Capas de chuva, ingressos em mãos e ouvidos atentos. Foi nesse pique que o público do Doce Maravilha chegou ao festival para conferir a continuação do deleite musical proporcionado no dia anterior (veja aqui!). ÁS, que conferiu tudo do gargalo durante os dois dias, logo engatou uma conversa com pessoas que aguardavam o show da Nação Zumbi e, empolgadíssimas, contaram do super desconto que o evento concedeu para quem marcou presença na primeira edição do evento, em agosto do ano passado, fazendo com que o check-in no Jockey Club Brasileiro valesse a pena sob qualquer circunstância. Mesmo para os marinheiros de primeira viagem, o gostinho de quero mais já se desenhava nos papos entre uma ida aos trucks de comidas ou nos bares distribuídos pelo evento. Afinal, bom evento é coisa do Rio. Não tem como não colar.
Com ativações lotadas, tipo o espaço do Mate Leão que bombou devido às boias laranja, Kombi, cabine de fotos e os bucket hats — símbolo máximo dos vendedores do chá-mate na praia —, que foram brindes nos dois dias, passando pelos espaços Amstel e Schweppes Drinks, além das diversas opções de alimentação, áreas cobertas e banheiros fluindo, a experiência de ver mais de 40 artistas resumia bem as vastas opções de entretenimento no final de semana no Pião do Jockey. Iniciativas com foco em sustentabilidade (separação de resíduos, reaproveitamento dos materiais utilizados na montagem como lonas e madeiras, estímulo ao uso de copos retornáveis) também somaram ao saldo positivo, assim como a dinâmica entre os palcos, o cumprimento dos horários dos shows e alinhamentos com o público em caso de possíveis atrasos. Receita boa e temperada por ações socioambientais importantes? Temos!

No show da Nação Zumbi, a convidada especial foi a lendária Lia de Itamaracá, cantora pernambucana de 80 anos e dona de toadas e cirandas que vibram brasilidades, assim como a banda que é a síntese de experimentações por essência. Aliás, a banda que no ano passado retornou de um hiato iniciado em 2021, avisou no palco que quer seguir rodando o país mesclando sonoridades. Na esteira, “Da Lama ao Caos” (1994) foi o epicentro do show, além das famosas cirandas de Lia, como a enérgica “Ô moreninha do dente de ouro“.

Lá na virada dos anos 1980 para 1990, se você perguntasse a qualquer pessoa por algum show que ela já tivesse assistido, Os Paralamas do Sucesso com certeza emplacariam a lista. Dinossauros do rock nacional, a banda surgida em Seropédica, no interior Rio, de fato dominou a cena e há mais de 40 anos vem tocando a fio uma carreira consistente por meio de letras fortes, que musicalizam a vida de gerações de fãs. Nesse segundo dia de festival, o palco Doce Maravilha recebeu a banda para uma revisita ao álbum “O Passo do Lui“, que completa 40 anos em agosto desse ano.
Apesar do sucesso do álbum de estreia (“Cinema Mudo“, de 1981), este segundo álbum redefiniu a linha musical da banda e a projetou ao status de queridinha do público, tudo isso numa esteira que incluía a apresentação no Rock in Rio de 1985 e o fato do hit “Óculos” tocar em praticamente todas as estações de rádio de rock, mas fora da bolha idem. Com um instrumental trepidante, a banda surgiu animada, flertando com as possibilidades de som antes de trocar a ordem das canções do álbum, garantindo as expressões de surpresa e alegria do público a cada acorde iniciado.

“Me liga” antecedeu “Menino e menina” e “Assaltaram a gramática” segurou a peteca antes de “Mensagem de amor” trazer aquela atmosfera sofrida, mas equilibrada pelo empenho da banda de manter os arranjos enfezados do disco. Na sequência, as pedradas sonoras em “Óculos” e “Meu erro” ganharam mais força da plateia que cantava a plenos pulmões. O hino “Alagados” foi outro destaque. Principalmente porque a temática da canção, que descreve a dicotomia de uma cidade maravilhosa cercando o caos, segue atualíssima e o Cristo de braços abertos no cartão postal, assim como na canção, decorava o plano de fundo do festival, mesmo com a neblina cobrindo o Corcovado. Semiótica pura!
Na onda das homenagens, um “Viva Raul” entoou em “Sociedade alternativa” e “Cuide bem do seu amor” rendeu beijocas apaixonadas dos casais presentes. Afinal, quem disse que a turma do rock não ama? “Uma brasileira” e “Lourinha Bombril” encerraram a apresentação com aquele gostinho de “…one more time, time, time“, mas assim como as demais aparições do festival, já denunciavam que o bis ficaria para outra oportunidade. Tudo bem, moderação sempre.

Antes das 19h a banda de Maria Bethânia já se alocava para o show com participação de Xande de Pilares. Apesar das colaborações em cena não serem comuns na carreira de Bethânia, que costuma raptar para si todos os holofotes quando o assunto é o palco, a artista segue exercitando seu mantra de “abraçar e agradecer”. Além do maestro e músicos que a acompanham, a presença luxuosíssima da percussionista Lan Lanh, como disse a própria Bethânia, também agregou ao caráter experimental que vem reformulando a maneira da artista se apresentar. Um tempo nos teatros e suas acústicas celestiais, e uma chance para os grandes festivais e toda a sua adrenalina. Amamos!

Seguindo o caminho que Gal vinha traçando nos últimos anos, subir ao palco de um festival também virou rotina na vida de Bethânia, que parece afiadíssima com essa modernidade despretensiosa que só a reconexão com novas gerações de ouvintes proporciona. Falando em Gal, antes de entoar seus clássicos revisitados ao lado de Xande, Bethânia vociferou: “Aplausos para a voz imortal de Gal“, enquanto uma foto das duas nos anos 70 ilustrava o telão e já dava o tom saudosista que voltaria a se repetir noite adentro, quando ela interpretaria “Baila comigo“, em homenagem à cantora Rita Lee. Coisa de Bethânia, acostumada a sempre contemplar amigos, saudar seus orixás e reverenciar o público que a acompanha há décadas.
Filha de Iansã, assim que pisara no palco a chuvinha que continuava a dar as caras logo se dissipou. Eparrey, Oyá! Em “As canções que você fez pra mim” a voz-instrumento da artista mostrou que o tempo é seu maior aliado e, numa performance lânguida, mas incisiva, Bethânia demonstrou todos os lugares que suas cordas vocais ainda a levam. “Reconvexo” e “Samba da bênção” foram bálsamos puríssimos para estreitar o contato com a plateia acostumada com shows montados exclusivamente para ela.

Na passagem para o solo de Xande, a cantora sentou ao lado dos músicos e assistiu ao artista agitando geral com os sambas “Do jeito que a vida quer” e “Brincadeira tem hora“, até o especialíssimo duo em “Mel” e “Gente“. Após uma série de referências a artistas, familiares, amigos e figuras religiosas, Bethânia nos levou de volta ao “Meus quintais“, álbum de 2014 que casou com a celebração dos seus 50 anos de carreira em 2014. Com a delicinha musical que é “Vento de lá / Imbelezô“, uma persona divertidíssima, íntima do palco, pululou de lá para cá. Em “Tá escrito” Xande retornou ao palco e, ao lado da baiana, encerraram pontualmente o show. Lindo de ver!




Último show do evento, o Capital Inicial deu um “control C/control V” no emblemático Acústico MTV (2000), que completa 25 anos em 2025. E tudo bem! Existem alguns artistas cuja música é tão intrínseca na vivência do público, que sempre terá espaço garantido em nossa memória afetiva. “Tudo Que Vai” e “Natasha“, inéditas quando o DVD foi lançado e hoje clássicos indispensáveis na setlist dos shows, foram pontos altos do show, marcado por trocas sinceras entre o vocalista e a plateia. Dos elogios a artistas que prezam pela composição sobre a espetacularização de suas vidas pessoais, ele ainda menciona a impotência da banda no momento de seu surgimento e do viés político que assumiu de forma natural, referenciando companheiros de estrada como Os Paralamas do Sucesso.
E, convenhamos, Capital Inicial é coisa nossa mesmo. Tão nossa que para tornar tudo mais fidedigno ao DVD Y2K, recorreu à Zélia Duncan e Kiko Zambianchi para a missão de reviver esse momento do rock nacional, fechando com chave de ouro um dos dias mais disputados. “Primeiros erros (chove)“, composta por Zambianchi rendeu declaração do vocalista: “Adrenalizado”, foi como Dinho Ouro Preto definiu a sensação de cantar para tanta gente envolvida, antes de anunciar que seguiria com algumas canções da sua primeira banda, a Aborto Elétrico, gerando outro daqueles momentos que geral canta abraçado, se emociona e agradece pelo final de semana em que a música brasileira brilhou.




*Por Andrey Costa
Foto destaque: Divulgação
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