Produção que se beneficia de dois fenômenos – a ascensão de Margot Robbie na indústria e  o interesse do público por histórias de superherois estreladas por mulheres, fruto da atual nova onda de empoderamento feminino e do sucesso de “Mulher-Maravilha(Wonder Woman, de Patty Jenkins, 2017) – “Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa(Birds of Prey, Cathy Yan, Warner Bros., 2020) vem na rabeta da consagração de “Coringa(Joker, de Todd Phillips, 2019). Desde sua estreia e consagração no Festival de Veneza – e da enxurrada de estatuetas que anda recebendo na atual temporada de premiações, o longa para adultos que recria a origem de um dos vilões mais populares dos gibis sob uma ótica que o aproxima de Taxi Driver (idem, Martin Scorsese, Columbia Pictures, 1976) revelou que é possível renovar o gênero hoje mais lucrativo de Hollywood com charme, fugindo da fórmula repetida à exaustão pela Marvel Studios/Disney.

Depois de amargar fracassos e sucessos medianos nesta última década no segmento de realizações capitaneadas por justiceiros mascarados – um acinte considerando sua trajetória nesse campo ao longo dos últimos quarenta anos  –, a Warner Bros., detentora da DC Comics, editora que publica alguns dos mais icônicos personagens dos quadrinhos, como Superman e Batman, sossegou o facho em querer ser realista. O estúdio fez sua psicanálise e, de “Mulher-Maravilha” para cá, recebeu alta, descobrindo o caminho das pedras: como ser autoral (ou quase), assumindo para valer esse tipo de fantasia sem precisar ser sombria, resgatando aquele humor-pipoca para toda a família, visto em produções como “Aquaman(idem, de James Wan, 2028) e “Shazam!” (idem, de David F. Samberg, 2019). E respeitando o colorido do absurdo que é se arriscar a resolver o crime, em prol da humanidade, envergando uma máscara  e um uniforme mais vistoso que uma fantasia de mestre-sala.

O resultado está aí: “Aves de Rapina” pretende ser moderninho, pop, com linguagem de videoclipe. Parece ter saído da MTV dos bons tempos ou de uma canal abravanado do YouTube, sem preocupação nenhuma com a realidade. Prova disso é a cena em que a Arlequina (Robbie), a namorada do Coringa, emula a cena do beijo com macarrão de “A dama e o vagabundo(The Lady and The Tramp, de Clyde Geronimi e Wilfred Jackson, 1955) com uma hiena, substituindo a pasta por alguma jujuba da Fini, num debochado exercício de metalinguagem com o estúdio concorrente. Ou quando reproduz, numa versão gaiata, a famosa cena de Marilyn Monroe ensinando a plateia que um macho só vale a pena se vier acompanhado de dindim, de preferência na forma de diamantes, extraída do clássico “Os homens preferem as louras(Gentlemen Prefer Blondies, de Howard Hawks, Twentieth Century Fox, 1953). Sim, “Aves de Rapina” quer ser quite continental.

Em sua melhor forma, “Aves de Rapina” ganha quando a produção, também dirigida por uma mulher, se aproxima do nonsense, recriando situações que já foram vistas pelos fãs nerds nas HQs ou nos desenhos animados do estúdio veiculados na televisão, mas que podem também divertir o público mediano não tão enfronhado assim no universo dos superherois. Tudo bem. Para que ser realista num mundo assombrado por Trump e uma moçada que hoje aterroriza o mundo, direto de palácios presidenciais? No fundo, uma turminha muito mais letal que o Coringa ou o vilão Máscara Negra, exagerado chefão do crime em Gotham City interpretado por um Ewan McGregor mais barroco e esquisitão que a galeria de vilões do Batman dos anos 1960. O ator opta por uma linha de atuação mais burlesca que o pianista Liberace, suprassumo do pop rococó, num resultado que será absolutamente irritante para quem não se predispuser a embarcar no clima de brincadeira, pondo de lado qualquer compromisso com o mundo real.

Divertidinho sem ser exatamente original, mas cuidadosamente biscoiteiro para arrancar palmas do grande público, como uma selfie meticulosamente engendrada por uma blogueira, “Aves de Rapina” funciona, se afina com a diversão ligeira e descartável do mundo atual. Mas sofre de um pecadilho: a ausência de compromisso com o visual do heterogêneo grupo de vigilantes femininas do crime da DC usado nos gibis. No afã de querer ser inclusivo, o longa abusa da pluralidade, na diversidade de tipos, afastando os personagens de sua construção arquetípica original. Para agradar os chatos de plantão das redes sociais, muitas vezes a produção se concentra na belezura-padrãozinho loura Margot Robbie para se distanciar da semiótica dos gibis. Exemplo disso é uma Canário Negra (Jurnee Smollett-Bell) afroamericana que nada tem a ver com o biotipo blondie bombshell da heroína ou de uma Caçadora (Mary Elizabeth Winstead) que não parece alguém do naipe de Jacklyn Smith. Aves de Rapina na telona precisava ser “As Panteras” do universo dos metahumanos, mas não é. Isso incomoda, assim como o afastamento da caracterização dos personagens, no figurino e na make, das suas versões mais famosas. Risco desnecessário. Ainda bem que temos Margote/Arlequina.

 

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