Hollywood ama isso: resgatar um astro ou atriz que andava no limbo, esquecido, cuspido para fora do sistemão. E também adora de carteirinha se autohomenagear, trazendo à luz do público narrativas que rememorem a sua trajetória, para o bem ou para o mal, pouco importa. O que vale é trazer à superfície aspectos da cruel realidade da maior indústria cultural do mundo, seja através do drama rasgado ou da tragicomédia sórdida, devidamente embalados pelo teor dramático que garante o interesse do público e, por tabelinha, uma nota preta ao cofre dos produtores. É por isso mesmo que “Judy – muito além do arco-íris(Judy, de Rupert Goold, Twentieth Century Fox e outros, 2019) deve ser barbada no Oscar, com Renée Zellweger repetindo, na categoria de ‘Melhor Atriz’, a performance que teve nas premiações do Globo de Ouro, quando levou para casa a estatueta de ‘Melhor Atriz em Drama’ e no SAG Awards, o prêmio conferido pelo Sindicato dos Atores de Cinema, que costuma funcionar tipo um termômetro para a celebração da Academia.

Incorporação mediúnica com empurrão de plásticas mal-feitas: Renée Zellweger reproduz com exatidão a postura corporal da estrela da Era de Ouro Judy Garland em “Judy”. A atriz é amparada por uma ótima caracterização de figurino e da maquiagem, que tirou proveito dos excessos de botox da eterna Bridget Jones para compor a aparência da antiga artista da MGM (Foto: Divulgação)

É avassaladora sua interpretação da estrela da Era de Ouro Judy Garland, nos meses que antecederam sua morte, em 1969. Promete levar ao ápice, no dia 9 de fevereiro, no Teatro Dolby, o percurso de reconhecimento que a loura vem tendo desde quando começou a temporada de premiações: são 15 trofeus no bolso até agora, dentre muitas indicações em quase todos os prêmios da indústria e de associações de críticos.

“Judy – muito além do arco-íris” se baseia numa peça homônima que retrata os abusos sofridos pela estrela pelo então chefão da Metro, Louis B. Mayer, capaz de tudo para por sua usina de sonhos em funcionamento, até abusar moralmente de seu elenco (Foto: Divulgação)

Confira abaixo o trailer oficial legendado (Divulgação):

Independente de ganhar o Oscar ou não, é possível afirmar que Renée já se encontra no panteão daqueles talentos que deram a volta por cima, ainda que não haja, no momento, nenhuma indicação de que a sua carreira tenha sido realmente ressuscitada. Talvez o retorno ao olimpo seja apenas momentâneo. Ou não. O que já é um mérito: no futuro, sua volta pode render outra narrativa, sobre o seu sucesso efêmero, após ter sido esquecida pelos produtores de casting depois de uma série de intervenções cirúrgicas desastrosas que transformaram sua boca numa caçapa. Até agora, não há nenhuma informação de que a estrela de “A enfermeira Betty” (2000), “O diário de Bridget Jones” (2001) e  “Chicago” (1992) vá realmente se manter na crista da onda, após “Judy” e prestes a completar 51 anos. O esquemão não é afeito a permitir que estrelas que alcançam a meia-idade se mantenham em atividade, salvo aquelas que souberam, à custa de muito talento, se firmar em papeis maduros. Ainda não há indício algum de que a carreira de Zellweger tenha sido de fato retomada: nenhuma pré-produção anunciada que já conte com seu nome escalado no elenco, o que seria uma lástima, dada a qualidade de sua atuação em “Judy”, brilhante e disparado a sua melhor, anos-luz à frente de uma série de atuações medianas que ganharam destaque na imprensa, conquistando o grande público graças ao fato de a publicidade do cinemão costumar ficar na mão de profissionais de comunicação pica das galáxias.

“Judy” representa a volta ao topo de Renée Zellweger, após uma série de fracassos e escolhas que lhe conduziram ao ostracismo. É ela mesma quem canta nas cenas musicais da produção (Foto: Divulgação)

Apesar de a produção dirigida por Rupert Goold ser redonda do início ao fim, sem barriga e muito bem-realizada, “Judy” é Renée. Ela incorpora com garra a antiga estrela da Metro em clássicos como “O Mágico de Oz”  (1939), “Agora seremos felizes” (1944), “O pirata” (1948) e “Nasce uma estrela” (1954) na fase que antecedeu sua morte por overdose, quando já havia se tornado veneno de bilheteria e ter sido aposentada precocemente, aos 41anos, pela contracultura, após ser sugada à exaustão desde criança.

Atriz-mirim do elenco da poderosa Metro-Goldwyn-Mayer, Judy Garland tinha 16 anos quando filmou “O Mágico de Oz” (1939). O produtor Louis B.Mayer não a poupou: fez todo o tipo de chantagem para conter os impulsos juvenis da estrela, típicos da idade, forçando-a a uma disciplina hercúlea de exercícios, aulas e dietas desumanas, de forma a garantir que ela se tornasse um dos produtos mais rentáveis do estúdio na virada dos forties (Foto: Reprodução)

Dieta macabra: um sem número de calmantes, excitantes, controladores de peso e remédios para dormir e acordar, administrados pelos seus tutores na MGM, alternados com períodos insuficientes de descanso, contribuíram para tornar Judy Garland instável emocionalmente e dependente química de álcool e barbitúricos. A produção dirigida por Rupert Goold enfatiza esse aspecto da carreira da estrela como um dos elementos que a conduziram, na bancarrota e sem trabalho, ao piripaque que lhe tirou a vida (Foto: Divulgação)

Diante da popularidade que a artista alcançou, Judy Garland pode ser considerada o caso mais notório de vampirismo hollywoodiano. É possível que Renée Zellweger tenha sentido na própria derme aquilo que a mãe de Liza Minnelli passou, em uma dimensão menor porque, afinal, Judy foi Judy, e o sucesso da loura em priscas eras faz cosquinha no estrelato da eterna Dorothy, uma das maiores vozes que o cinema já produziu. Após ser firmar no panteão de grandes nomes de Hollywood na virada do milênio para depois ser esquecida, uma Zellweger botocuda compõe com perfeição uma Garland inchada pelo excesso de barbitúricos, álcool e fumaça de cigarros, amargurada pelo ocaso e insegura por anos tortura mental administrada em doses cavalares pelo tycoon da MGM Louis B. Mayer. Nesse coquetel indigesto, é ingrediente principal tudo aquilo que foi obrigada a passar em mais de três décadas de showbizz antes de bater as botas.

Felicidade de fachada: filha de mãe aproveitadora e de um pai gay, Judy Garland celebrava seu aniversário na frente das câmeras, ao lado do chefe Louis B. Mayer (esq.) e do seu partner das telas Mickey Rooney (dir.). Era somente para inglês ver.  Os bolos geralmente eram fake, cenográficos como convém a Hollywood, e, quando não eram, ela partia a fatia para os cinegrafistas editarem as imagens para os cinejornais, mas não podia por a boca, sob o risco de ganhar peso ao sair da linha. No jogo de dominação e submissão, Mayer chegava ao ponto de fazer a atravancada Judy se sentir culpada pelo fato de ele ter demitido a outra atriz juvenil do estúdio, a bela Deanna Durbin (Foto: Reprodução)

São muitos os casos de atores que deram a volta por cima, saindo da berlinda e voltando aos holofotes. Viraram novamente arroz de festa na mídia. Nesse campo, Renée Zellweger parece estar tendo uma sorte que não foi permitida a Judy Garland, relegada no final da vida a uma cortina que baixou de vez. Por outro lado, apesar deste novo reconhecimento tardio, não há garantia certeira de que o Oscar contemple a Roxie Hart de “Chicago”. Isso é fácil de provar. Na contramão, um dos mais contumazes exemplos de retorno colossal é Frank Sinatra. Na virada dos anos 1950 vivia uma péssima fase, comendo o pão que o diabo amassou. Dizem as más línguas que o ator precisou contar com uma ajudinha providencial da máfia para convencer o então chefão da Columbia Harry Cohn a lhe dar o papel do soldado Angelo Maggio em “A um passo da eternidade” (1953), folclore devidamente reproduzido por Mario Puzzo no início de “O Poderoso Chefão” (1971). O sucesso voltou-lhe a bater à porta, e o Old Blue Eyes ainda arrematou o Oscar de ‘Melhor Ator Coadjuvante’ no ano seguinte pelo papel, boiando na piscina do sucesso pelos anos seguintes.

O visagista Jeremy Woodhead concorre ao Oscar de “Melhor Maquiagem’ por “Judy”. A caracterização do longa é ponto alto, mas encontra concorrência acirrada: “Escândalo” e “Coringa” são rivais de peso (Foto: Divulgação)

A ambientação de “Judy”, passada em 1969, não é a única que retrata o universo da Velha Hollywood tomado de assalto pela revolução de costumes dos anos 1960. “Era uma vez em Hollywood”, de Quentin Tarantino, reproduz o mesmo fenômeno (Foto: Divulgação)

Apesar disso, vale lembrar que nem sempre o tititi que toda volta suscita é passaporte para o Oscar. Tirada da naftalina por Billy Wilder em “Crepúsculo dos Deuses” (1950), Gloria Swanson perdeu o prêmio para Judy Holliday em 1951, mesmo com o longa sendo considerado uma obra-prima seminal que retrata com cinismo sem igual as engrenagens do cinema. E quatro décadas e meia depois, em 1995, um John Travolta renascido do inferno não conseguiu sequer tocar na estatueta, mesmo com a ótima performance em Pulp Fiction (1994). Precisou engolir em seco quando o apresentador anunciou que “the winner was” Tom Hanks, por “Forrest Gump” (1994).

“Judy” conta com um bom casting de coadjuvantes, como Finn Wittrock (à dir.), Rufus Sewell, Jessie Buckley e Michael Gambon (Foto: Divulgação)

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