Final de ano. Hora daquelas listas como pencas de nomes que passaram desse mundo para o nirvana. Alguns inesperadamente, outros após convalescência, alguns simplesmente porque sua temporada de maracujá de gaveta havia terminado. Comuns, essas listas costumam prosseguir até a leva das premiações de cinema e TV, entre janeiro e fevereiro, quando as celebrações nesses segmentos fazem as devidas homenagens à turma que vai fazer falta na indústria. Entretanto, em 2016 – talvez pelos quilates da rapaziada que se foi – a coisa parece estar negra como um tubinho de Audrey. Somam-se a isso, as incertezas com a onda conservadora que toma conta do planeta, os atentados terroristas, a economia global em crise, etc.

Sargent Pepper’s do além: a brincadeira com o excesso de famosos que se foi em 2016 ganha destaque a partir da reprodução da famosa capa do álbum dos Beatles, tendo à frente o Brexit, inesperado movimento protecionista inglês que decretou a “morte” da Grã-Bretanha no corpus político da União Europeia (Foto: Reprodução)
No Brasil, após a euforia da Rio 2016, as mazelas da classe política e do judiciário intensificam o sentimento de perda e acabam colaborando na catarse geral e irrestrita, quando o assunto é conferir que foi dessa para melhor. Afinal, todo ano morre gente. Mas, convenhamos, num ano difícil como 2016, a coisa está mesmo de lascar e ÁS já havia se resignado a abortar este obituário até o final desta terça-feira (27/12), quando começaram a pipocar na internet as notícias sobre a morte de Carrie Fischer, vítima de um ataque cardíaco sofrido num voo Londres/Los Angeles na última sexta. É, está brabeira e não são apenas os nervos em riste da moçada trepidando feito corda de harpa, depois das grandes emoções deste ano. Confira abaixo a lista de quem deu as mãos para Carol Ann e adentrou bonito o túnel de luz, mas cuidado: o ano ainda não terminou! É válida toda fezinha para segurar em terra firme quem está por aqui.

Adeus, Princesa Leia! Com apenas 60 anos, a atriz Carrie Fisher morreu na manhã desta terça-feira (27/12), vítima de complicações após ter sofrido um enfarte sofrido às vésperas do Natal (Foto: Reprodução)
Carrie Fisher: filha da lendária estrela da Era de Ouro Debbie Reynolds (de “Cantando na Chuva“, 84 anos, que não resistiu à morte da filha e acabou morrendo nesta quarta 28/12), tornou o nome Carrie popular muito antes de Sarah Jessica Parker e suas amigas baladeiras de Nova York. Era 1977 e o filme que inaugurou a fórmula dos blockbusters com efeitos especiais de ponta, “Star Wars – uma nova esperança” catapultou a jovem atriz ao panteão máximo de personagens da cultura pop. Na mesma esteira de Leonard Nimoy e seu Sr. Spock, o sucesso foi tanto que ela nunca mais conseguiu outro papel à altura, estigmatizada pelo figurino branco disco futurista e por um penteado que duas décadas depois influenciaria Björk, embora tenha ferio 43 filmes no cinema e 44 aparições em ficções na TV, inclusive como atriz fixa em seriados.

Misoginia no espaço: apesar de ser estrela de primeríssima grandeza na saga “Star Wars”, Carrie Fisher se queixava do papel da mulher na aventura criada por George Lucas (Foto: Reprodução)
Seu legado na indústria cultural é inestimável e sua Princesa Leia, capaz de proferir impropérios ao vilão como “Darth Vader, senti o seu fedor à distância”, suplanta a carreira de altos e baixos e a repercussão dos transtornos bipolares, o que a levou a escreveu livros sobre o assunto, sua relação com a mãe e sobre o que foi ser criada na Meca do Cinema, ambiente tão hostil quanto o planeta Tatooine (da saga espacial). O que lhe conferiu surpreendente argúcia em máximas como quando aconselhou a novata Daisy Reily, estrela do Episódio VII então às voltas com o peso de ser mulher no universo Star Wars: “Você não consegue encontrar nenhuma proximidade verdadeira em Hollywood, porque todos praticam a proximidade falsa muito bem”. Sim, sua língua era bem mais afiada que o sabre espacial de Vader…

Que a força esteja com a cultura popular! A caracterização icônica da Princesa Leia fez história em Hollywood e até hoje é motivo para a vendas de fantasias em Haloween e carnaval (Foto: Reprodução)
George Michael: Quando partiu para a carreria solo após o sucesso do duo Wham!, o britânico estourou com “I want your sex“, que no Brasil fazia parte da trilha sonora internacional da novela global “Brega & Chique“. Na letra, ele já dizia: “Eu juro que não irei zombar de você, não vou dizer nenhuma mentira, eu não preciso da Bíblia, apenas olhe nos meus olhos”. A estrofe já dava a entender, nas sublinhas, que o cantor faria o que bem entendesse sem se render à aprovação alheia. Como se houvesse levado ao pé da letra a frase que aparece no final de um clipe de Madonna, “Justify my love“, contemporâneo ao seu auge: “Pobre é o homem cujos prazeres dependem da aprovação dos outros”.

Homão rockabilly: visual de perfecto sobre t-shirt branca e jeans é marco dos anos 1980 e virou clássico da moda também impulsionado pelo cantor George Michael, adepto ferrenho dos looks báscios oitentistas (Foto: Reprodução)
Embora tenha aberto oficialmente o jogo somente em 1998, após um incidente, todo mundo desconfiava que Michael, com seu topete, luzes nos cabelos, raybans e visual de metrossexual hardcore fosse gay. Tudo bem, apenas nos últimos quase 20 anos ele levantou essa bandeira, mas, vejamos: se era espalhafatoso no visual e talentoso na trajetória musical, ele soube ser midiático sem transformar sua vida pessoal numa feira de variedades, como fazem hoje em dia as Paris e Kardashians, mais famosas pelos memes e cases do que por alguma particularidade em especial. E, agora que o astro se foi, pululam na imprensa as boas ações que ele fez questão de praticar no anonimato, sem precisar usar esse tipo de expediente para se promover. Mesmo atualmente, quando já não estava mais na ribalta. Isso não tem valor?

Amor que não ousa dizer seu nome. Após er flagrado por um policial num ato obsceno em 1998, George Michael assumiu o que o mundo sempre soube: sua sexualidade. Morto esta semana aos 53 anos, tinha atualmente uma relação com Fadi Fawaz (à esq.) (Foto: Reprodução)
Como se não bastasse, vale lembrar que George Michael também colaborou para aproximar os mundinhos da moda e o do showbiz, numa época em que as supermodelos despontavam como terceira via para as divas pop e as estrelas de cinema. Clipes como “Freedom 90“ e “Too Funky“, no qual bombshells como Linda Evangelista e a musa de Almodóvar Rossy de Palma envergam os modelitos endiabrados de Thierry Mugler, ficarão na história.
Assista abaixo o videoclipe de “Too Funky” (Reprodução):
Guilherme Guimarães: digno representante de uma era que se apagou, o estilista brazuca soube manter o frescor do seu olhar sem se render a fashionices só para aparecer. A lealdade ao seu estilo de criar roupa – proporcional à maneira com que se apegou ao próprio estilo de vida – conjugava a simplicidade de não querer ter carro com o esnobismo de quem viveu no grand monde e sabia que hoje predominam baboseiras. Visão de mundo perigosa – afinal, a possibilidade de se tornar um fóssil vivo é enorme –, mas sincera, o que lhe confere ao lado da extraordinária capacidade criativa seu lugar no panteão da moda brasileira. Confira aqui o editorial de moda do ÁS inspirado em Grace Jones e realizado no ateliê de Gui-Gui em novembro.

Aos 76 anos, Guilherme Guimarães partiu desse mundo para outro, possivelmente bem mais chique que os tempos atuais. O estilista brasileiro ultimamente se queixava daquilo que o high society havia se tornado, mas, ainda que semi-recluso, continuava na labuta, no eixo Rio-São Paulo (Foto: Reprodução)
David Bowie: astro maior do pop, além das incontestáveis qualidades artísticas e do livre trânsito pela experimentação ao longo de 50 anos de carreira, o camaleão vai fazer falta pela originalidade avant garde. Num mundo cada vez mais fake, onde se fazer de brilhante se tornou mera estratégia para ganhar likes, ser ele mesmo, pouco se lixar para o que os outros pensam e lançar moda & comportamento antes de criar música – ao invés de se valer dessa dobradinha para, no caminho inversamente oportunista, atingir milhões de visualizações nas redes sociais – é um feito e tanto que deveria ser seguido entusiasticamente por gente que jamais terá 0,000000001% do talento de Bowie, mas insiste na poker face. (Leia mais aqui)

Aranhas de Marte: inovador do início ao fim, o camaleão do rock não acompanhou tendências, mas lançou moda. Sua morte aos 69 anos pode ter sido fruto dos excessos cometidos durante sua existência (Foto: Reprodução)
Elke Maravilha: ela deu uma banana para as convenções e, de emigrante russa criada no interior mineiro, se fez do mundo e usou dele para se moldar a seu bel-prazer, misturando personagens diversos numa só persona, que poderia ser chamada de atomic blaster diva queen, grande dama trash do desbunde multicultural ou até etno-musa tropical futurista. Não importa. Num mundo que hoje prima pela falta de originalidade, assim como Bowie ela revelou aos meros mortais que o importante é ser feliz. De preferência, sob quilos de make, perucas e bijús arretadas da peste. Leia mais aqui!

Morta aos 71 anos, Elke Maravilha emocionou gerações que se encantavam com seu joie de vivre. Ela foi adepta do multiculturalismo muito antes de o termo ser forjado no imaginário popular (Foto: Reprodução)
Prince: quando surgiu, ninguém sabia se ele era hétero, gay, desse planeta ou de um sistema solar qualquer designado Alfa Centauri. Rebolava como Elvis, vinha da mesma Memphis que o Rei do Rock, tinha a voz em falsete, altura de um Oompa Loompa, cabelo ruim amansado pela química, buçozinho indigesto, traços que, se de turbante, poderiam confundi-lo com um paquistanês motorista de táxi filho de uma chicana. E ainda brilhava mais que Fada Açucarada de “Quebra-Nozes“, mas se cercava de morenas fogosas com apliques em rabo de cavalo capazes de deixar a então socialite Regina Marcondes Ferraz rodando a baiana num frenesi autista. Distribuía kisses em modelitos cobertos com diamonds and pearls, pois eram os exageradíssimos anos 1980, o mundo vivia o new wave e todos fingiam que tudo era normal. Prince acabou fechando as bocas de Matilde da turma que queria saber de sua sexualidade num universo ainda não tomado por termos como “não-binário” e “transgênero”, soube ser astro sem precisar escancarar sua vida pessoal (uma façanha!) e fez todo mundo se render a ele não porque era tão exótico quanto um abacaxi recheado com tâmaras, mas porque era impossível não reconhecer sua carreira musical brilhante e seu suíngue.

Juju Balangandã: chegado ao decorativismo, o multitalentoso Prince deixou o mundo cedo, aos 57 anos. Mas seu visual, androginia e legado musical ficam para a posteridade (Foto: Reprodução)
Zsa Zsa Gabor: era péssima atriz, mas se tornou personalidade a ponto de interpretar a si mesma entre 1986 e 1996 em comédias como “Corra que a polícia vem aí 2 1/2“, “A Família Buscapé“ e “A Hora do Pesadelo 3“, já em idade avançada e bem depois da fama conquistada em produções como “Moulin Rouge“ (1952) e a obra-prima de Orson Welles “A marca da maldade“ (1958). Típica integrante daquele tipo de beleza com cinturinha de vespa e peitos fartos que assolou o Pós-Guerra, seu grande feito não foi ter trabalhado como estrela na Era de Ouro, mas antecipado em 60 anos a postura de celebrity por celebrity que hoje domina o panorama, não por talentos insuspeitos, mas por transformar a vida num espetáculo nos parâmetros definidos pelo pensador Guy Débord. Esperta como uma raposa, soube capitalizar sua presença avassaladora em nove casamentos que lhe renderam fama e dinheiro, sem que tivesse nenhuma qualidade conhecida do grande público além da capacidade de causar. Nesse aspecto, quem negaria dizer que foi visionária?

Precursora do tipo de celebridade que existe hoje, a húngara temperamental Zsa Zsa em dois momentos: exalando transparência sedutora em foto concebida pelos publicistas de Hollywood… (Foto: Reprodução)

… E como Jane Avril, a musa belle époque do pintor Toulouse Lautrec, em “Moulin Rouge”, interpretado pelo oscarizado José Ferrer (Foto: Reprodução)
Franca Sozzani: editrix da Vogue Italia conhecida por investir na modernidade através de temas que extrapolavam o mero vestuário, a chiquérrima jornalista, além de todas as qualidade profissionais, soube entender que a moda engloba muito mais do que aquilo que é visto nas passarelas e trouxe para os editoriais de estilo e para as reportagens da revista temas na ordem do dia, capitalizando o estilo de vida como verdadeira catapulta de tendências. Ela se junta a outra italiana icônica da mesma publicação, tão fascinante quanto e que também contribuiu para a publicação, entre outras: Anna Piaggi. Além da sua mão firme na hora de olhar o mundo e editar. Sozzani ainda teve outro grande mérito: aos 66 anos, conservação uma aparência impressionangte, mas bem longe do formol artificial que costuma corromper as mulheres de sua idade em geral, em particular as louras.

Em imagem exclusiva para o ÁS, a editora-chefe da Vogue Italia fala ao celular no caminho entre um desfile e outro durante a Semana de Moda de Milão (Foto: Alessandro Cecconi para Ás na Manga)

Franca Sozzani: estilo ao mesmo tempo clássico e jovial marcou a imagem da editora de moda italiana, cuja grife maior era a cabeleira pré-rafaelita, que madonna tenta imitar. Partiu aos 66 anos e sua presença elegante deve permanecer como ícone fashion por décadas (Foto: Reprodução)
Gene Wilder: comediante de primeira, seu auge na telas foi do final dos anos 1960 à primeira metade dos anos 1980. E, embora seja mais conhecido pelo Sr. Wonka da versão original de “A Fantástica Fábrica de Chocolate“ (1971), foi ator-fetiche de Mel Brooks em clássicos como “Banzé no Oeste” e “O Jovem Frankenstein“, ambos de 1974. Sua cena no episódio do pai de família que se apaixona por uma ovelha em “Tudo o que você queria saber sobre sexo“ (1972), de Woody Allen, é antológica. Na atualidade, quando todos querem falar pelos cotovelos, até mesmo os atores viciados nas fórmulas stand up comedy, sua forma econômica e silenciosa de atuar, fazendo uso brilhante de pausas e olhares para dar conta do recado, deveria virar disciplina em curso de teatro e também na vida, como exemplo do bom cinismo.

Foi bom para você? Após o sexo animal, Gene Wilde fuma um cigarrinho ao lado da ovelha amada na comédia de episódios dirigida por Woody Allen em 1972. O astro das telas morreu aos 83 anos l(Foto: Reprodução)
Muhammad Ali: nascido Classius Clay Jr., o filho de um pintor de outdoors e de uma empregada doméstica é emblemático por ter se tornado um atleta de fama mundial que soube unir esporte e política sob as luzes do espetáculo. Convertido ao islamismo, é a prova de que lutar por uma crença, independente de religião, não tem anda a ver com aquilo que fundamentalistas assassinos costumam fazer matando gente e explodindo monumentos, sejam eles muçulmanos, cristãos ou o que quer que seja. Sem precisar verter uma gota de sangue qualquer fora dos ringues de boxe, o campeão mundial foi feroz defensor daquilo que acreditava, como quando se recusou a lutar na Guerra do Vietnã em 1967, Ali causou muito mais barulho que um atentado como aquele que matou e feriu dezenas este mês em Berlim. E mostrou que a luta fora do esporte se dá com perseverança e na paz, já que sua presença como astro esportivo ajudou a consolidar os processos de igualdade dos afro-americanos nos EUA. Considerado defensor do pan-africanismo, é até hoje expoente da defesa da África, muito antes que a banalização de termos como empoderamento negro perdessem força ao serem leviana e maciçamente pulverizados nas mídias digitais, virando lugar comum de rebelde imaturo.
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