*Por Andrey Costa
Tipo uma gangorra entre a tragicomédia da vida e o registro factual, “O Escândalo” (Bombshell, 2019) convida o público para um tour pelo universo sexista do mais assistido canal de televisão privado do mundo, a Fox News. A ambientação acelerada, as imagens picotadas, a câmera solta, os pontos de vista múltiplos que compõem um panorama e a ruptura, vez por outra, da quarta parede dão conta desta narrativa que traz à tona os bastidores do escândalo Bombshell (2016), que culminou no “pé na bunda” disfarçado de renúncia do presidente do canal Roger Ailes (John Lithgow, em atuação soberba) – braço direito da família Murdoch, dos magnatas da comunicação.

Coadjuvante altamente respeitado em Hollywood, para viver o super executivo da Fox Roger Ailes, John Lithgow ganhou o mesmo tipo de próteses que Gary Oldman recebeu para encarnar o rechonchudo Winston Churchill no longa que lhe deu o Oscar ano passado. Indicado duas vezes à estatueta de ‘Melhor Ator Coadjuvante’ nos anos 1980, há quem diga que, dessa vez, ele pode papar o prêmio. Ainda assim, Lithgow, de 74 anos, não foi indicado para o Globo de Ouro 2020 nessa categoria, perdendo para Brad Pitt (“Era uma vez em Hollywood”), Anthony Hopkins (“Dois Papas”), Al Pacino e Joe Pesci (ambos por “O irlandês”) e Tom Hanks (“Um lindo dia na vizinhança”) (Fotos: Reprodução)
Exibido em duas sessões no Festival do Rio, o longa de Jay Roach – que se tornou conhecido pela trilogia cômica que revisava os filmes de espião dos anos 1960/70, a partir de “Austin Powers: 000,um agente nada discreto” (1997) e o magistral “Trumbo -Lista Negra” (2015) – teve sua estreia antecipada no Brasil pelo distribuidor Paris Filmes para 16 de janeiro. Mais que seguir umas das principais tendências daquilo que resta hoje em Hollywood como cinema adulto – o drama com ares documentais de questões políticas e sociais prementes de hoje ou de um passado recente, vide “Spotlight; segredos revelados” (2015), “A grande aposta” (2015) ou “Cheney” (2018) -, a produção se insere em outra aposta dos estúdios para fisgar quem não está a fim de encarar produções de super-herois ou contos de fada live action: narrativas que denunciam a sexualização da mulher no showbizz e em outros meios, num viés que anda sendo incensado tanto nas premiações da indústria quanto via movimentos como o Time’s Up.

Na pele de Roger Ailes, John Lithgow consegue enganar a plateia durante boa parte da projeção de “O escândalo”, que chega a ficar em dúvida, assim como as suas vítimas – o elenco feminino das emissoras jornalísticas da Fox – se ele realmente tirava proveito de sua posição para assediar as profissionais ou se ele apenas era um obstinado presidente de canal na busca para oferecer a seu público aquilo que queria assistir e, por tabela, proporcionar lucros astronômicos ao conglomerado de Rupert Murdoch
Grosso modo, Roger Ailes esteve para o jornalismo televisivo como Harvey Weinstein foi para na Sétima Arte: responsável por tornar o braço jornalístico da Fox uma potência de lucro estratosférico, o chefão selecionava pessoalmente suas repórteres e âncoras através de critérios que pouco as diferenciavam de bonecas Barbie, enfatizando pernas, curvas e cabeleiras dignas de sex symbols. Para isso, ele se escorava numa professada expertise pelo gosto dos espectadores e na tal experiência em fotogenia. E, comumente, o executivo era chegadíssimo àquele processo de admissão que encurtava o tempo de seleção, abdicando dos psicotécnicos e reduzindo a trabalheira da equipe de recursos humanos: o teste do sofá.

Na pele da âncora Megyn Kelly (à dir.), Charlize Theron (dir.) rouba cena e é forte candidata ao Globo de Ouro de “Melhor Atriz’, além de exponencial pré-concorrente ao Oscar, podendo vir a receber sua segunda estatueta. Sobre sua interpretação, Kelly – hoje uma celebridade da TV desempregada – declarou ao Daily Mail: ” Ela parece esperta, parece uma boa mãe, então eu faria pior”. Contudo, do figurino à forma como a sul-africana incorpora seus maneirismos em cena, inclusive a famosa maneira como a jornalista faz biquinho com os lábios, dificilmente alguém faria melhor o papel… (Fotos: Reprodução)
Nesse registro quase de falso DOC, o óbvio é contado com o mínimo teor de dramatização, numa linguagem que aproxima o roteiro dos recursos usados pelos programas jornalísticos. Por dramatização aqui, entenda-se a escolha pelo reflexo panorâmico de um contexto, sem a menor possibilidade de se abraçar o melodrama. “O escândalo” tem quase um quê de reality show, nas passagens em que este é mais documental. Bem verdade que o ambiente cruel do jornalismo televisivo contribui para a frieza com que a história é contada, e essa crueza talvez maquie a ausência de emoção ao longo da projeção. Por outro lado, fica claro que, em momento algum, o diretor busca construir uma narrativa calcada no exagero emocional. Aqui, o dramalhão nem sequer é considerado opção. Para tanto, Roach conta com um trio de bonecas glaciais digno de temperaturas abaixo do zero grau celsius.

Trio de louras: “O escândalo” aposta num trio de protagonistas de gerações diferentes: Margot Robbie (29), Charlize Theron (44) e Nicole Kidman (52), numa produção que ainda conta com a premiada Allison Janney e Connie Britton (“American Horror Story”) (Foto: Divulgação)
A começar pela ótima Charlize Theron, típico exemplar da loura-cadáver no cinema atual, aquela com quem não se deve brincar. Sua Megyn Kelly é interpretada à risca, de forma segura até onde é possível, fazendo jus ao perfil da jornalista política dublê de apresentadora que não tolera gracejos relacionados à sua vida pessoal ou ao trabalho, como os sofridos via Twitter vindos do então candidato em 2016 à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, um desafeto, apesar de o canal apoiá-lo. Esse conflito é um dos pontos altos do filme: é quando o público fica com pena da moça, cuja rotina vira de pernas para o ar com os paparazzi invadindo sua privacidade familiar. Mas, fora uma ou outra resvalada nesse nível, Megyn costuma ser mesmo um trator de saia-lápis, do alto do seus high heeled shoes. Contudo, são as (poucas) inseguranças da personagem as responsáveis por, em alguma instância, humanizá-la nessa áspera narrativa. E é isso que acaba por transformá-la justamente num forte elo dentre as demais protagonistas que sofrem o assédio de Ailes.

Destaque entre o bom elenco de “O escândalo”, Charlize Theron concorre, pelo papel, ao Globo de Ouro 2020 de ‘Melhor Atriz’ com Scarlett Johansson (“Jojo Rabbit”), Saiorse Ronan (“Adoráveis Mulheres”), Renée Zellweger (“Judy”) e Cynthia Erivo (“Harriet”) (Foto: Divulgação)
Numa sequência de diferenças discrepantes entre as louras protagonistas (quando se enxerga o filme pela ótica da potência que cada personagem carrega), é a ex-Miss América Gretchen Carlson quem deflagra o tsunami de denúncias contra Ailes. Vivida com precisão por uma Nicole Kidman com direito à caracterização fidedigna (a estrela ganhou uma prótese de queixo digno da verdadeira), a jornalista de meia-idade é a vítima de assédio que, ao longo dos anos vai sendo descartada do colinho do chefe, conforme vai envelhecendo. Por tabelinha, acaba sendo empurrada para fora dos programas de melhor audiência para outros de horário non grato na grade, até ser chutada para valer. Apesar da premissa dramática – e do talento de Kidman -, a personagem é tratada de forma quase burocrática, clichê, aquém do potencial dramático da atriz.

No elevador e corredores da Fox News, âncoras do passado, presente e futuro da emissora dividiam mais que a experiência na condução dos telejornais: eram colegas de abusos sexuais (Foto: Divulgação)
Fora da curva mesmo, apenas a presença de uma terceira peça-chave no roteiro, o da beldade que trabalha na produção do programa de Carlson e acaba ganhando um programa próprio depois de se coagida a mostrar a calcinha para o chefe. Personagem de Margot Robbie que representa a plêiade de mulheres que passam por situações vexatórias na construção da carreira, pagando o preço que for, a sua jornalista representa a bola da vez: aquilo que Gretchen já foi um dia e que, graças à inexorável ação do tempo, todas deixarão de ser.
Confira abaixo o trailer oficial de “O Escândalo” (Divulgação) :
Recai sobre as três o imaginário masculino, já que a direção e o roteiro são deles, e não delas.O diretor Jay Roach e o roteirista Charles Randolph não se furtam a exercer o próprio ponto de vista deles, o de retratar como essas “investidas” do chefe chegam às promissoras funcionárias da emissora criada por Rupert Murdoch, (Malcolm McDowall), ainda que se trate de uma produção “mulherzinha”, no atual contexto de empoderamento. A quem interessar, um Google nas notícias da época já é suficiente para entender como o escândalo de assédio abalou as estruturas do entretenimento, mas, ainda assim, é um filme válido para se questionar o lugar de fala que para elas, novamente, foi retirado.
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