Três de dezembro de 1954. Já em declínio e após uma ausência de 14 anos, Carmen Miranda desembarcava no Rio vindo de uma trajetória norte-americana na qual se tornara um dos maiores ícones de Hollywood, com carreira consolidada pela 20th Century Fox no patamar dos grandes astros e estrelas. Durante os quatro meses em que ficou hospedada em uma suíte no Copacabana Palace, passando por um processo de desintoxicação por dependência química de barbitúricos, sofreu o assédio da imprensa e ataques do público, que afirmavam que ela havia sido americanizada. Há quem diga que esse ódio – e o desgosto! – colaborou para que, no ano seguinte, a diva viesse a falecer de ataque cardíaco fulminante, aos 46 anos, segundo o escritor Ruy Castro, que escreveu a sua biografia. Talento incontestável, ainda levaria um bom tempo para que a atriz-cantora, que faturou tanto com seu chicachicaboom a ponto de ser a artista feminina que mais pagou imposto de renda nos Estados Unidos em 1946, viesse a ser reabilitada pela Tropicália como patrimônio do Brasil. É justamente nesse processo de viralatismo que outro ícone brasileiro de dimensões globais, Tom Jobim, afirmava que “por aqui sucesso é ofensa pessoal” e que, possivelmente nesses termos deve ser tratada doravante a obstinada, meticulosa e bem-assessorada Bruna Marquezine, mocinha do longa-metragem “Besouro Azul” (Blue Beetle, 2023, Warner Bros.), já em cartaz, que traz a nova aventura de super-herói da DC Studios, estrelada pelo mexicano descendente de cubanos e equatorianos Xolo Maridueña.

Não resta a menor dúvida de que haters vão atribuir a participação da bombshell Bruna no filme como política de boa-vizinhança do estúdio para conquistar o mercado latino-americano, com uma produção que se arvora em ser a primeira do gênero com ambiência chicana, como fizeram com a Pequena Notável durante os wartimes. Nenhuma das duas afirmações é mentira. Pelo contrário, fazem sentido, apesar de que usar este argumento para eclipsar o avassalador talento de Carmen Miranda seja inteiramente descabido. Afinal, desde sempre, os produtores hollywoodianos vêm lançando mão de todo tipo de expediente para alavancar bilheteria, mas, quando essa estratégia encontra eco na qualidade de um intérprete, o céu é o limite. Hoje, pouco importa. Para quê talento, quando o que vale são seguidores? Melhor não comentar, sobretudo quando se considera que castings atualmentepodem ser feitos apenas na base do like. Com muito menos atributos que a baixinha Miranda, a bela Bruna, que despontou como atriz-mirim na TV Globo nos anos 2000, carrega nas costas 44,7 milhões de seguidores no Instagram, assim como Xolo com seus 3,3 milhões. Numa indústria bilionária que se mantém na corda bamba das cifras astronômicas, isso vale. E muito. Vamos combinar: em tempos de relações líquidas na vida e ausência absoluta de estofo em uma produção de cinema, é o tapete vermelho que conta, e não as duas horas e pouco da exibição de um longa.
Confira abaixo o trailer oficial legendado de “Besouro Azul” (Divulgação):
Tudo bem. “Besouro Azul” não é grande coisa. Com roteiro fraco que procura se apoiar no carisma do personagem, na levada inclusiva (minorias latinas) e em piadinhas infantis, é óbvio que jamais vai se tornar um clássico como qualquer um dos grandes sucessos de Miranda, tipo “Entre a loura e a morena” (“The Gang’s All Here, 1943). Divertidinho para a grande massa, o longa da DC ainda corre o risco de futuramente ser cancelado por sua caricata significação da população latina estadounidense: caliente, afetuosa e histriônica, mas patética. Cucarachas, tudo buena onda. Em um planeta tomado pelo bom-mocismo das mídias sociais – mélange de vaidade irrefreável e escotismo de vitrine –, esse é um perigo e tanto. Pode ser que, passada a campanha de marketing, o filme acabe visto não como aquela realização que procurou alçar a América Latina à onda do empoderamento, como fez “Mulher-Maravilha” (2017) com o ressurgimento do feminismo. A conferir.

De qualquer forma, “Besouro Azul” está longe de ser um bom filme, com Xolo e Bruna visivelmente incapazes de interpretar um par romântico melhor que uma dupla vivida por um chumaço de acelga e uma batata baroa. Química zero. É notório o primarismo de suas interpretações, eclipsadas pelos atores veteranos, como a mexicana Adriana Barraza que consegue fazer das tripas coração, alcançando a derme de papeis rabiscados na epiderme.

Para piorar, a Warner consegue mais uma vez a façanha de escalar um medalhão – agora Susan Sarandon, cujo maior sonho sempre foi ser a nova Bette Davis – para reduzi-lo a vilã de novela mexicana, tão exagerada quanto Paola Bracho, de “A Usurpadora”. Limitada em uma atuação-pastiche, a oscarizada atriz nem se esforça. Embarca e cabeça na canastrice sem alma, como fez com Helen Mirren em “Shazam! Fúria dos Deuses”, enchendo o bolso de verdinhas para depois reclamar que Hollywood não escreve papeis bons para atrizes maduras. Lástima.

Ainda assim, “Besouro Azul” – que junto com o ainda a ser lançado “Aquaman e o Reino Proibido”, representa o canto do cisne do antigo DCEU (Universo Extendido DC Comics), pronto para ser sepultado pela reformulação do estúdio a cargo de James Gunn e Peter Safran – pode não ser inteiramente um desastre como “Flash”. Por supostamente se enquadrar na política de cotas, vai acabar visto com simpatia por certa parcela da plateia nerd GenZer engajadinha, que vai desconsiderar a falta de consistência de uma narrativa ancorada em efeitos visuais, armaduras reluzentes, coreografias de luta e uma motivação vilanesca esvaziada. Resta saber se a sortuda Bruna Marquezine vai saber tirar proveito da visibilidade que lhe caiu no colo, mesmo sem sequer esbarrar de raspão na competência de Carmen Miranda.
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