Há trinta anos, Steven Spielberg fazia estardalhaço nos cinemas produzindo “Uma cilada para Roger Rabbit“ (1988), filme que não aconteceu nas bilheterias, mas causou burburinho entre o público e ainda arrebatou a simpatia da crítica pelo bom humor com que brincava com uma trama noir. O grande atrativo era a mescla entre filme em carne & osso e desenho animado, misturando em grande estilo os castings em nanquim da Disney e da Hanna Barbera com atores em interpretações cartunescas que fariam Gene Kelly e Frank Sinatra, de “Marujos do amor“ (1945), corarem de vergonha diante do seu clássico sapateado ao lado do camundongo Jerry, sucesso técnico na época, mas hoje alçado ao patamar de “defeitos especiais”. No final dos anos oitenta, Roger Rabbit era mesmo um primor em computação gráfica e a ruiva femme fatale, a peituda Jessica Rabbit… ah, bom, ela não tem culpa; foi desenhada assim! Por isso, não surpreende que, quase na virada de mais uma década, o diretor-produtor enverede por uma narrativa que põe no mesmo balaio a vida real e os jogos de RPG, uma das facetas da tal realidade virtual, em “Jogador Nº 1” (Ready Player One, Amblin Entertainment e outros, 2018), que estreia nessa quinta-feira (29/3) nos cinemas.

“Jogador Nº 1”: nova produção de Steven Spielberg procura resgatar suas antigas produções teen dos anos 1980/90 e trama que mescla realidade virtual com um futuro sombrio e desigual para a humanidade (Foto: Divulgação)
Confira abaixo o trailer oficial legendado (Divulgação):

Tudo junto e misturado: Spielberg já havia posto filme live action e desenho animado no mesmo balaio, quando produziu o longa de Robert Zemeckis “Uma cilada para Roger Rabbit”, um marco na tecnologia digital do cinema oitentista (Foto: Divulgação)
O tema não é novo, e produções como “Tron“, “Matrix” e de certa forma “Avatar“ já se encarregaram de apresentar essa temática às plateias. A novidade fica por conta da efervescência das tomadas e da riqueza visual numa realização que insere os personagens numa esfuziante estética gráfica que, de tão grandiosa, chega a cansar.

The Sims? “Jogador Nº 1” se passa em dois planos: a vida real, sem graça, caótica e encardida, e no Oasis, um ambiente virtual no qual cada um pode ser quem bem entender, onde a ação e o glam são constantes. Qualquer semelhança com “Matrix” não é mera coincidência. A diferença aqui é que, na realidade, quem quer escravizar a humanidade não são as máquinas, mas ela mesma! (Foto: Divulgação)
Os objetivos para tanta pirotecnia são óbvios: pegar pelo pé o enorme contingente de genzers e nerds que amam de carteirinha o universo dos jogos virtuais e ainda dar cabo da lição de casa da vez , numa produção maniqueísta na qual os mocinhos tem alma mais pura que sabão Quiboa e os vilões são dignos de “Maria do Bairro“, no caso os executivos uma corporação global que realiza trabalho virtual escravo (Oi?!?) e quer se apossar do Oasis, a tal plataforma virtual que deixa a população mundial na vibe de zumbis urbanos, desconectados da vida de verdade.

“Jogador Nº 1” assume a vocação de produção teen voltada para atingir dois públicos: nerds de todas as idades e o genzers, que prefere conferir os lançamentos pela Netflix que pagar ingresso nas salas de cinema (Foto: Divulgação)
Amante da obra de cineastas de prestígio de público e crítica como Stanley Kubrick e Woody Allen, é como Spielberg se ancorasse numa famosa frase desse último para tocar o longa, após seduzir o público com tantos efeitos tão fakes quanto o abdômen-tanquinho de Justin Bieber naquela campanha da Calvin Klein: “A realidade é o único lugar onde se pode comer um bom bife”. Okay.

Favelão da sustentabilidade: no 2045 de “Jogador Nº 1“, as cidades norte-americanas cresceram de tal forma desordenada que a superpopulação pouco privilegiada sobrevive em moradias verticais feitas com sucatas de contâineres e trailers – uso nada glamourizado dessas sucatas hoje em dia incensadas pelos arquitetos badalados. O escape do duro cotidiano é uma segunda existência dentro do Oasis – universo de jogos de RPG, interligados globalmente e explorado ao máximo pela tecnologia da realidade virtual (Foto: Divulgação)
Passada a moral da história, que atinge não apenas os aficionados por RPG, mas todos os que maquiam a realidade com o colorido dos selfies e das mídias sociais, fica a intenção do diretor de emular a si próprio, sem aquele brilho do Spielberg dos anos 1980: seus herois são crianças e teens desajustados, à margem do mundo dourado, dessa vez não a classe média vista em produções tipo “E.T. – o extraterrestre“ (1982), “Os Goonies“ (1985) ou “O enigma da pirâmide“ (1987), mas párias de uma sociedade desigual na qual a pobreza reina entre as massas, com direito à representatividade de tipos e raças que hoje virou moda nas narrativas audiovisuais, todos devidamente gourmetizados pelos seu avatares digitais.

Não se trata de perfil fake: no futuro próximo de “Jogador Nº 1” todo mundo tem dois RGs, o de nascença e o da recriação digital da própria individualidade, inventada para fazer bonito no ambiente virtual. É conceito da reinvenção do “self”, celebrada pelos estudiosos da comunicação como um dos aspectos da pós-modernidade, levado às últimas consequências (Foto: Divulgação)
Em tempo: entre a enxurrada de referências à cultura pop, de “Star Trek“ a “Star Wars“, de “O Senhor dos Aneis“ a “Brinquedo Assassino“, de “A Corrida Maluca“ a “De volta para o futuro“, de “King Kong“ a “Jurrasic Park“ ou de “Starship Troopers“ a “Tron“, as sequências que celebram “O Iluminado“ fazem valer o ingresso.

Dentre as inúmeras referências da cultura pop homenageadas por Spielberg em “Jogador Nº 1” – algumas criadas por ele mesmo como as perseguições frenéticas de tiranossauros de “Parque dos Dinossauros” – encontra-se o DeLorean usado pelo protagonista Parzival, extraído de um clássico cinematográfico jovem dos anos 1980, “De volta para o futuro” (Foto: Divulgação)
Em tempo: nada como assistir uma produção desse naipe nas salas IMAX, da UCI. A projeção com quatro vezes mais resolução que a digital comum garante a imersão no ambiente digital que a narrativa propõe. Super vale nesse caso!
Deixe seu comentário