*Por Andrey Costa
O largo, o justo, o comprido, o curto, o rústico, o tecnológico, o estampado, o liso; todos os padrões já foram feitos. O que a moda ainda pode nos ofertar? Bem, na 48ª edição da São Paulo Fashion Week, tudo isso e um pouco mais foi oferecido. O questionamento que ainda sublinha a semana de moda, porém, foi acrescido por outro: como um evento que vem se reinventando pode se recriar sem perder a essência, se atualizando na marola dos acontecimentos, conforme o vai-vem da maré? A resposta veio de modo pontual, de maneiraa que, somadas, resultaram em sustentabilidade e inovação, dentro de uma quebra abrupta entre a cadeia que move o setor e as investidas para agregar valor às brands. Ssim, a necessidade de ser inclusivo fez seu dever de casa: democratizou a palavrinha “moda” para o público como nunca. Sem balela, real. Consolidou um processo que já vinha sendo construído há pelo menos três edições e agora está pleno. Na passarela, nas grifes, nos castings, backstages e na plateia, tudo cheira a novo, sem ranço.

Black is beautiful e põe black nisso! Novidade da SPFWN48, Angela Brito personificou a edição em que os modelos negros foram maioria nos castings! (Foto: Zé Takahashi / Fotosite / Divulgação)
Bom, ainda persiste economia monástica na estrutura. Sinal de tempos bicudos não só na moda, mas geral. Mas, apesar de isso causar certa estranheza, é indiscutível: algo novo está no ar. É verdade: se por um lado persiste alguma sensação de incômodo, de algo ainda incompreensível, um je na sais quoi, ÁS presume que possa ser equivalente àqueles períodos da história que depois ficariam marcados por turning points: os anos que antecederam a virada do Antigo Regime para o Novo Regime na França; a Secessão Vienense no Império Austro-Húngaro; a modernidade dos anos loucos em Paris; e a Berlim em ebulição na década e meia que antecedeu ao firmamento do nazismo no poder. Ou ainda aquele alvorecer dos anos 1960, quando a Revolução de Costumes já se anunciava, mas as pessoas ainda ouviam Cely Campello na mesma proporção com que se alvoroçavam com a chegada do anticoncepcional nos rala-e-rolas sob o banho de lua. Em menor escala, o SPFW esteve assim nesta última edição: : carrega a sensação de que alguma coisa está por vir, sentimento tão inquietante quanto bom.É sinal de mexida, de mudança. Então, se algum espírito de porco, daqueles que já lançam perguntas capciosas para exalar haterismo vier se engraçar, ÁS vai logo avisando: a semana de moda foi ótima, amor! A dança das cadeiras no line-up foi positiva e quem da velha guarda sobreviveu permanece desfilando em boa forma, viu?
Enxugando ao máximo o que podia, o SPFW N48 apresentou boas coleções comerciais, dentre algumas bastante conceituais, recheadas por lançamentos de novos estilistas e marcas novatas que se encarregaram de imprimir frescor a uma semana de moda em reconstrução. Isso é bom. Bom não, excelente. Caso se tratasse da reforma de um prédio em Madri, certamente haveria um tapume com a placa Llegamos desculparnos las molestias (perdão pelo transtorno). Nesse retrofit pelo qual o evento passa, não houve tapume nem placa. Somente percurso. Assim como a vida, the show must go on e a plataforma vai assim, seguindo adiante, se ajustando, se revelando criativa. Sem placa porque é vida que segue. O evento, que daqui a duas edições completa meia centena de anos de trajetória, está aí e permanece. Uma façanha e tanto, quando se considera o Brasil de ontem e hoje. Nesse panorama, coleções se destacaram misturando tudo isso, sem esquecer o essencial: aliar criação a mercado. Confira o nosso Top 10 das labels que se reconstruíram ao se desconstruir!
Fernanda Yamamoto
Sensível, belo e urgente. O desfile de Fernanda Yamamoto na 48ª edição da SPFW facilmente pode vir a ser lembrado como um desfile de redenção, seja ela criativa ou contemplativa. No ano em que a marca completa 10 anos de existência, todas as peças modeladas e costuradas são frutos do reaproveitamento têxtil de coleções passadas. Mostrando pensar tanto no produto quanto no conteúdo, a coleção é ode a um upcycling genuíno, que percorre essa sincera trajetória slow fashion, enquanto revisa o passado e saúda o futuro. “…Não será jamais pelo mal tocado, seu eu profundo não é nunca profanado, só mesmo o tolo nega do amor o apostolado e a seus apóstolos diz que vivem em pecado.”, dizia a canção entoada por um Chico César ao vivo, enquanto om público via na passarela peças reeditadas, sem parecerem mais do mesmo. Afinal, a marca amadureceu num ponto equilibradíssimo entre design e proposta. O que se percebe, além da desconstrução que se dá às modelagens, é que esta não pretende eclipsar nada daquilo que já tenha sido feito. São vestidos, saias godê, casacões, peças que carregam essa bagagem num american kilt que pode continuar sendo repensado, recozido, recriado, transportando para as roupas a mesma emoção que tocou cada pessoa presente nesse desfile honestíssimo.
Lucas Leão
Lucas Leão é do tipo que prima pela construção bem acabada de suas criações. Para esta sua terceira aparição na passarela do Projeto Estufa, o rapaz apresentou uma coleção libertária no sentido literal: buscou em referências históricas na busca pela subversão, resultando num escape criativo utilitário. A seleção de cores é primorosa, de um refinamento extremamente coerente aliado à estamparia que ele costuma apresentar. Além do conhecimento em manipulação têxtil que ele também explora em alguns momentos. Peças utilitárias neutras, seguidas por pinceladas em tons cítricos, desaguam nas suas impressões abstratas, envolventes e vivas. Tudo isso sob o precioso styling de Daniel Ueda.
Angela Brito
Para o inverno 2020, Angela Brito levou a cliente a um bosque florido, assim como a estamparia de sua nova coleção. Com um casting totalmente de modelos negras, a cabo-verdense que vive no Rio soube apresentar uma alfaiataria que conversa lindamente com a sensualidade da mulher que a veste. Refinadíssimas, as peças são mistura de modelagens soltinhas, ajustadas por tops e harness assimétricos e corsets desconstruídos, tudo numa charmosa paletinha terrosa, uma boa aposta. Os vestidos vieram lisos ou estampados pelos florais pintados à mão por Marcos Florentino, fotógrafo do duo MAR-VIN. Aliás, as estampas são quase uma tela de Odilon Redon de tão abstratas, mas sem a dramaticidade para não mostrar o óbvio. Às vezes não é preciso…
Another Place
A Another Place, feita pelo estilista Rafael Nascimento apresentou sua coleção após a exibição do registro fílmico “Looking For A New Place To Begin“, estrelado pelo ator Johnny Massaro, que mostra de uma vida sob o palco à uma relação interpessoal vulnerável, cheia de atritos, discussão da fluidez das relações, depressão, vida pós-internet, etc. Parece cabeça para uma label que se fez na venda on-line? Okay, é. E qual om problema? Afinal, temos os lookinhos no pano de fundo, não? Ou seria na dianteira? A coleção tem peças que brincam com a fluidez de gênero e estampas greco-romanas, elementos da astrologia e, se compararmos às coleções anteriores embebidas por um streetswear grosseiro e já saturado, a composição agora está mais refinada. No final, no Teatro Itália, o concerto-desfile teve a “live“ de Johnny Bravo, bravíssimo, com trilha assinada pela cantora Barbara Ohana e pelo musicista Gaspar Pini.
João Pimenta
Felizmente sapatão. Na sua eterna brincadeira de surfar entre os gêneros para sua marca de moda masculina, João Pimenta costuma apresentar coleções coloridinhas, delicadas e até infantilizadas. Mas, no SPFW 48, o moço quis dar o que falar. Talvez a bagagem adquirida no teatro (ele anda vestindo muitos espetáculos por aí…), tenha sido, sem dúvida, um vetor nessa transformação: o universo lésbico deu a roupagem nas peças do moço, que se desdobrou entre os perfis que circundam a letra L da sigla LGBTQI+. Enquanto a trilha da artista GA31 rolava, as peças desfiladas mostravam as referências entre seios bordados, camisões abotoados a casacos, conjuntos de renda, sobretudos de jacquard matesselado, shorts de dormir em cetim à mostra: uma conversão esperta entre o masculino da marca e as interferências do armário feminino.
Korshi 01
Outra que soube fazer o bom uso de peças já existentes foi a Korshi 01, de Pedro Korshi e Albner Luz. Num mix preciso de tons terrosos e cores fortes (azul, amarelo, coral, vermelho) sempre quebrados pela interferência de um acessório, corset ou underwear precioso. A cantora Urias, uma das modelos trans do desfile, envergou aquele combo que facilmente pode definir essa mèlange: casaco trench coat acinturado por um corset de alfaiataria preto. Sexy agora é ser classy, amor. Jeans e náilon se misturam ao styling com chinelos de dedo e Crocs (uy!!!, jura?), seguidos por criações tão fortes quanto a personalidade do squad de modelos. A coleção envereda por uma moda disruptiva utilitária, nada básica, cheia de interferências que podem fazer com que elas tenham até nove utilidades em propostas diferentes de uso. Quer mais?!
Amapô Jeans
Carô Gold e Pitty Taliani são as responsáveis pela catarse que as coleções da Amapô Jeans costumam causar nos seus desfiles de roupas-instalações. Depois de um hiato de duas ou três temporadas na passarela, a brand ressurge digníssima. Dessa vez, o afago no peito se deu através da celebração ao Nordeste, mais precisamente o Sertão do Cariri, da sua religiosidade, o trabalho impecável em couro do mestre Espedito Seleiro, cujo pai calçava o rei do cangaço, Lampião. No forró coletivo que abriu o desfile através dos modelos-dançarinos, sobressaiu a vaquejada, por exemplo. Todo esse imaginário cultural de uma região transportado por peças que brincam com alegorias customizadas: o tênis bordado com aplicações em fuxico, renda e laçarotes; a bolsa em formato de igreja; as pochetes em franjas; o traje típico em tecido holográfico; a jaqueta bomber cujo capuz é a cabeça do bumba meu boi e as mangas os laços que decoram o elemento do folclore local; os crucifixos em acrílico: tudo isso num arrasta-pé para lá de moderno. Andava fazendo falta.
Neriage
“Nenhum outro som no ar para que todo mundo ouça!”: Ouvidos e olhos atentos não foram suficientes para mais uma conferida naquilo que Rafaella Caniello fez para Neriage. nessa sua segunda incursão no SPFW. Todos os sentidos precisaram aflorar. Seguindo uma vertente hi-lo na hora de desconstruir – daquele tipo que sabe que dá para ostentar mesmo quando de um modo consciente -, a estilista apresentou uma coleção que passa por monocromias nada minimalistas, pelo uso de acessórios da Tiffany & Co. (não falamos?). Sua moda enxuta e sem drama fez uma bela transição entre plissados nos conjuntos com saia, criou nervuras nas mangas (que ainda bufam) e nos pijamas. E, como não poderia deixar de ser, levou o linho para passear por terras férteis nos vestidos, blusas e calças que, por momentos, aparecem numa mistura única e delicadíssima.
Mipinta
Vemnimim, Mipinta! Pode ser difícílimo cobrar dos novinhos o auto-exercício de se testar a cada temporada sem que o medo de se perder bata na porta. Porém, dá no mesmo: eles sempre aprontam. Toda temporada é preciso que haja aquele puxão da orelho do tipo de só vovó sabe dar. Vovó Xurupita, Vovó Mafalda, Vovó Coragem. Não importa qual. Pois é, dessa vez não vai ter castigo do tipo sete dias sem videogame ou proibir a criança de assistir o canal do Lucas Neto no Youtube; afinal, os castigos se modernizaram, papai &e mamãe. Numa época em que que não basta apenas parecer sustentável, o grande match fashion da hora é a marca saber mostrar como se faz sustentável sem perder a vibe criativa, correto?
Então vamos lá: Ainda é confuso, ainda traz muita peça desejo (que ÁS sairia usando tranquilamente para ir à farmácia comprar um Salompas), mas é preciso se desdobrar mais. Não basta apenas bolsas de feiras virarem jaquetx descontruide na passarela de fundão azul (hello, Balenciaga!), tá bom? A Mipinta, feita por Fernando Miró ainda precisa de comprimido de ferro para se manter em pé. É bom uma boa vitamina de feijão com agrião e couve batida no liquidificador. As intervenções na alfaiataria são precisas e interessantes, mas se deixam desleixar ao serem propostas com a ceroula ou aquela bermudinha de academia já tão explorada nas últimas… três temporadas!?! As calças de alfaiataria com o jeans sobreposto dão liga na coleção, principalmente se atentarmos que ele, de fato, misturou coleções passadas sem medo de ser feliz. Okay, há mesmo ótimas historinhas a contar nessa brincadeira. Assim, ÁS sugere que o estilista radicado na Bélgica siga na cola de Virgil Abloh, cabeça do braço masculino da Louis Vuitton. Tipo irmão mais novo mesmo. Absorvendo ao máximo o que puder, para assim como o xará de Fernando, seguir (Mi)pintando e bordando.
Apartamento 03
Como isso vai para a rua? Como contar essa história? Tem pergunta que a gente não precisa responder para que faça sentido. Fazer sentido para algumas marcas não se limita mais em apenas conversar com o consumidor e vender. Fazer sentido tem se escorado em repensar o sentido das coisas. Essa modelagem não precisa ser só para o manequim 38, certo? E, se ao invés de um homem, uma mulher experimentasse esse casaco? A Apartamento 03 questionou esses comportamentos e foi o desfile responsável por desacelerar a correria que é uma semana de moda, nos fazer contemplar João Butoh, o maior quando o assunto é o butô – a quase secular dança-teatro japa – na América Latina. Esse estilo de dança, criado por Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata no pós-guerra, foi emocionante moldura num desfile cujas roupas surpreenderam. Pois foi desse caos à luz, que a coleção se ambientou. Para ÁS, sobre esse namoro da moda com a dança e música (Antony Hogarty era o dono da voz emocionante), o estilista Luiz Claudio revelou se sentir pleno em ter visto na prática aquilo que ele planejou por meses. Nós também, Luiz.
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