Já disponível no Netflix, “Hollywood” – novo projeto do showrunner Ryan Murphy, de “Glee“, “American Horror Story” e “American Crime Story” – é bálsamo para a alma em dias de incertezas por conta do covid-19. Com apenas sete episódios de um enredo que se fecha por completo, é entretenimento certeiro numa época em que as produções de zumbi e de contágios epidêmicos ganharam a preferência por aproximação com o sensação de apocalipse causada pela pandemia. O criador transporta o público para a politicamente incorreta Los Angeles do pós-2ª Guerra Mundial, oferecendo um petisco que transcende o escapismo ao abordar questões sobre hipocrisia, assédio e preconceito que, além de ainda fazerem hoje sentido, estão na berlinda por conta de movimentos com o Time’s Up. De uma tacada só, Murphy arrebata tanto o público que se delicia com a reconstituição de época da Era de Ouro quanto os millennials chegados a tramas que flertam com a patrulha ideológica das mídias sociais, num cínico retrato do cinema mainstream.

No cinema tudo se copia: o portal dos fictícios Ace Studios em “Hollywood” reproduz a mística entrada da Paramount (Foto: Divulgação)
Na narrativa, um grupo de aspirantes ao estrelato e novatos em busca de um lugar ao sol, como roteiristas, produtores e diretores, acaba se reunindo numa realização que pretende trazer ao público a história (real) da galesa Peg Entwistle, atriz fracassada que, na ausência de uma saída para galgar espaço no árido terreno cinematográfico, virou lenda no início dos anos 1930 ao pular para a morte da letra “H” que encabeçava o famoso cartão postal “Hollywoodland”. Numa meca do cinema já consolidada, sua tragédia virou sinônimo da crueza com que o seleto sistema de estúdios, submisso aos ditames do mercado, lidava com seu párias, encontrando paralelo igual somente 15 anos depois, quando outra candidata a starlet, Elisabeth Short – a Dália Negra –, seria brutalmente assassinada num crime até agora sem solução. Seu trágico fim, por sinal, aconteceu no mesmo ano em que se passa a história de Murphy o que, no caso do produtor, pode não ser mera coincidência, considerando seu apreço pela estrutura de minisséries que rendem novas temporadas com enredos e elencos diversos. Não existe até agora menção alguma de que esse primeiro projeto inteiramente surgido da sua parceria com a plataforma de streaming venha a se desdobrar numa segunda temporada, mas, assim como Peg, Elizabeth acabou ficando para a posteridade como mais uma pobre coitada que se sentiu forçada a abdicar do letreiro na marquise pela manchete dos tabloides policiais, reforçando o senso de que o star system é uma quase sempre inatingível gangorra.

Retrato fiel: a direção de arte e os figurinos de “Hollywood” seguem o costumeiro padrão de Ryan Murphy: sua equipe capta com exatidão a atmosfera da Era de Ouro, como já haviam feito no ótimo “Feud” (2017) e nas sequências que recriavam os tempos do cinema mudo nos flashbacks de “American Horror Story: hotel” (2013) (Foto: Divulgação)

A carne mais barata do pedaço é a carne negra: com nome de cantora de blues, a starlet Camille Washignton (Laura Harrier) é a talentosa novata contratada pelo Estúdios Ace que entra na briga pelo estrelato. A personagem é inspirada na bela e competente Dorothy Dandridge, estrela que sentiu na pele o preconceito de uma Hollywood pré-Martin Luther King. Sua atuação em “Carmen Jones”, produção com elenco inteiramente negro, é sublime, o que rendeu pela primeira vez a indicação de uma negra ao Oscar de ‘Melhor Atriz’. Acabou perdendo para a loura Grace Kelly. Depois de mais algumas produções, ela foi esquecida até ser encontrada morta no seu apartamento em West Hollywood, final de vida no ostracismo, sem recursos e alcoólatra. Prova de que a Velha Hollywood jamais admitia aquilo que considerava petulância sem cobrar um preço alto demais
A nova atração foi comparada com longas-metragens de Quentin Tarantino, como “Bastardos inglórios” (2009) e o recente “Era uma vez em… Hollywood” (2019), não só pelo humor e a meticulosa recriação de época, mas pelo fato de subverter os livros de história. Por exemplo: na minissérie, o galã Rock Hudson (Jake Picking), representado ainda em início de carreira, é mostrado como um caipira inseguro com sua sexualidade, mas, ao contrário da sua contraparte real, cuja homossexualidade só caiu na boca do grande público após sua morte em 1985, decorrente de complicações com a Aids, aqui ele acaba saindo do armário.

Os quatro protagonistas masculinos de “Hollywood” no posto de gasolina que serve de fachada para uma agência de garotos de programa: o meio-filipino Raymond (Darren Criss), o gay negro Archie (Jerome Pope), o ex-pracinha da 2ª Guerra Jack (David Cofrenswet) e o único personagem que realmente existiu, Roy Fitzgerald (Jake Picking), que viria a se tornar um dos maiores astros dos anos 1950, Rock Hudson. O custo foi alto: a vida inteira precisou esconder sua homossexualidade (Foto: Divulgação)
Ryan Murphy faz o público degustar essa reinvenção da realidade, antecipando em mais de setenta anos as bandeiras da luta contra a misoginia e a discriminação de minorias como os negros, homossexuais, hispânicos e orientais que hoje são matéria-prima para jornais, sites e revistas de fofocas quando empunhadas em premiações e red carpets do calibre do Oscar. Ao conceder na série o Oscar à primeira estrela de ascendência chinesa do cinema americano, Anna May Wong (Michelle Krusiec) – cuja trajetória começou no limiar dos twenties e durou três décadas até a atriz ser paulatinamente cuspida para fora do meio –, ele pretende corrigir injustiças que aconteceram, tal qual o diretor de “Era uma vez em… Hollywood” se prontifica a não permitir que se consuma o assassinato de Sharon Tate (Margot Robbie). É como se “Parasita” (2019), o surpreendente filme sul-coreano que virou Hollywood ao avesso na última temporada de premiações, fosse capaz de tal façanha nos anos quarenta.

Anna May Wong foi estrela de primeira grandeza na constelação hollywoodiana. Sua ascendência oriental, entretanto, nunca lhe garantiu os melhores papeis, nem quando o roteiro pedia esse biotipo. Apesar do enorme talento, foi preterida para protagonista do clássico “Terra dos Deuses” (1937), produção que garantiu o segundo Oscar à sua intérprete, Luise Rainer. Wong nunca foi premiada. Morreu desgostosa (Foto: Reprodução)
Entretanto, mais que subverter os anais da mitologia hollywoodiana, Murphy demonstra maestria ao dispor de uma cartada usada não apenas por Tarantino, mas por outro bem-sucedido showrunner à frente de uma produção televisiva: Bruno Heller. Quando transpôs para a tela, há 15 anos, o Império Romano de Julio Cesar e Marco Antonio na série “Roma” (2005-2007), Heller teve uma sacada de mestre ao mesclar personagens criados com outros que realmente existiram. Esse ingrediente é decisivo para o resultado de “Hollywood”: o panteão de mitos do cinemão citados ou em carne e osso em deliciosas sequências é essencial para conferir veracidade às licenças poéticas do roteiro.

Em “Hollywood”, a protagonista Camille Washington (Laura Harrier, esq.) sofre toda espécie de boicote pela parcela racista da população americana, mas recebe o apoio incondicional de Hattie McDaniel (Queen Latifah, dir.), a primeira atriz negra a pisar no palco do Oscar para receber uma estatueta, a de ‘Melhor Atriz Coadjuvante’ pela impagável Mammie de “…E o vento levou” (Foto: Divulgação)
Além de Hudson e May Wong, num piscar de olhos surgem e saem de cena, em participações mais ou menos importantes, criaturas como George Cukor, Vivien Leigh, Tallulah Bankhead, Cole Porter, o agente de astros Henry Willson (Jim Parson, de “The Big Bang Theory“), Susan Hayward, Hattie McDaniel, Noel Coward, Donald Crisp, Ernest Borgnine, Loretta Young, Robert Montgomery, Guy Madison, Rory Calhoun , Irving Thalberg, Rosalind Russell, Edmund Gwenn, Luise Rainer, a jornalista de celebridades Hedda Hopper e até a ex-primeira dama Eleanor Roosevelt num desfile apetitoso, além de dezenas de outros mencionados em fofocas maldosas que fazem parte do anedotário.

A verdadeira Hattie McDaniel (esq.) foi proibida de comparecer ao tapete vermelho da première de “… E vento levou”, apesar do protesto do seu amigo Clark Gable, protagonista do longa. Indicada ao Oscar pelo papel, ela só pode ir à cerimônia diante da ameaça de boicote do ator. Mesmo assim, foi colocada numa mesa na outra extremidade do salão, longe dos holofotes e segregada de todos, de onde se levantou para se dirigir ao palco quando foi anunciada sua vitória como ‘Melhor Atriz Coadjuvante’. Somente em 2002 seria a vez de uma atriz negra ser contemplada com o Oscar de ‘Melhor Atriz’: Halle Berry, mesmo ano em que Denzel Washington ganhou sua segunda estatueta (Foto: Divulgação)

Ator recorrente nas produções de Ryan Murphy, Dylan McDermott (dir.) vive em “Hollywood” Ernie, ator frustrado que se tornou cafetão, oferecendo o serviço de rapazes através de seu posto de gasolina de fachada. Na vida real existiu Scotty Bowers (esq.), ex-fuzileiro naval que recrutava seus antigos colegas de caserna como frentistas para atender sexualmente figurões como Cole Porter, George Cukor, Anthony Perkins e Malcolm, conforme descreve em suas memórias de 2012 “Full Service: My Adventures in Hollywood and the Secret Lives of the Stars” (Fotos: Divulgação)
Murphy não economiza nessa sua velha fórmula conhecida, da qual o público já havia saboreado o gostinho em episódios de “American Horror Story“, na minissérie “Feud” (2017) e nas diversas temporadas de “American Crime Story” (2016-2018). Para isso, ele se cerca de profissionais de tarimba nos quesitos visuais da produção, além de dispor de uma trilha sonora envolvente.

Machismo: Patti Lupone interpreta em “Hollywood” a socialite Avis Amberg, esposa do chefão da Ace Sudios, que ascende à presidência da empresa após o marido sofrer um enfarto. Ela acaba se encantando com a produção capaz de virar ao avesso o cenário audiovisual americano, e sofre pressão dos advogados e acionistas por ser mulher. Na vida real, nunca existiu uma magnata de saias dentre os poderosos da Era de Ouro (Foto: Divulgação)

Trunfo de Murphy no elenco, Jim Parsons vive o agente de atores gay Henry Willson em “Hollywood”. Enrustido, ele pratica assédio, cai de boca na botija, mas coagindo seus contratados a nunca porem a boca no trombone, permanecendo no armário, apagando incêndios e contribuindo para que a meca do cinema se mantenha como exatamente como a capital da hipocrisia que ainda é atualmente, apesar dos avanços dos últimos anos. Na vida real, ele foi um jornalista que acabou se tornando um exímio artífice de carreiras, como as de Rock Hudson, Lana Turner, Tab Hunter e Natalie Wood (Foto: Divulgação)
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