de “Blade Runner” (1982). Quem é rico pulou fora e vive em Zalem, cidade flutuante localizada alguns quilômetros acima da Cidade de Ferro, usada pela turma de cima como local de descarte, tipo um lixão de Gramacho. Espécie de Alto Leblon somente para endinheirados, Zalem é similar à estação espacial artificial de “Elysium” (2013), onde mora a rapaziada babadeira equivalente àquela que consome bolsas de grife a granel no Village Mall.

A mocinha ciborgue Alita faz par romântico com Hugo, interpretado por Keean Johnson, ator e bailarino de 22 anos que foi revelação na Broadway com o musical “Billy Elliot”, em 2008, quando tinha apenas 11 anos (Foto: Divulgação)

Nessa Havana do futuro, a tecnologia retrocedeu. Muito da sociedade da época depende da reciclagem da parafernália pré-guerra, como os cubanos fazem há décadas com os cadilacs rabo-de-peixe existentes na ilha desde os tempos de Fulgêncio Batista. Na Cidade de Ferro não só existem robôs, parecidos com os de “Robocop” (1987), como os ciborgues estão aí, num mix de “O Exterminador do Futuro” (do próprio James Cameron, 1984) com “A.I. Inteligência Artificial” (2001) e “Ghost in the Shell” (2018). Nessa terra sem lei que teima em ficar de pé sem polícia, a ordem é mantida por implacáveis justiceiros de aluguel. Qualquer semelhança com os caçadores de androides de “Blade Runner” não é mera coincidência. Afinal, o conto Do androids dream of electric sheep?“, de Philip K. Dick (1928-1982), e sua adaptação para o cinema por Ridley Scott continuam servindo de arcabouço para a representação de um futuro caótico urbano terráqueo.

Neste futuro distópico da terra do século 26, os humanos comumente implantam próteses cibernéticas para melhorar sua performance no dia a dia (Foto: Divulgação)

Nessa cidade regida por uma corporação, a plebe é conduzida a pão e circo pelas autoridades. A criatura no topo da cadeia predatória é Vector (Mahershala Ali) – mix de Jabba the Hutt (“Star Wars“) com o rapper MC Hammer (leia mais aqui), em modelitos meio Matrix (1999), que incorpora o chefão de Zalem, Nova (Edward Norton, não creditado) no melhor jeitão da Delores, a médium vivida por Whoopy Goldberg em “Ghost: do outro lado da vida” (1990). Traduzindo: recebe um caboclo. Vector comanda uma arena, o Motorball, corrida regada à morte, esporte violentíssimo realizado numa arena, nos moldes de Rollerball: os gladiadores do futuro” (1975) ou “Tron: o legado” (2010). Para completar o caldeirão de referências, a personagem de  Jennifer Connelly – a misteriosa, chiquérrima e lasciva Chiren – corresponde à típica femme fatale do cinema noir.

Mahershala Ali vive em “Alita: Anjo de combate o vilão Vector, responsável por fazer a urbe sem lei Cidade de Ferro funcionar conforme o bel-prazer da elite humana que vive em Zalem, última das metrópoles suspensas no ar. A construção dos personagens dessa nova produção de James Cameron é maniqueísta e superficial, mas, mesmo assim – sem profundidade alguma e repleta de obviedades -,  a narrativa se revela um bom passatempo. A primeira metade do longa-metragem se sustenta melhor, justamente enquanto a ação se concentra em apresentar ao público o universo dessa realidade (Foto: Divulgação)

Dúbia como rege a cartilha de uma protagonista de filme noir, Jennifer Connelly abusa dos trejeitos de atrizes que imortalizaram o gênero, como Veronica Lake. O figurino de Nina Proctor, colaboradora habitual de Robert Rodriguez, contribui para o resultado repleto de clichês semióticos, mas bem-executado (Foto: Divulgação)

Pode parecer, em meio a essa caldeirão de referências batidas, que o longa seja boring. Não é. É diversão gostosa, Sessão da Tarde de alta tecnologia digital que Cameron depurou ao máximo desde “Avatar”. Enquanto diretor de aluguel nessa empreitada, Robert Rodriguez, provavelmente na produção de maior orçamento de sua carreira, demonstra plena consciência do seu papel. Não é um filme seu, mas de Cameron. O mexicano se resume em manter seu DNA nas cenas de luta, que trazem a típica violência que é a sua marca. De resto, nessa produção ele se encarrega de imprimir o devido tom juvenil, como fez em “Pequenos espiões” (2001).

Em algumas sequências imagens de “Alita: Anjo de combate” esbarram na concepção visual de obras cyberpunk como “Ex -Machina” (2014) e “O vingador do futuro” (1990) (Foto: Divulgação)

Um acerto valorizado pelo carisma da personagem principal Alita – ciborgue desmemoriada com mega olhos de desenho japa, recriada digitalmente em um impressionante resultado a partir dos movimentos capturados de Rosa Salazar – e da sua relação paternal com o cientista que a descobriu num ferro velho, Dr. Dyson Ido (Christoph Waltz).

A atriz Rosa Salazar, cujas feições passaram pelo processo de mocap – captura de movimento – é responsável por boa parte do carisma da ciborgue Alita, um primor de realização na exata fronteira entre realidade e cinema digital (Foto: Divulgação)

Longe da zona de conforto dos vilões que costuma interpretar, o austríaco Christoph Waltz sobrepuja o roteiro que dá pouca profundidade a personagens epidérmicos, descendo bem além da superfície para alcançar um patamar crível para as motivações de seu Dr. Ido (Foto: Divulgação)

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