Quando a beleza em preto & branco de um filme se torna argumento para justificar a sua qualidade, alguma coisa está errada. Não resta a menor dúvida de que “Belfast(idem, de Kenneth Branagh, Universal Pictures e outros, 2021), que concorre a sete categorias no Oscar, na noite deste domingo (27/3), incluindo ‘Melhor Filme’, ‘Melhor Roteiro Original’ e ‘Melhor Direção’, tem lá suas qualidades, inclusive a bela fotografia. E não é à toa que a produção já amealhou 46 prêmios – inclusive ‘Melhor Filme’ no Bafta, o Oscar inglês, e ‘Melhor Roteiro’ no Globo de Ouro –, mas quem já assistiu ao filme, em cartaz no Brasil há cerca de duas semanas, não saiu exatamente regozijado da sala de exibição, como se espera de uma quase unanimidade, como anda sendo alardeada a realização.

O cotidiano simples de um bairro proletário na Belfast do final dos anos 1960, impactado por conflitos religiosos, é o argumento para Kenneth Branagh desfiar o novelo da intolerância sob o ponto de vista de um menino. (Foto: Divulgação)

Ainda que a tal cinematografia em P&B seja um atrativo, “Roma” (2018), com três Oscars importantes no colo, e “O abraço da serpente” (2015) – ‘Melhor Filme’ no Prêmio Platino, o Oscar do cinema latino, e candidato ao Oscar de ‘Melhor Filme Internacional’ –, são produções igualmente elogiadas pela qualidade da imagem, mas celebradas, sobretudo, por sua excelência narrativa, sendo as suas majestosas fotografias apenas um dos seus atrativos.

Na recriação do período retratado em “Belfast”, Branagh dá especial atenção aos filmes que se encontravam em exibição na época. Destaque para “O calhambeque mágico” e “Mil séculos antes de Cristo”. (Foto: Divulgação)

Na verdade, o lobby do estúdio para promover o longa-metragem e alavanca-lo nas premiações pode ser o maior responsável pela sua reputação, ainda que aparentemente o burburinho não seja páreo para garantir-lhe o fôlego necessário para sair do Teatro Dolby com alguma estatueta no bolso.

Claro que os publicistas de plantão, encarregados de vender o peixe à mídia para formar opinião, se empenharam em incensar a autoralidade de Kenneth Branagh nesse pequeno filme, em contraponto aos seus serviços de aluguel às superproduções, em títulos como “Thor” (2011), “Cinderela” (2015) e “Morte no Nilo” (2022), todos com a sua assinatura de ótimo acabamento. Bateram na tecla de produção pessoal, desenvolvida a partir de reminiscências do diretor-roteirista. E pintaram e bordaram com o fato de “Belfast” se alinhar às pautas de agenda (como hoje manda o figurino em Hollywood), no caso, com questões como a intolerância, tema atualmente caros em um planeta sob convulsão social e prato cheio nesses dias de Guerra da Ucrânia, limpeza étnica e desmandos de governos totalitários.

“Morte no Nilo”: nova adaptação da obra de Agatha Christie para o cinema esbarra na obrigatoriedade de se adequar à agenda de escotismo social imposta pelas redes sociais, mas é diversão garantida! (Foto: Divulgação)

O trabalho bem-feito das assessorias do filme ao redor do mundo ainda deu cabo de empurrar para debaixo do tapete deficiências como problemas de roteiro, a narrativa que se arrasta, o final meia-boca e o principal: o péssimo desenvolvimento dos personagens, quase sempre construídos sobre clichês de forma preguiçosa. Bandeiras de que a produção inglesa não é exatamente uma Brastemp. Até mesmo no intuito de retratar a classe operária britânica, “Como era verde o meu vale” (1941) e “Billy Elliot” (2000) cumprem muito melhor essa função. O público, claro, mordeu a isca passando a acreditar que “Belfast” é aquela obra-prima, só que não: é apenas mediano.

Epidérmico: o dia a dia humilde de uma família protestante de operários irlandeses é destrinchado em “Belfast” com menos propriedade que deveria. (Foto: Divulgação)

No âmbito do êxito monetário, por exemplo, o filme amealhou até agora pouco mais de 42 milhões de dólares no mundo inteiro, um valor pertinente para uma produção intimista como “Belfast”, mas extremamente modesto quando comparado com o faturamento dos blockbusters. Não que sua performance financeira seja um indicador das suas propriedades artísticas, ao contrário, até mesmo porque essa realização de Kenneth Branagh jamais poderia disputar com filmes de super-heroi, sagas e contos de fada live-action a primazia do box-office, considerando, inclusive, a exorbitante diferença entre o número de salas que exibem um longa com temática para adultos e aqueles voltados para arrancar pipoca dos adolescentes, produzidos a granel e concebidos para fazer um longa encher a burra dos produtores.

Confira abaixo o trailer oficial legendado (Divulgação):

Obviamente também não faz o menor sentido crer que “Belfast”, que narra sob a ótica familiar os conflitos religiosos que dominavam a cena na Irlanda do Norte, no final dos anos 1960, poderia ter o apelo de uma produção fácil, interpretada por um elenco de jovens atores em ascensão ou em plena consolidação do seu star power, dotada de colorido exuberante, efeitos especiais pirotécnicos e narrativa frenética, baseada em alguma franquia de livros ou games popular. A comparação soa covardia. Mas, não se trata disso.

Produção antietarismo: nos papeis do avós do garoto Buddy (Jonas Hill), os veteranos Judy Dench e Ciarán Hinds roubam a cena em “Belfast”. Os dois disputam os Oscars de ‘Melhor Atriz Coadjuvante’ e ‘Melhor Ator Coadjuvante’, e já concorreram e/ou venceram algumas das premiações nesta temporada. (Foto: Divulgação)

Então, o que leva uma produção como “Belfast” ganhar essa reputação toda, com direito a páginas inteiras nos segundos cadernos dos jornais colocando o filme nas alturas? Possivelmente, a pecha de ser “adulto” numa Hollywood hoje idiotizada. É notório que os esforços de produção agora se concentram em longas de grande potencial de arrecadação, capazes de tirar millennials e genZers de casa, do conforto do streaming, incomodando de Marttin Scorsese a James Cameron. Somente o impacto dessas megaproduções é capaz, hoje em dia, é capaz de lotar as salas de cinema e “Homem-Aranha: sem volta pra a casa” (2021), com seus quase 1.900 milhões de dólares arrecadados, está aí para provar essa teoria. Os cinemas devem sua sobrevivência, em dias pandêmicos, a empreitadas como essas, e não ao filme de Branagh. Por isso, inesperadamente “Belfast” ganha um atributo bem maior que si: ele representa a resistência do cinema com tutano em persistir.  

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