Não espere originalidade, mas eficiência, de “Drácula – A última viagem do Deméter(The Last Voyage of the Demeter, 2023), longa-metragem que apresenta ao público o Capítulo 6 do clássico “Drácula”, de Bram Stoker (1997), aquele que narra a passagem em que o vampiro é transportado do Porto de Varna, na Bulgária, dentro de um caixão rumo a Londres. O diretor André Øvredal expande os registros do diário do capitão do navio acerca dos estranhos acontecimentos que dizimaram sua tripulação nesse traslado marítimo, contidos na obra literária, para as quase duas horas de projeção que atualizam para as novas gerações de plateia aquele jeito inglês de fazer horror típico da lendária produtora Hammer Film, que dominou o gênero entre os anos 1950 e 1970 com narrativas tão classudas quanto gore. Funciona, mesmo não sendo novidade neste momento em que o terror vive uma fase fértil na telona com elucubrações como as criadas por Jordan Peele (“Corra!” e “Não! Não olhe!”), Robert Eggers (“O Farol” e “O Homem do Norte”) e o catálogo de sustos da prolífica produtora A24, que traz no seu elenco do encenadores o criativo Ti West (“X” e “Pearl”).

"Drácula - A última viagem do Deméter" atualiza o horror do cinema inglês.
“Drácula – A última viagem do Deméter” procura flanar na onda da inclusão com elenco multiétnico. (Foto: Divulgação)

A novidade fica por conta da forma com que a realização reinterpreta a figura do sanguessuga mais famoso do cinema através de caracterização que mescla o caráter inumano do Conde (Javier Botet) visto no seminal “Nosferatu” (1922), síntese do cinema expressionista alemão, com significações que distanciam o personagem de um sofisticado vilão para aproximá-lo da semiótica bestial que define os zumbis – hoje em dia uma mina de ouro audiovisual muito mais rentável que os longas de vampiro. Quase sempre visto de relance em penumbras, esse Drácula do diretor comparece na tela destituído de humanidade, metendo tanto medo quanto o Bode Phillip do excelente “A Bruxa” (2015). Ele se rasteja em direção às suas vítimas como um morto-vivo até que precise ser rápido e mortal para alcançar seu objetivo de se alimentar, tipo uma repugnante ave de rapina.

"Drácula - A última viagem do Deméter" atualiza o horror do cinema inglês.
Morcegão: com mais efeitos mecânicos e maquiagem que computação gráfica, “Drácula – A última viagem do Deméter” investe em técnicas de desenvolvimento de criatura mais tradicionais que o CGI, com maquiagens elaboradas e bonecos mecânicos. (Foto: Divulgação)

Nessa codificação, acaba de propósito tirando casquinha da representação hoje cristalizada dos walking deads em produções como “Madrugada dos Mortos” (2004) ou “Exterminio” (2002). A esperta escolha de suprimir qualquer traço civilizado do vilão é um acerto que corrobora com essa primeira passagem do livro que se dedica a revelar o quanto Drácula, a despeito do seu título nobiliárquico, pode equivaler a um flagelo animalesco capaz de erradicar uma população inteira tanto quanto uma peste.

"Drácula - A última viagem do Deméter" atualiza o horror do cinema inglês.
Maniqueísmo funcional: um dos acertos da produção é o visagismo criado para tornar Drácula uma criatura despida de humanidade. (Foto: Divulgação)

Nesse ponto, o roteiro se encarrega de entregar tintas contemporâneas ao mito do vampiro em uma óbvia significação da contaminação causada por Drácula como uma praga pandêmica. Mas não é só pelo viés da covid que Øvredal procura renovar esse arquétipo tão batido: o grupo de marujos que ocupa o Deméter é plural, proporcionando ao espectador o caleidoscópio de diversidade que hoje norteia toda a produção cultural. De quebra, ainda flerta com a dinâmica do empoderamento ao eleger como protagonista um médico preto que não consegue emprego na sociedade vitoriana por preconceito racial. Uma novidade que pretende, claro, conectar a narrativa batida à agenda de pautas sociais em moda atualmente, agradando engajadinhos.  

Liam Cunningham (à esquerda) e Corey Hawkins (à direita), de “Infiltrado na Klan” (2018) oferecem boas atuações em uma produção que não desenvolve a fundo os personagens, procurando operar no estereótipo. (Foto: Divulgação)

Apesar de esquemática, a claustrofóbica produção é capaz de oferecer bons sustos. E ainda conta com o talento de Liam Cunningham, rosto conhecido do grande público por “Game of Thrones”, e do onipresente David Dastmalchian (“Duna: parte 1”, “Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania” e “O Esquadrão Suicida”) em papeis de destaque, apimentando os atributos dispostos a agradar a massa nerd que hoje mantém as salas de exibição ativas.

"Drácula - A última viagem do Deméter" atualiza o horror do cinema inglês.
David Dastmalchian é destaque nesta nova empreitada do diretor de “A autópsia” (2016). (Foto: Divulgação)

Além disso, vale o registro da encardida concepção visual do cargueiro Deméter, a cargo do designer de produção Edward Thomas, que transforma a embarcação em uma casa mal-assombrada pretensamente pensada para remeter à nave espacial Nostromo de “Alien” (1979), eficaz, sobretudo, quando se considera a sombria fotografia de Tim Stern que, ao invés de esconder detalhes, apenas enfatiza o chiaro-oscuro proposto pelo acúmulo de objetos neste navio decadente – produção de arte do decorador de set  Bernhard  Heinrich. As escolhas feitas por esse trio de artistas visuais acentua a visão do diretor, compensando a previsibilidade do roteiro que, independente do público conhecer ou não o clássico de Stoker, já sabe que, uma a um, todos vão morrer. E ainda disfarça falhas da direção como desperdiçar os períodos diurnas em que os marinheiros poderiam estar traçando sua estratégia de sobrevivência, justamente quando Drácula está em recesso por conta da luz do sol, somente para apresentar a ambiência soturna. Tão inacreditável quanto crer que existam vampiros…  

Confira abaixo o trailer legendado oficial de “Drácula – a última viagem do Deméter” (Divulgação):

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