Furioso pela matéria nada abonadora publicada pela colunista de futricos Elinor Saint John (Jean Smart, excelente, em papel que equivale às lendárias jornalistas de celebridades Louella Parsons e Hedda Hopper), o astro decadente Jack Conrad (um Brad Pitt inspirado) adentra a sua casa para tomar satisfação com a revista em punhos, cuja chamada de capa dá a entender que sua carreira foi para o espaço. Ao questioná-la sobre a finalidade dada à entrevista, a velhaca é cirúrgica: o sucesso havia finalmente lhe dado às costas, seu o tempo acabado e só lhe restava aceitar a aposentadoria forçada ladeira abaixo, mas, mesmo assim, ele permaneceria um afortunado em comparação com a massa de meros mortais: toda a vez que alguém revisse alguns dos seus filmes, mesmo décadas adiante, ele viveria para sempre graças ao seu legado. Resignado com a sua recém-adquirida condição de memorabilia hollywoodiana, o agora veneno de bilheteria sai do recinto de cabeça baixa, mas pacificado, procurando se contentar com essa sua nova função na Meca do Cinema. Tal como Conrad, é tanto com sangue nos olhos para se manter no topo quanto com a reverência à Hollywood clássica que Damien Chazelle procura emular novamente o sucesso alcançado com o excelente “Whiplash: em busca de perfeição” (2014) e o avassalador “La La Land: cantando estações” (2016) no irregular “Babilônia(Babylon, Paramount Pictures, 2023), que acaba de entrar em cartaz.

Confira abaixo o trailer oficial de “Babilônia” (Divulgação):

O argumento surrado – da ascensão e decadência no showbizz – já rendeu pérolas ásperas como as duas primeiras versões de “Nasce uma estrela” (1937 e 1954) e babas medíocres, mas bem trabalhadas do ponto de vista publicitário, como as duas últimas versões (1976 e 2018). E produções que se tornaram a radiografia de uma Hollywood cruel e um star system do capeta, como o visceral “Crepúsculo dos Deuses” (1950), a minissérie “Mercadores de Sonhos” (1980), baseada no livro homônimo de Harold Robbins, e o inestimável “Cantando na Chuva” (1952), sobre o qual Chazelle se debruça mais em seu rol de homenagens, nessa babilônia supostamente panorâmica, para contar a história quatro personagens cujas vidas serão definitivamente abaladas pelo advento do cinema falado, do sucesso à decadência.

Nova produção do diretor de "La La Land", "Babilônia" é babel confusa.
“Babilônia”: Brad Pitt e o mexicano Diego Calva seguram bem as interpretações de personagens que são arquétipos da primeira Era de Ouro de Hollywood (Foto: Divulgação)

Dentre eles – além do galã (Pitt) inspirado no igualmente sedutor John Gilbert (1897-1936); do mexicano que, de assistente de set galga o topo até chegar à função de alto-executivo dos estúdios (Diego Calva, de “Narcos: México”); e do músico de jazz negro que encontra nas telas a possibilidade de ascender (Jovan Adepo, muito mal aproveitado, só para possivelmente Chazelle flanar nas redes socais com sua escalação de cotas) –, é destaque a starlet Nellie Le Roy (Margot Robbie), genial, mas prejudicada pela caracterização que, para aproximar os distantes anos 1920/30 à plateia atual, faz concessões artísticas excessivas que a distanciam do visual da garota com it Clara Bow (1905-1965), inspiração original para o seu personagem, em prol de um look “modelete drogada mais palatável para uma plateia Geração Z que, munida do seu corolário de bom-mocismo, vai achar “Babilônia” o máximo. Bom, semiótica, physique du rôle e um pouco de realidade histórica não fazem mal a ninguém, tá okay?   

Nova produção do diretor de "La La Land", "Babilônia" é babel confusa.
Margot Robbie interpreta a candidata à atriz que ascende vertiginosamente em Hollywood. A primeira escolha de Damien Chazelle para o papel foi Emma Stone, com quem trabalhou em “La La Land”, mas a agenda da estrela não casou com o cronograma de produção, sendo substituída por Robbie. (Foto: Divulgação)
Em "Babilônia", Margot Robbie interpreta atriz inspirada na garota com it Clara Bow.
A personagem de Margot Robbie é livremente inspirada na atriz que dominou as comédias românticas hollywoodianas na segunda metade dos anos 1920, Clara Bow. Na vida real, Bow nada se parece fisicamente com aquela vivida por Robbie em “Babilônia”, mas sua presença irresistível – Clara Bow era conhecida como a “garota com it” – é explorada na interpretação magnética da loura. (Foto: Divulgação)

Vítima do desejo de reproduzir o sucesso de “La La Land”, o diretor não mede esforços, mas acaba dando com o burro n’água. Para tanto, até moderniza (em excesso) a estética da narrativa que cobre do auge do cinema mudo aos primeiros anos do cinema falado, a começar pela sequência inicial de abertura que reproduz uma daquelas festas de arromba dos Anos Loucos californianos. Tudo over, claro, com direito a muito champanhe, cocaína, rapé e putaria, quase no estilo que Baz Luhrmann gosta e já havia feito parecido tanto com o baile de máscaras disco do seu “Romeu + Julieta” (1996) quanto com as festas bafonicas de “O Grande Gatsby” (2013).

Nova produção do diretor de "La La Land", "Babilônia" é babel confusa.
Quase rave com dark room: Chazelle procura criar um paralelo entre os rega-bofes dos anos 1920 e as festanças do grand monde atual, utilizando elementos visuais de hoje, música moderna e comportamento contemporâneo nesta grande cena inaugural de “Babilônia”. (Divulgação)

“Babilônia”, aliás, começa bem: impactante, ainda que esse proibidão Novo Milênio dilua excessivamente o charme do período histórico ao aproximar o resultado estético de um agito de responsa que poderia ter acontecido no último final de semana, em uma mansão em Ibiza, daqueles que Shakira faria uma música caso descobrisse o ex-marido, o jogador Piqué, participando.

Mas, paramos por aí. Até, convenhamos, não teria existido o desbunde irrestrito dos anos setenta, nem a ferveção dessa virada de milênio, se não houvessem surgido antes os anos vinte, pleníssimos no ZeitGeist de exacerbar o hedonismo após uma guerra mundial e uma pandemia global. Aliás, tudo a ver com esses tempos atuais pós-covid e pré-hecatombe ambiental. Essa ponte Chazelle faz com louvor. Porém, nesse ímpeto de causar, essa duvidosa primeira escolha, com seus prós e contras, já antecipa a série de equívocos que vão se desfiar ao longo da projeção já que, com o escotismo de vitrine das redes sociais, qualquer surubão de Noronha hoje é pinto perto de uma festinha dos twenties. Melhor seria, quem sabe, não se afastar tanto da reprodução histórica, e essa estranheza é só o início.

Requinte de realização: são primorosas as sequências de “Babilônia” que procuram reproduzir o emocionante frenesi do dia a dia de filmagens naquela Hollywood precursora, quando os processos de produção já eram extremamente sofisticados em uma indústria que já se encontrava em hegemonia global. (Foto: Reprodução)

De fato, a adaptação daqueles assanhadíssimos rega-bofes para a realidade contemporânea, se vai agradar em cheio as novas gerações, enfraquece bastante a compreensão do período tão singular em que a narrativa passa: a passagem do libertário Cinema Mudo para o Cinema Falado, em pouco tempo amarradíssimo por um caretíssimo código de condutas que forçaria os diretores a serem mais criativos que nunca para darem conta do recado.

Referências da história do cinema pululam na nova produção de Damien Chazelle. C
Repleta de easter eggs, a nova produção de Damien Chazelle transborda em referências bizarras pinçadas dos anais da Sétima Arte, como a presença de Topsy, elefanta cuja morte, por eletrochoque, foi filmada em 1903, e até a tragédia que se abateu sobre o popular comediante Fatty Arbuckle (Chico Boia no Brasil), cuja carreira evaporou da noite para o dia quando foi pego com a boca na botija em uma orgia que acabou levando uma prostituta à morte. (Foto: Divulgação)

Deslumbrado pela intenção de superar a si mesmo, Damien Chazelle se rende às ciladas que arma para si próprio já a partir do roteiro, a começar pelas três horas de projeção, duração que não se sustenta se o longa-metragem não for muito redondo. No percurso, o diretor aposta em blocos que celebram diferentes gêneros do cinema – drama, comédia, romance, aventura, noir, até um terror que flerta com o gore, no final –, e acaba se saindo melhor nas primeiras partes, quando o panteão de referências ainda flui, que nos últimos, quando perde de vez o fio da meada.

Confira abaixo essas entrevistas de bastidores de “Babilônia e tire suas conclusões (Divulgação):   

Ao querer reinventar a roda, “Babilônia” escorrega no quiabo. Mesmo com a boa ideia de se propor a recontar “Cantando na chuva” sob o ponto de vista não do trio de protagonistas da realização dirigida por Stanley Donen, mas pela ótica de personagem equivalente à interpretada pela coadjuvante Jean Hagen, Chazelle descamba na hora de flanar por um tema que ainda rende preciosidades como inspiradíssimo “O Artista” (2011), que dividiu os principais Oscars de 2012 com outro filme que também celebra a história do cinema, “A Invenção de Hugo Cabret”. Com menos pretensão, talvez o resultado de “Babilônia” fosse outro, mesmo com a ajudinha que Hollywood costuma das àquelas produções que falam sobre a Sétima Arte. Pena que ele foi arrogante. Como dizia o antigo chefão da MGM, Samuel Goldwyn (1879-1974), “ninguém nunca perdeu dinheiro por subestimar o público”.   

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