Iain Smith é o tipo de sujeito que não importaríamos em ficar ouvindo por horas a fio sobre os bastidores de um filme, acompanhados – de preferência – com um excelente uísque engarrafado em Glasgow, sua cidade natal e onde ele descobriu, desde muito jovem, que queria trabalhar no cinema a partir do instante em que viu 4.000 pessoas que lotavam o maior cinema da cidade completamente eletrizadas e embriagadas pelo que se passava na tela.
E tem sido justamente essa magia que Iain vem ajudando a criar desde 1970, quando começou uma carreira que o levou – passo a passo – a percorrer quase todos os departamentos envolvidos na realização de um filme até finalmente perceber que estava vocacionado para ser não o artífice direto da magia e da beleza, mas aquele que tornava possível realizá-las para a tela: um produtor-executivo. Hoje, ele e a sua produtora Applecross são considerados na indústria cinematográfica global como nomes que garantem que uma superprodução não vai naufragar e chegará ao seu porto dentro do cronograma e sem estouros de orçamento, e – principalmente – com grande parte do encantamento imaginado no roteiro preservado ali, onde interessa, nas telas do mundo inteiro. Nesse sentido, este ano trouxe para Iain Smith uma das maiores gratificações da sua carreira: em maio, “Mad Max: Estrada da Fúria” (Mad Max: Fury Road, 2015, direção de George Miller) foi triunfalmente ovacionado na sua pré-estreia mundial durante o Festival de Cannes por um público formado majoritariamente de críticos enjoados para depois prosseguir numa espetacular carreira comercial que já arrecadou quase 400 milhões de dólares só nas salas de cinema.

Festival de Cannes 2015: cartazes de “Mad Max: Estrada da Fúria” cobrem o Hotel Carlton. Receber a consagração fulminante da crítica internacional na pré-estreia mundial trouxe uma gratificação especial e inesperada para Iain Smith por se tratar de um blockbuster (Foto: Flávio Di Cola)
Confira abaixo o makin’ of de “Mad Max: estrada da fúria” (2015)
Quando perguntaram a Iain Smith – durante uma das masterclass promovidas nesta semana pelo RioMarket, área responsável pela discussão de tendências de mercado dentro do Festival do Rio, cuja sede este ano é o charmoso prédio do Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ, no bairro do Flamengo, Rio de Janeiro – como lidar com uma produção de 157 milhões de dólares que fora planejada para ser rodada em 47 semanas em locações no deserto da Namíbia, mas que foram reduzidas para 20 em razão de cortes no orçamento, que envolveu uma equipe de 1500 profissionais das mais diversas origens (principalmente britânicos, australianos, sul-africanos, canadenses e namíbios, entre os quais vários malabaristas do Cirque du Soleil) e que trabalhou 138 dias sem interrupções, que exigiu 4000 story-boards (desenhos) para que pudesse ser previamente visualizada e 30 câmeras acionadas simultaneamente em boa parte das cenas? A resposta foi simples e segura: “Quando um produtor-executivo põe os pés num set no primeiro dia de gravações, na verdade, na cabeça dele o filme já está realizado, pois tudo foi minuciosamente planejado antes e, a partir de então, quem tem que se desdobrar é a equipe de criação, isto é, o diretor, os atores, o pessoal da fotografia e câmeras, o diretor de arte, os cenógrafos e figurinistas, uma vez que nós da produção já garantimos para eles todas as condições de trabalho. No caso de “Mad Max: Estrada da Fúria”, eu tive nove meses para preparar tudo. E na Namíbia, minha equipe só atuou como eventual “eliminadora de problemas”, isto quer dizer remover com rapidez os obstáculos que tenham sido realmente impossíveis prever”.

Polêmica: “Mad Max : Estrada da fúria” enfureceu o público masculino, que criticou o longa por valorizar demais a presença feminina através de Charlize Theron, mas conseguiu o feito de inserir novamente a franquia oitentista no mapa das superproduções (Foto: Divulgação)
Diante desse jeitão de profissional tarimbado que enfrenta sem pestanejar os desafios, foi fácil entender por que esse encontro encantou a platéia formada majoritariamente de jovens produtores, diretores e roteiristas que estão dando seus primeiros passos na indústria audiovisual brasileira e que – eventualmente – sentem-se desmotivados, ou assustados, pelas condições de realização num país que está passando por grave crise econômica e de valores. Aliás, essa percepção um tanto desencantada sobre as condições atuais para se tocar um projeto audiovisual no Brasil não escapou a Iain Smith que também ouviu muitas reclamações sobre os entraves de todos os tipos que impedem que as produções deslanchem por aqui com a velocidade e a qualidade exigidas pelo competitivo mercado internacional: “Tenho a impressão de que vocês brasileiros assimilaram demais o hábito de depender do dinheiro público para produzir”. E arremata: “Também é necessário desburocratizar e desregular mais a atividade, além de desenvolver fortes alianças com os grandes centros de produção no exterior”.

Iain Smith no RioMarket 2015: o escocês bonachão de Glasgow que sabe tudo sobre superproduções (Foto: Flávio Di Cola)
A carreira de mais de quatro décadas de Iain Smith compreende uma lista insuperável de filmes de altíssimo orçamento e de feitura complexa, principalmente produções de época e ficção científica. Conheça alguns:
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Após a fala direta, vivida e sensível de Iain Smith, o melhor mesmo foi poder extrair dela um verdadeiro decálogo sobre como evitar que a realização de um filme se transforme num pesadelo e garantir o sucesso sob a ótica de um produtor-executivo que já passou por tudo. Vamos, então, rever a lição:
1) Antes de dar qualquer passo, leia e analise profundamente o roteiro para entender qual o tipo de magia que ele quer transmitir para o público, quais sãos os mitos e os arquétipos nele acionados, e qual é o seu subtexto.
2) Durante todo o processo de produção refaça humildemente a mesma pergunta e com o ponto de vista de quem está na platéia: afinal, por que este filme precisa ser feito?
3) Se você acredita no projeto, entre de cabeça nele, mas sabendo que produzir é trabalhar em constante “estado de guerra”.
4) Planeje, planeje e planeje, até os problemas virarem rotinas previsíveis. Mesmo assim, nenhum filme sai como foi planificado.
5) Não se iluda: os desafios para realizar um filme são igualmente amedrontadores para as pequenas e as grandes produções. Para segurar esse tranco, procure forças dentro do que sobrou da sua inocência infantil e dos sonhos que levaram você a abraçar o cinema.
6) Coloque isto na cabeça: o produtor não é o dono do filme, ele existe para proteger os talentos criativos envolvidos, controlar os imprevistos e assegurar que o projeto aconteça.
7) Assim como você precisa ter consciência dos seus pontos fortes e fracos para iniciar qualquer empreitada, procure também entender a cabeça do diretor do filme.
8) Nunca – mas nunca mesmo! – brigue ou se indisponha com o diretor: ele é a peça motriz criativa de tudo e precisa do seu apoio irrestrito.
9) Se o diretor for temperamental, mal educado ou depressivo, dilua sua mágoa sozinho à noite, no hotel, e esteja preparado para no dia seguinte voltar a vestir a sua armadura de guerreiro zen.
10) Nunca grite ou protagonize cenas histéricas perante a sua equipe. A diferença entre um “produtor” e um “punidor” está no grau de confiança depositado em você. Se há confiança mútua, a estrada do êxito já está pavimentada.

“Sete anos no Tibet” (Seven years in Tibet, 1997), de Jean-Jacques Annaud, com Brad Pitt no papel do alpinista austríaco Heinrich Harrer, foi um projeto pessoal acalentado por Iain Smith durante 15 anos. A opressão da China no Tibet, obrigou a produção a se deslocar para os Andes argentinos, embora o filme inclua algumas tomadas secretamente realizadas no Himalaia (Reprodução)
No final do encontro, Maria Queiroz – roteirista e aluna do Curso de Cinema da Estácio de Sá – não escondeu o seu entusiasmo e declarou ao ÁS: “Ouvir profissionais maduros e verdadeiramente experientes é outra coisa. Cada palavra que sai da boca deles não é gratuita e carrega cicatrizes verdadeiras”.
Bacana!