Vamos combinar: todo ano morre gente, mas 2022 foi mesmo um ano de lascar. Estranhíssimo. Muita coisa rolou, assustou e apavorou, das novas cepas de covid a uma guerra que atinge a Europa, mas tem feitos globais devastadores, com Putin ameaçando toda hora pesar o dedo no botão vermelho, passando por inflação alta, recessão e ameaças fascistas ao redor do globo. O extremismo supremacista andou por aqui e ali de mãos dadas com o fundamentalismo religioso e a burrice intrínseca, inclusive em um Brasil que acreditávamos ser pacífico. Eleição se tornou ultimate fight. Exercer a democracia, tudo, menos light. O terraplanismo virou moda em dias em que a moda nunca esteve tão fora de moda, com o desaparecimento de estilistas-celebridade a granel. Por falar em modismo, filme da Marvel já não dá mais o mesmo lucro, quem diria, com gente fina, elegante e sincera, como Martin Scorsese e Quentin Tarantino, abrindo o bico para dizer que os super-heróis nocautearam Hollywood. E, se a onda for celebridade de olho nas benesses da monarquia, qualquer que o tipo, mas que, por se levar a sério demais, provavelmente jamais vai alcançar o topo da majestade, que tal a comediante GKay esperneando por se tornar pastiche pelas mãos da realeza do humor, na Globo, após uma farofa malsucedida nada digna de encorpar rega-bofes reais? Ou a notícia de que podemos estar entrando em novo processo de extinção em massa, alavancado dessa vez pela mão humana – uma novidade por aqui em termos de Ragnarok? É de ranger os dentes. Tudo isso impressionou, mas, convenhamos, nada causou mais temor que a quantidade de gente boa, cada um no seu quadrado, que passou dessa para melhor, mesmo considerando que, da forma como vai o mundo, para eles foi upgrading, concorda? Dentre o povo que deu bye-bye, o ápice rolou em uma inacreditável quinta-feira, 8 de setembro, quando aconteceu aquilo que todos temíamos há tempos, sublimando o medo através de memes que apostavam nela como uma espécie criatura imorredoura: a passagem da Rainha da Grã-Bretanha Elizabeth II, aos 96 anos. Ali veio a constatação: sim, 2022 foi o ano que derrubou a realeza.

Betinha não foi, em nível de importância, a primeira a bater as botas nesse ano. Soberanos de várias áreas partiram. Já no verão, caiu o pano do suprassumo do espetáculo em uma passarela, o estilista Thierry Mugler, 73; o genial diretor de cinema, crítico e jornalista Arnaldo Jabor, 81,nos deixou; e a diva divine Elza Soares, 91,fez forfait na vida. Todos foram grandes, aliás, grandíssimos. Perto deles, a vida ficou pequena e, sem eles, corre o risco de desaparecer em um grão, como aquele mundinho diminuto do desenho infantil “Horton e o Mundo dos Quem” (2008).


Nesse ocaso de trono geral e irrestrito, esse final de ano foi mesmo um desalento. No mesmo dia, outra quinta (29/12), levantaram voo quase no atacado o Rei Pelé, 82, e a Rainha do Punk Vivienne Westwood, 81, dois dias antes da morte do sumo-pontífice, o Papa Emérito Bento XVI, 95, que nos deixou na boca de 2023, neste sábado (31/12). Dá para parar de pregar peça na gente, vida? Se a morte do atleta do século foi de chorar, ainda que todos já estivéssemos preparados para essa possibilidade, dados os inúmeros percalços de saúde nos últimos tempos, a inglesa deixou fashionistas de calça arriada. Ao contrário do rei da bola, ninguém andava dando a menor bola para a rebeldíssima Westwood já ter passado dos oitenta. Afinal, considerando o inegável aumento da expectativa de vida, quem esperaria a partida tão cedo daquela que reinou no exato encontro entre o roto e o esfarrapado com os signos da soberania, como o tartan, brasões nobiliárquicos e o corte impecável à la Saville Row? Sim, está valendo a máxima do punk: “The queen is dead”.

Mas a ruiva e Mugler não são os únicos do mundinho fashion a vestir um paletó de jacarandá. Em agosto, foi vez de Issey Miyake, 84. Rei dos plissados, sua trajetória ora em preto e branco, ora coloridíssima, provou que não existe Hirohito ou Akihito; no Japão, o imperador do minimalismo sentou no trono do japonismo atemporal, regendo sobre formas simples e tecidos tecnológicos. Vazou em um lampejo, deixando o trono vago, sem sucessão.

Nesse arrebatamento, quase no sentido bíblico apocalíptico, desapareceram a majestosa voz de Gal Costa, reis de todos os tipos, do humor Jo Soares e Cláudia Jimenez e do rock Jerry Lee Lewis, as monarcas das letras Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon, aspapisas do colunismo social Anna Ramalho e Danuza Leão, as disco queens Olivia Newton-John e Irene Cara, e aquele que inaugurou toda uma dinastia de atores negros hoje a receberem, do alto de sua soberania, não por herança de nascença, mas por trono conquistado, o Oscar por uma atuação protagonista, Sidney Poitier, entre tantos outros. Haja coração.
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