Talvez os tresloucados anos 1920 seja uma daquelas épocas sobre as quais o público projete mais ludicamente seus desejos e sonhos ocultos. E Hollywood, a Fábrica de Ilusões, é sem dúvida a sua vitrine mais vistosa e trepidante. Foi nesse período de apenas dez anos (1919-1929) que grande parte do caótico mundo contemporâneo foi anunciada e modelada em termos sociais, comportamentais e artísticos. Espremida entre as duas mais pavorosas guerras da história da Humanidade, é compreensível que a geração dos “roaring twenties” tão bem retratada pelo escritor Scott Fitzgerald não alimentasse nenhuma grande aposta no futuro e caísse de boca no gozo do momento presente, das delícias e ilusões efêmeras proporcionadas pelos filmes, festas e drogas. Movida pelo apelo comercial que esse imaginário sempre exerceu sobre o público, a Paramount não hesitou em colocar 80 milhões de dólares nas mãos de Damien Chazelle para recriar em “Babilônia” (Babylon, 2022), uma visão meio embaçada entre o pessoal, o mitológico e o realista da Era do Jazz hollywoodiana

Apesar de rechaçado por parte da crítica, “Babilônia” segue em cartaz e perdeu força após a premiação do Globo de Ouro, no qual concorreu nas principais categorias, disputando agora a dois prêmios menores no próximo Oscar. (Foto: Divulgação)

Após “Os Fabelmans” de Steven Spielberg, outra incursão recentíssima na Hollywood de outrora, ÁS entra uma vez mais no túnel do tempo a fim de verificar in loco o quanto a extravagância, a vertigem, a licenciosidade e o escracho foram armas necessárias contra o conservadorismo vitoriano do século 19 ainda vigente para forjar uma nova arte que se tornaria imperial no século 20 – o Cinema. E para já entrarmos no clima da época, nada mais sugestivo do que esta reminiscência da atriz Gloria Swanson (1899-1983), um dos mais grandiosos ícones da “Hollywood Babilônia” e a estrela cadente do clássico “Crepúsculo dos Deuses” (1950), a ácida crônica de Billy Wilder sobre o período: “Naquela época, o público queria nos ver vivendo como reis e rainhas. Então, vivemos, ora! E porque não? Estávamos ganhando mais dinheiro do que jamais havíamos sonhado e não havia nenhuma razão para acreditar que isso um dia iria acabar“.

HOLLYWOOD: DE POMAR DA CALIFÓRNIA A “JARDIM DO PECADO”

Na sequência do Festim de Baltazar que reuniu 4.000 figurantes em “Intolerância” (1916), um dos épicos de David W. Griffith (1875-1948) que mudaram os rumos do cinema mundial, destacam-se os oito gigantescos elefantes modelados em gesso por artesãos trazidos da Itália. Um paquiderme também rouba a cena na primeira parte de “Babilônia” de Chazelle como metáfora debochada da espetacularização delirante que então reinava em Hollywood (Imagem; reprodução) 

ÁS desvenda referências de "Babilônia", de Damien Chazelle
Expoente de uma Hollywood recém-estabelecida como indústria, “Intolerância” (1916), de D. W. Griffith, é um marco da história cinematográfica. (Foto: Reprodução)

Em 1925, quando começa “Babilônia“, 50 milhões de americanos frequentavam semanalmente os 20.000 cinemas do país. E a Paramount, fundada dez anos antes, imperava em Hollywood acima de outros grandes estúdios já consolidados. Mas, ao lado dessas poderosas fábricas, proliferavam centenas de pequenas e médias produtoras como a Reliable Pictures Corp., satirizadas no filme de Chezelle como a desastrosa Kinoscope Studios (Imagem: reprodução) 

ÁS desvenda referências de "Babilônia", de Damien Chazelle
A Reliable Pictures foi um daqueles estúdios que despareceram na onda de fusões e falências entre a 1ª Era de Ouro de Hollywood e a alvorada do cinema falado. Surgida em 1933, durou pouco. Foi encampada pela Monogram Pictures em 1937. (Foto: Reprodução)

E por falar em desastres, os acidentes graves nos sets de filmagem – muitas vezes mortais – não eram incomuns. Embora Chezelle em “Babilônia” caricaturize a falta de segurança dos filmes da época, principalmente nas produções “B” ou “C”, repare a partir de 03:12 o acidente fatal envolvendo cavalos e dublês desta monumental sequência de corrida de bigas de “Ben-Hur” (1925), estrelada por Ramon Novarro e primeira superprodução da MGM (Fonte: YouTube)

Outro grave problema vivido pelos estúdios hollywoodianos, desde os anos 1920 e também satirizado em “Babilônia” na sequência das filmagens de uma batalha medieval, foram as greves de sua massa de trabalhadores. Uma das mais dramáticas jornadas grevistas da Meca do Cinema foi o chamado “Outono Quente” de 1945, cujo ápice se desenrolou na entrada da Warner Bros. em 5 de outubro, quando a pancadaria rolou solta (Imagem: reprodução)

ÁS desvenda referências de "Babilônia", de Damien Chazelle
Os sindicatos de categoria sempre atuaram fortemente na indústria cinematográfica e a mão de obra ainda hoje exerce seu poder de pressão em Hollywood. (Foto: Reprodução)

Babilônia” passa-se quase inteiramente durante o período de liberalização de costumes denominado “Pré-Código Hayes”. Esse mecanismo de autorregulação “moral” dos filmes foi criado em 1922, mas só efetivado em 1934 sob intensa pressão de forças políticas e religiosas conservadoras e de parte da imprensa que hipocritamente demonizavam as películas e as estrelas de Hollywood. Musicais “licenciosos” como “Cavadoras de Ouro” (1933), lançado no auge da Depressão, por exemplo, tiveram suas produções interrompidas (Imagem: Reprodução) 

ÁS desvenda referências de "Babilônia", de Damien Chazelle
Produções em preto e branco com coreografias caleidoscópicas, como aquelas que o lendário Busby Berkeley dirigiu para a Warner Bros. na virada dos anos 1930, como “Cavadoras de Ouro”, comparecem como pano de fundo em “Babilônia”. (Foto: Reprodução)

Em “Babilônia“, a personagem Lady Fay Zhu (Li Jun Li), uma cantora de cabaré sino-americana, literalmente copia um dos momentos “lesbian chic” mais cultuados do cinema e imortalizado por Marlene Dietrich (1901-1992) no clássico da Paramount “Marrocos” (1930), do diretor vienense Joseph Von Sternberg (1894-1969). O “lesbian chic” foi um jeito elegante e hype de encenar a homossexualidade de muitas estrelas de Hollywood e de mulheres do “grand monde” (Imagem: Reprodução)


Nessa fase “Pré-Código”, Hollywood abordava ora de forma realista ora sensacionalista as consequências dos vícios cada vez mais disseminados na sociedade americana, sem ocultá-las, inclusive aquelas indiretamente provocadas pelas políticas repressoras como a “Lei Seca” que vigorou entre 1920 e 1933.  Aqui vemos Mildred (Bette Davis) drogada e tuberculosa no final de “Escravos do desejo” (1934), filme que elevou Davis ao estrelato (Imagem: reprodução) 

ÁS desvenda referências de "Babilônia", de Damien Chazelle
Na ponte entre a Era de Ouro e os tempos atuais, Damien Chazelle se esmera em retratar a protagonista vivida por Margot Robbie com aspecto que não apenas reproduz a aparência junkie das estrelas de outrora nas telas, em dramas sobre vício, como muitas vezes elas foram na vida real, longe dos holofotes. Na imagem, Bette Davis em sua primeira produção de gandre destaque. (Foto: Reprodução)

Por sua vez, Hollywood e os tabloides que promoviam seus filmes e estrelas alimentavam as cruzadas moralistas com suculentos escândalos e crimes hediondos. Em outubro de 1922, em meio a uma orgia num hotel de São Francisco, o popularíssimo comediante Fatty Arbuckle (1887-1933), apelidado como Chico Boia no Brasil, estuprou com uma garrafa Virginia Rappe, modelo e aspirante a atriz levada a óbito alguns dias depois. Esse caso é um dos episódios que “agitam” a festa inicial de “Babilônia” nas figuras de Orville Pickwick (Troy Metcalf) e Jane Thorton (Phoebe Tonkin) (Imagem: Reprodução)

Nova produção de Damien Chazelle é repleta de referências à 1ª Era de Ouro de Hollywood
Mais popular que Charles Chaplin no seu auge, o comediante Fatty Arbuckle (na imagem pequena) teve a carreira destruída após se envolver em escândalo sexual. Foi sumariamente cancelado. (Fotos: Reprodução)

O esquizofrênico código moral do público de cinema americano – oscilando entre o puritanismo e a excitação do imaginário sexual despertado pelos filmes – foi espetacularmente explorado por diretores como Cecil B. DeMille (1881-1959) que mesclava narrativas bíblicas com a mais descarada erotização da mise en scène, umrecurso astuto para iludir os censores, como em “O sinal da cruz” (1932) em que mensagens cristãs são intercaladas com cenas da depravada corte de Nero (Charles Laughton) (Imagem: Reprodução)

Nova produção de Damien Chazelle é repleta de referências à 1ª Era de Ouro de Hollywood
O nível de liberdade dos estúdios de cinema nos anos 1920 e o recrudescimento da vigilância moral, após os códigos de conduta ganharem força, são suavemente abordados ao longo da narrativa de “Babilônia”. (Foto: Reprodução)

Na galeria de personagens de “Babilônia” destaca-se um que foi tirado diretamente da história de Hollywood, sem disfarces: o lendário vice-presidente de produção da Metro-Goldwin-Mayer Irving Thalberg (1899-1936) que desde 1937, logo após a sua morte prematura, batiza o prêmio mais honorífico da Academia, o Irving G. Thalberg Memorial Award. Com inteligência, sensibilidade e refinamento, o enigmático Thalberg (Max Minghella) elevou a MGM à posição de maior estúdio hollywoodiano, suplantando a Paramount, ao perceber que a fórmula para manter o público fascinado pelos filmes sob a onda conservadora que começava a assolar a indústria, era sublimar o erotismo através da glamurização máxima das imagens (Imagem: Reprodução) 

Nova produção de Damien Chazelle é repleta de referências à 1ª Era de Ouro de Hollywood
Retratado na produção, o produtor de filmes Irving Thalberg morreu precocemente em 1936. Sobre a sua passagem, o lendário diretor Cecil B. De Mille afirmou “que existiam centenas de executivos em Hollywood, mas apenas cerca de meia-dúzia com o genuíno talento para fazer filmes e, dentre estes, Thalberg foi um dos maiores. (Fotos: Divulgação)

DEUSES DISTANTES ANOS-LUZ DE QUALQUER CELEBRIDADE DIGITAL

Recentemente, Quentin Tarantino esculhambou com os conceitos de “astro” e “estrela” da Hollywood atual. Segundo ele, os supostos ídolos do público não passam de rostos mascarados de super-heróis e de corpos esculpidos com látex, que gesticulam para telas verdes vazias sobre as quais serão aplicadas camadas de efeitos digitais na pós-produção. Quando estudamos a popularidade e o “star power” alcançados pelos artistas cinematográficos hollywoodianos entre 1920 e 1950 que inspiraram os personagens de “Babilônia“, ficamos com a incômoda impressão de que a irritação de Tarantino tem fundamento…

Nova produção de Damien Chazelle é repleta de referências à 1ª Era de Ouro de Hollywood
Embora cheia de bossa e humor, a interpretação de Brad Pitt como Jack Conrad, o astro decadente e inadequado aos filmes falados, não condiz com os dramas realmente vividos pelo seu modelo John Gilbert (1897-1936), herdeiro da coroa de “great lover” das telas após a morte precoce de Rodolfo Valentino em 1926. Gilbert passou o rodo em dezenas de colegas atrizes, mas foi publicamente humilhado pelo seu grande amor Greta Garbo que desistiu no último momento do casamento e o deixou plantado no altar, além da carreira sabotada pelo chefão da Metro Louis B. Mayer (Imagem: Reprodução)

Nova produção de Damien Chazelle é repleta de referências à 1ª Era de Ouro de Hollywood
A tresloucada aspirante à fama Nellie LaRoy (Margot Robbie) tem sido apontada como um decalque da super estrela da Paramount e a mais rentável da indústria entre 1926 e 1930 – Clara Bow (1905-1965), a garota do It e protótipo da flapper, isto é, a “garota moderna” dos Anos Loucos. Na verdade, Chazelle carregou nas tintas ao despejar sobre as costas de Margot Robbie a personalidade de muitas outras divas cinematográficas. Esse peso prejudicou a atriz. Na foto, Clara Bow como a insolente aluna aboletada sobre a mesa de Fredric March em “Garotas na farra” (1929), dirigido por Dorothy Arzner (1897-1979), também citada em “Babilônia” como a diretora Ruth Adler (Olivia Hamilton). Abaixo, outras inspirações para a composição de Nellie LaRoy (Imagem: Reprodução)

Se Clara Bow foi a flapper desinibida, acelerada e provocante por excelência, a encantadora Colleen Moore (1899-1988) representou a garota moderna despreocupada e manipuladora de pais e namoradinhos perplexos diante da energia desse novo tipo de jovem. Moore foi a típica flapper-estudante, ironizada na engraçada cena de “Babilônia” em que Nellie LaRoy faz a sua primeira e sofrida cena de um filme falado. Nos fragmentos abaixo de “Ver para crer” (Why be good?, 1929), repare na atualidade eterna do look Chanel  (Imagem: Reprodução)

Outro arquétipo fundamental de mulher que nos anos 1910-1920 elevou ao estrelato Theda Bara, Pola Negri, Gloria Swanson ou Barbara La Marr foi o da vamp, um híbrido de diva misteriosa – geralmente morena e de beleza exótica – com devoradora de homens fracos e masoquistas. Esse também é o caso da vampiresca atriz húngara Lya de Putti (1897-1931), importada por Hollywood em 1926 e satirizada em “Babilônia” como Ina Conrad (Olivia Wilde), uma das mulheres de Jack Conrad, que aparece arrebentando a mobília enquanto vocifera em húngaro (Imagem: Reprodução)

Nova produção de Damien Chazelle é repleta de referências à 1ª Era de Ouro de Hollywood
Lya de Putti (Foto: Reprodução)

A notável estrela sino-americana Anna May Wong (1905-1961) foi belamente homenageada pela personagem Lady Fay Zhu (Li Jun Li), uma cantora de cabaré que trabalha como desenhista de intertítulos dos filmes. Durante mais de 40 anos de carreira em que foi a sensação em grandes clássicos, como “Expresso de Xangai” (1932), Wong raramente conseguiu ser a protagonista, até mesmo nos filmes ambientados na China devido às cláusulas antimiscigenação do Código Hays que obrigavam os intérpretes brancos a atuar com yellowface (Imagem: Reprodução)

Nova produção de Damien Chazelle é repleta de referências à 1ª Era de Ouro de Hollywood
Anna May Wong (Foto: Reprodução)

Se o yellowface era compulsório para os intérpretes brancos protagonizando personagens do Extremo-Oriente, a tenebrosa prática do blackface foi ainda mais naturalizada na Hollywood retratada em “Babilônia“. No filme de Chazelle, o trompetista de jazz Sidney Palmer (Jovan Adepo) é submetido ao blackface para poder atuar ao lado de outros músicos mais escuros do que ele. Esta cena do musical “Panama Hattie” (1942) com a cantora e atriz Lena Horne (1917-2010) foi cortada para distribuição no mercado sulista dos Estados Unidos por ser inaceitável uma negra, mesmo de pela clara como Lena, desfrutar um banho de espuma (Imagem: Reprodução)

Nova produção de Damien Chazelle é repleta de referências à 1ª Era de Ouro de Hollywood
Lena Horne (Foto: Reprodução)

BYE, BYE, JAZZ BABIES!

Hot Jazzflappers atrevidas, calhambeques desgovernados, deusas do cinema arrastando casacos de pele, free delivery de ópio-heroina-cocaina, pirâmides de taças de champagne… Em 1929, todo esse frenesi sucumbiu repentinamente com o crash da Bolsa de Nova York, em 1929, e – segundo uma visão moderadora – devido  aos seus próprios excessos e autocomplacência. Kenneth Anger, o cultuado cineasta underground  e autor das não menos cultuadas crônicas de escândalos “Hollywood Babylon” (1959)  e “Hollywood Babylon II” (1986) definiu a verdadeira Era de Ouro de Hollywood como “um luxuoso e extravagante piquenique sobre um precipício prestes a desabar“.  Bem, neste caso, que tal um charleston alucinante antes do desastre? 

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