São tempos de pedir transparência em dias em que a vida se tornou opaca. Na ultima semana, um vídeo da atriz Julia Lemmertz viralizou nas redes. O conteúdo? Sua indignação com o fato de 130 árvores que ornam atualmente o Jardim de Alah, parque tombado situado na divisa entre Ipanema e Leblon, no Rio, estarem prestes a serem arrancadas por conta do projeto que revitaliza a área, tocado pelo consórcio Rio + Verde, encabeçado pelo empresário Alexandre Accioly e que ganhou a concessão da Prefeitura para explorar por 35 anos o local. O alerta de Julia é valioso, conduzindo à reflexão, e ganha desdobramento com o protesto encampado por ela e pelo ator Mateus Solano, marcado para o próximo sábado (22/2) no local. Afinal, há 13 anos, moradores de Ipanema também se revoltaram com o destino, até hoje mal explicado, das 113 árvores arrancadas a esmo na Praça Nossa Senhora da Paz, pelo Governo do Estado, por causa das obras de implantação da estação de metrô que leva o nome da localidade e com 70% supostamente transferidas para o Sítio Burle Marx, na Zona Oeste. Muitas das árvores que proporcionavam sombra aos frequentadores da praça, de babás e crianças a moradores com seus pets, jamais foram repostas. Em dias com sensação térmica nas alturas, andam fazendo a maior falta. Por isso, o desabafo da artista, por ter propriedade, anda causando comoção. Mas, como a arena das redes sociais é volátil, carecendo de apuração e muitas vezes se tornando território fértil para sensos comuns apressados e desqualificados tribunais virtuais, ÁS resolveu investigar: conversou com Duarte Vaz, arquiteto paisagista à frente da Embyá – Paisagens e Ecossistemas, empresa de paisagismo encarregada de cuidar dessa parte do projeto de revitalização do espaço. Confira!

Sobre a questão da retirada, Duarte Vaz é enfático: “Antes de tudo, considero esse tipo de discussão louvável. Nós, paisagistas, sempre queremos plantio, jamais retirada. Mas nem sempre é possível. Muitas das árvores que serão arrancadas já estão com seu ciclo de vida comprometido, no final. Por exemplo, temos aquelas que estão infestadas de cupins e formigas, sua estrutura já foi abalada em caráter definitivo. Podem acabar caindo quando rolar um toró daqueles”, afirma, deixando claro que as que não têm jeito deverão ser sacrificadas, mas que provavelmente cerca de 60 a 70 delas serão alocadas em outros lugares.
Biólogo envolvido em causas ambientais há 40 anos, como o derramamento de petróleo na Ilha D’Água, em 2000, e a mortandade de peixes da Lagoa Rodrigo de Freitas, cartão postal da Zona Sul carioca, Ricardo Neher concorda com Duarte Vaz, mas considera importante o monitoramento da sociedade civil: “Realmente, temos no Rio muitas espécies exóticas [que não são naturais da região], a começar pela jaqueira, que veio da Ásia trazida pelos portugueses da Companhia das Índias Orientais. E temos mesmo muitas árvores doentes, malcuidadíssimas. Então, são sempre bem-vindos tanto diálogo com a população quanto a participação popular em projetos gestados em escritórios com ar condicionado”.

Duarte Vaz é enfático: “Olha, eu já trabalhei no Jardim de Alah, há uns 20 e poucos anos, quando Eduardo Paes era Secretário do Meio Ambiente do Rio, na gestão do prefeito César Maia. Posso garantir que tudo está sendo realizado com muito cuidado, com biólogos de ambos os lados [Prefeitura e Consórcio] trabalhando juntos para tomarmos as melhores decisões. O projeto não é um axioma irredutível, inflexível. Ao contrário, mexemos nele o tempo todo fazendo desvios em elementos pré-existentes de forma a preservar o máximo possível de espécimes e até evitando sacrificar estruturas do projeto paisagístico original, de 1938 [que leva o nome de um famoso filme da United Artists de dois anos antes, estrelado por Marlene Dietrich e Charles Boyer]. Muitos parâmetros mudaram em quase um século, eram outros tempos. Tudo tem sido discutido à exaustão, com o projeto constantemente lapidado com muito zelo. Mexemos em tudo o tempo todo, ajustando o conceito dentro das premissas determinadas pela Prefeitura”, completa.

Para Ricardo Nehrer, o Município do Rio de Janeiro tem tradição em cuidar mal de suas áreas verdes: “Ao longo das décadas, a Fundação Parques e Jardins foi esvaziada por questões políticas”. Para o mestre em Ecologia Humana na UFRJ e doutor em Políticas Públicas na Estratégia e Desenvolvimento pelo Instituto de Economia da mesma instituição, “É preciso ficar alerta”. Assessor científico por dez anos do programa Globo Ecologia, da Rede Globo, e na dianteira, por mais quatro, do programa Cidade Sustentável na Rádio Cidade, Ricardo atuou como assessor ambiental da Secretaria de Meio-Ambiente do Estado nos governos Brizola, Garotinho, Rosinha Garotinho e Benedita da Silva. Por isso, seu olhar é cirúrgico: “É importante não romantizar. Iniciativas como a da renovação do Jardim de Alah são necessárias, mas é essencial acompanhar o crescimento das árvores que vierem a ser plantadas. O Rio de Janeiro mal faz cuidados paliativos nos seus parques, imagina cuidados integrais. Entretanto, não é por isso que serei negacionista. Não estou familiarizado com este novo projeto, mas, se for bem-feito, é um ganho para a cidade”, ressalta, recebendo de bom grado a informação disponibilizada por Duarte Vaz de que a sua equipe está resgatando sementes de espécimes que estavam desaparecidas no Município e que estas mudas, germinadas no Bosque da Barra, poderão servir de matrizes para outros parques do Rio o que tem encantado os biólogos da Prefeitura. “Considero essa iniciativa esplêndida”, diz.

Duarte Vaz é cria do escritório de paisagismo de Roberto Burle Marx – nome que dispensa apresentação –, tendo convivido desde muito moço com o gênio, já no final de vida, e trabalhado diretamente com seu sócio, Haru Ono, outro expoente do segmento. O dia a dia com esses mestres lhe conferiu a credencial para fundar a Embyá, que toca projetos importantes no setor. “Já plantei milhares de árvores nessa vida. Acredite, decisões de supressão nunca são fáceis. Tem algumas questões desse projeto que são desconhecidas do grande público, como, por exemplo, retirar espécimes invasoras como árvores exóticas sem função desejada, tipo o jasmim-manga e algumas palmeiras, que nem são daqui, sequer existindo polinizadores e dispersores adequados”, explica, deixando claro que a intenção é enriquecer a flora e fauna no local, com foco na biodiversidade e nas funções ecossistêmicas, melhorando a qualidade do ar e do solo. “Isso é plenamente cabível”.

O paisagista aposta no plantio de vegetação de mangue nas duas orlas do canal que liga o mar à Lagoa, e entrega que já estão em conversa com o biólogo Mário Moscatelli, responsável por ter recuperado, por iniciativa individual, a vegetação original do entorno da Rodrigo de Freitas. “Estive próximo ao Oskar [Metsavaht, da Osklen] por ocasião da sua empreitada para resgatar a vegetação de restinga nas orlas de Ipanema e Leblon, no final dos anos 2000. Olha que beleza aquilo virou”, celebra Duarte Vaz, reiterando que a reintrodução da biodiversidade na região vai se dar não apenas através de pássaros e insetos, mas de mamíferos como saguis, saruês e esquilos, e provavelmente capivaras, que poderão adentrar no parque através de sua conexão com a lagoa, na altura da minúscula praia ao lado do Clube Caiçaras.

Duarte acentua que esse projeto é o primeiro da América Latina que leva o certificado internacional Sites Platinum, grau máximo do processo que atesta o cumprimento de padrões de sustentabilidade em projetos de construção. “Estamos criando paisagens em um sistema regenerativo, com o objetivo de integrar pessoas com a natureza. Isso tudo é muito genuíno”, destaca o profissional, ainda que a essa discussão sobre o projeto recaia, vez por outra, na questão de a Prefeitura do Rio deixar preservar os espaços públicos destacada por Ricardo Nehrer.

Em artigo publicado no Diário do Rio, nesta última quinta-feira (13/2), o arquiteto, urbanista, professor da PUC-RJ e ex-diretor geral do Instituto Estadual de Patrimônio Cultural (INEPAC) Roberto Anderson ressalta que “a Prefeitura do Rio é useira e vezeira da tática de deixar uma área pública se deteriorar para depois vir com uma solução que envolva gastos maiores que a simples conservação”. Para ele, o ideal seria que o poder público utilizasse seus recursos disponíveis para fazer a manutenção desses espaços, como o Jardim de Alah. Por outro lado, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – carioca que se fez na capital paulista – já afirmou mais de uma vez que o “Rio faz bastante intervenção urbana, ao contrário de São Paulo”. Sob essa ótica, conservar não seria suficiente, mas obter o apoio da iniciativa privada para melhorar a cidade, sim.


Essa discussão ainda vai longe e não é novidade: igual alarde teve a construção do Sambódromo nos anos 1980, o projeto do Rio Cidade que revitalizou as calçadas e o mobiliário urbano nos 1990 (que culminou no excesso de munição atirada contra o arquiteto Paulo Casé, responsável pela construção do obelisco no Bar 20, em Ipanema, que celebrava o ponto final dos antigos bondes e acabou conhecido como o “pirocão”), e até o projeto que repaginou a região portuária, há dez anos, pondo abaixo o opressivo Viaduto da Perimetral, trambolho dos tempos da ditadura.

“Queremos um espaço que integre Ipanema e Leblon, ao contrário do que existe atualmente, que segrega de tudo a Cruzada de São Sebastião, que deveria ter unido os moradores que foram despejados da antiga Favela do Pinto, mas que apenas os isolou mais ainda do resto, em um apartheid social seríssimo”, completa Duarte Vaz, que se diz cansado com o fogo cruzado dos últimos dias nas mídias: “Isso é tóxico. Tenho dormido com um gosto amargo na boca. Nunca tive haters até então”.
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