Não pode ser por acaso. A posse de Donald Trump, nesta segunda-feira 20 de janeiro, amparada pela presença de empresários forjados no Vale do Silício, como Jeff Bezos (Amazon, patrimônio de US$ 239 bilhões), Mark Zuckerberg (Meta, fortuna de US$ 211 bi) e Elon Musk (Tesla e X, hoje seu maior aliado, US$ 433 bi) – outrora jovens idealistas que ganharam notoriedade como mentes brilhantes predispostas a transformar o mundo, mas hoje conservadores apegados à vaidade do poder, capazes de quaisquer expedientes para se manterem no topo de uma tecnocracia digital –, potencializa ainda mais a perda de dois genuínos talentos da comunicação nesta última semana: o fotógrafo e publicitário milanês Oliviero Toscani (em 13/1, aos 82) e o diretor de cinema norte-americano David Lynch (16/1, aos 78). Aparentemente desconectados entre si, os três eventos – a morte dos dois artistas, com apenas três dias de diferença, e a nova ascensão do empresário ao cargo mais poderoso do planeta – têm muito a ver entre si. Aliás, falam bastante sobre esses tempos sombrios em que a Humanidade anda trilhando.

Com a lucidez de seus legados, David Lynch e Oliviero Toscani vão fazer uma tremenda falta na nova Era Trump!
(Foto: Reprodução)

Afinal, o segundo mandato de Trump já começa com essa marca: carrega escancarada na testa a forma como esses magnatas de plataformas online e redes digitais demonstram se curvar ao seu radicalismo ultraconservador para sobreviverem – tais quais turcos de aventuras de Indiana Jones que, quando o mocinho triunfa, são aliados e, basta os nazistas estarem por cima da carne seca, viram a casaca –, ao alterarem as diretrizes de mídias como o Instagram, o Facebook e o X para flexibilizar a intolerância, o preconceito e a violência, afrouxando não apenas a pauta woke, mas o cerceamento de postagens que agridem os direitos sociais, além de aposentar as equipes que se encarregavam até então de verificar a veracidade de conteúdo postado.

Com a lucidez de seus legados, David Lynch e Oliviero Toscani vão fazer uma tremenda falta na nova Era Trump!
(Foto: Reprodução)

Ao se renderem aos desígnios de Trump para surfar no bonde do momento, fica óbvio ser uma lástima o desaparecimento dessas duas mentes brilhantes (Toscani e Lynch, claro!) cujo legado é, sem dúvida, o estímulo ao exercício do livre-pensamento, ao chamarem atenção para questões sociais prementes da natureza humana através da sua produção artística. A sensação que fica é a de que esses dois pesos pesados da lucidez nos deixaram justamente na hora em que, no ultimate fight entre a sensatez e o recrudescimento míope, devem eclodir ainda mais as fake news e toda a sorte de expedientes que levam à desinformação. Se a História é cíclica e a roda não para de girar, é nesses tempos neomedievais que o mundo precisa ainda mais de cérebros como os de Toscani e Lynch em contrapartida ao exército de desmiolados que se multiplica, em progressão tão geométrica quanto a de um apocalipse zumbi, em dias de crença no terraplanismo. 

Com a lucidez de seus legados, David Lynch e Oliviero Toscani vão fazer uma tremenda falta na nova Era Trump!
(Foto: Reprodução)

Nos últimos sete dias, muitas notas foram publicadas sobre a morte de Oliviero Toscani e a maneira como ele revolucionou a publicidade, a partir da Benetton, ainda no final dos anos 1980, com campanhas que não vendiam as roupas, mas posicionavam a marca italiana de moda básica na proa do ativismo social, proporcionando a meros moletons, jeans e camisetas o destaque que o look mais endiabrado de Haute Couture sequer seria capaz de vislumbrar. Morto por causa de uma doença raríssima, a amiloidose, Oliviero Toscani deixa para a História do Comportamento o principal que poucos veículos de comunicação, preguiçosos, se deram ao trabalho de registrar: foi precursor daquilo que se constituiria mais de vinte anos depois como a essência da sociedade ao empunhar a bandeira de temas vinculados à igualdade racial e social, tolerância, feminismo e empoderamento gay antes mesmo do cientista político Samuel P. Huttington (1927-2008) publicar, em 1993, na Revista Foreign Affairs, o artigo que estabeleceria a base para sua obra seminal três anos depois, Choque de civilizações e a reconstrução da nova ordem mundial(1996),amplo estudo sobre o cerne da gama dos conflitos culturais, religiosos e comportamentais que vivemos atualmente.

Com a lucidez de seus legados, David Lynch e Oliviero Toscani vão fazer uma tremenda falta na nova Era Trump!
(Fotos: Reprodução)

Toscani causou, para usar uma gíria já defasada de uma cultura volátil que hoje se apoia na superficialidade de memes e stickers com a mesma garra com que a Humanidade já se amparou na leitura. Suas imagens atordoantes de beijos entre clérigos celibatários, mas enamorados, de doentes terminais em uma época em que a infecção por AIDS era sentença de morte e de cenas que refletem temas cruciais como multirracialidade, liberdade sexual, respeito às diferenças e a aceitação do próximo ainda não haviam ganhado o combustível que a globalização proporcionaria a esses assuntos paulatinamente a partir da virada do Milênio, sobretudo após a revolução digital encabeçada por essa turma que agora apoia Trump, a partir da segunda década deste século. Mas não há como negar o impacto.

Com a lucidez de seus legados, David Lynch e Oliviero Toscani vão fazer uma tremenda falta na nova Era Trump!
(Foto: Reprodução)

Dessa forma, é possível afirmar que, a cada novo trabalho de Toscani em sua Fabrica, centro internacional de artes e pesquisa em comunicação, fundado por ele em 1993,  com sede projetada pelo celebrado arquiteto japonês Tadao Ando, o publicitário viralizava numa época em que a internet nem sonhava em engatinhar.

Com a lucidez de seus legados, David Lynch e Oliviero Toscani vão fazer uma tremenda falta na nova Era Trump!
(Foto: Reprodução)

Percurso igualmente notável é o de David Lynch, cujo segundo trabalho cinematográfico, o bizarro “O Homem Elefante(The Elephant Man, Brooksfilms, 1980) já dizia a vinha que o cineasta nascido no Montana: um indigesto drama vitoriano em preto & branco sobre inclusão roteirizado a partir de relatos sobre Joseph Carey Merrick (ou John Merrick, 1862-1890), personagem real acometido de uma doença congênita que lhe causou imensas deformidades corporais, sobretudo faciais,  a ponto de ganhar nas exibição em freak shows a alcunha que dá título ao longa-metragem.

Com a lucidez de seus legados, David Lynch e Oliviero Toscani vão fazer uma tremenda falta na nova Era Trump!
David Lynch (Foto: Reprodução)

Apesar de sua aparência monstruosa que o transformou em atração de circos de aberrações até este tipo de entretenimento ser banido da Inglaterra, Merrick era detentor de imensa bondade, espirituosidade extrema e refinada sofisticação, recebendo a afeição da alta sociedade britânica. Egresso de uma produção independente de terror que ganhou notoriedade no circuito mainstream, “Eraserhead (1977), Lynch foi bastante corajoso ao dirigir e coescrever esta produção que destaca a igualdade, ainda mais quando se considera seu alinhamento cronológico com o início da cultura do corpo perfeito que eclodiria no boom das academias de ginástica e no surgimento de vídeos de malhação encabeçados por beldades como Jane Fonda.

David Lynch (Foto: Reprodução)

Vencedor do Bafta de ‘Melhor Ator’ para John  Hurt, “O Homem Elefante” concorreu a oito Oscar, inclusive ‘Melhor Filme’, mas foi para casa de mãos abanando. Era época de ‘Mulher-Maravilha’, ‘As Panteras’ e “Casal 20’ na TV.

David Lynch (Foto: Reprodução)

Ao mergulhar no subconsciente de seus personagens em enredos que facilmente iam do sonho ao pesadelo, Lynch foi um gênio. E sua genialidade não poderia estar mais na moda, quando o assunto é resistir à boçalidade que permitiu que Trump fosse reeleito, à custa de bravatas como invadir o Canadá, se apropriar da Groelândia, e reanexar o Canal do Panamá. Em uma de seus filmes mais notórios, “A estrada perdida(Lost Highway, CyBy 2000 e outra, 1997), Bill Pulmann interpreta um músico que é acusado de matar a própria esposa, mas não se lembra de ter cometido o crime, imergindo em um desconfortável tsunami entre o onírico e a realidade, perseguido por misterioso homem (Robert Blake) e atormentado por memórias que parecem lhe pregar peças.

David Lynch (Foto: Reprodução)

A produção é um verdadeiro, mas incômodo primor do quanto o diretor manipula a percepção da realidade, tanto da plateia quanto de seus personagens, aspecto recorrente nas suas realizações. Em tempos de fake news, nada poderia fazer agora mais sentido que a sua filmografia de David Lynch.                         

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