Do alto de uma escada de serviço, o Coronel Tom Parker (Tom Hanks, magistral, atuando sob pesada caracterização) observa o jovem Elvis Presley (Austin Butler, magnético) se preparando para entrar em cena numa cidadezinha do interior americano, bem no início de carreira. Seu faro é inigualável. E acaba o conduzindo à coxia do teatro, quando seu instinto se transforma em epifania: está diante de uma tremenda massinha de modelar, um contundente fenômeno de massa prestes a explodir, lava de vulcão capaz de lhe render uma grana preta, podendo até abrir mão do circo itinerante que comanda. De fato, o que veio a seguir confirmou o vislumbre desse agente de talentos, tão estereotipado quando um apresentador de picadeiro: num piscar de olhos e pelas suas mãos, o cantor se converteria no Rei do Rock, responsável por tirar o rock’n’roll do gueto da música negra, ressignificando o gênero sob os ditames da juventude transviada branca que emergira num pós-guerra emoldurado pela era do consumo. O resto seria consequência, ou seja, o tilintar da caixa registradora. Através de Parker, esse assanhado e frenético estilo singrou a periferia rumo à acanhada sala de estar da tradicional família americana, mais afeita do que se supunha a um jogo de quadris, cujos filhos (e depois os pais) se entregariam de corpo, alma e hormônios ao seu suingue incomparável, sua voz potente e seu sexy appeal, tudo embalado por um rebolado de milhões. Ao sacudir o esqueleto, o branquelo Elvis difundiria com louvor a malemolência preta pela totalidade de lares estadounidenses, da classe média carola às fogosas altas rodas numa era de forte segregação racial, se convertendo na galinha dos ovos de ouro pela qual o viciado em jogos de azar Parker passaria a exercer dupla função pelos próximos vinte e dois anos: a de pai substituto (para manter a criatura sob o jugo do criador) e a principal – a de hábil e manipulador empresário, passível de se sujeitar a qualquer coisa desde que o show não possa parar. É através do seu olhar que o exagerado Baz Luhrmann procura destrinchar, para as novas gerações, a ascensão e decadência de uma dos maiores nomes da história da música mundial – e uma das figuras seminais da cultura pop do século 20 – em “Elvis(idem, Warner Bros., 2022), que acaba de estrear no circuito.

Transmutação: apesar do nariz perfeitinho e da boca bem-desenhada, não é possível dizer que Austin Butler seja parecido com o Rei do Rock. É na telona, entretanto, que o resultado se torna visível. Butler sw transforma em Presley num mix de boa atuação e trabalho de maquiagem primoroso. (Divulgação)

Em se tratando de Luhrmann, nada é simples, a começar pela sua obsessão em submeter a narrativa à sua visão videoclipeana da vida, à exaustão, via processos de pós-produção numa inacreditável profusão de efeitos visuais por centímetro quadrado, de telas divididas a letreiros de nightclubs que se abrem em pop-up, às vistas da plateia, assim como zooms faceiros, cortes bruscos e câmeras lentas que se encarregam de codificar mitologias, procurando compensar o roteiro epidérmico. Sua marca, assim como a glamourização do vilão.

“Elvis” explora o inicio e a consolidação da carreira do astro como ídolo afinado com o processo de juvenilização da sociedade, que eclode após a Segunda Guerra Mundial, passando batido pela fase de astro do cinema e atingindo o ápice dramático após a renovação da sua imagem como cantor de spirituals e posterior decadência, já fragilizado pela quantidade de drogas que consumia para dar conta dos exaustivos compromissos. Tudo desfiado de maneira superficial, mas envolvente. (Divulgação)

Com um detalhe: se o diretor australiano é bamba em revestir antagonistas num glacê pronto para ser saboreado – foi assim com o Teobaldo de John Leguizamo em “Romeu + Julieta” (1996), com o empresário possessivo vivido por Richard Roxbourgh em “Moulin Rouge” (2001) e o Tom Buchanan (Joel Edgerton) de “O Grande Gatsby” (2013) –, ele agora atinge o ápice. Afinal, dessa vez é o vilão quem conta a história, pouco importando o seu coeficiente de asco. Para dar cabo dessa missão, Tom Hanks brilha, agarrando com afinco o paradoxo de fascínio e repulsa que pode causar alguém munido com o dom de iludir. Como um ilusionista de quermesse, seu Coronel Parker, ainda que codificado por obviedades semióticas, é pleno de nuances que podem até englobar a doçura em misto de emoções que cativa um público hoje tão massacrado por polarizações na sua vida real.

Amor & balas: à esquerda, uma foto clássica que revela, na brincadeira, a turbulenta relação entre Elvis e seu empresário Coronel Parker, vivido no filme por Tom Hanks (à direita). Na vida real, o mentor arrancou do astro o que pode, chegando a receber 50% de tudo aquilo que o artista amealhou nos discos, shows e em Hollywood, sendo processado no final. Apesar de negociador linha-dura, a ponto de ser chamado pelo produtor de cinema Sam Katzman de “o maior vigarista do mundo”, Parker terminou seus dias cheio de dívidas, nos anos 1990. Entretanto, é inegável sua importância na consolidação da carreira do cantor e ator. Seu tino para os negócios o fez antecipar em pelo menos 20 anos o conceito de lucrar com a imagem de produtos culturais em merchandising, hoje uma estratégia de faturamento corriqueira. A produção o vende como uma raposa pronta para transformar em consumo até mesmo um espirro de Elvis, lucrando com camisetas, suéteres, bonés e canecas. (Divulgação)

Esse aspecto dá tão certo que somos até capazes de esquecer o principal: Lurhmann jamais se arrisca, preferindo repetir ad eternum fórmulas que vêm funcionando há 30 anos, desde o kitsch Vem dançar comigo” (1992), ainda que produza um cinema dotado de identidade.  

‘Elvis” explora a influência da musica negra sobre o artista, dos gospels que o futuro astro ouvia nos cultos evangélicos, ainda criança, à convivência com talentos negros na juventude, como B.B.King e Little Richard (na foto, vivido por Alton Mason). A forma como é apresentada a relação de Presley com esses músicos colabora na percepção do quanto tudo se deu de forma natural, ainda que hoje o mito seja demonizado por puristas pela alcunha de apropriação da cultura negra. É o contrário: Elvis abriu espaço para o segmento sair do gueto e alcançar o mainstream, numa era marcada por graves questões raciais. (Divulgação)

Confira abaixo o trailer legendado oficial de Elvis” (Divulgação):

Com “Elvis”, provavelmente o diretor vai repetir o que fez por Leonardo Di Caprio em “Romeu + Julieta” e Nicole Kidman em “Moulin Rouge”. Deve colaborar na cristalização da carreira de Austin Butler como astro, que já emerge dessa produção como a grande novidade da parte 2 de “Duna”, após uma sequência de participações em séries de TV e a presença, em pequenos papeis, nas realizações de diretores consagrados, como Quentin Tarantino – “Era uma vez em…Hollywood” (2019) – e Jim Jarmush – “Os mortos não morrem” (2019). Com seu olhar cínico e rebelde, nariz perfeito e boca suculenta, mais uma surpreendente reprodução dos trejeitos que marcaram o ícone, o jovem ator vale cada frame da projeção, mesmo quando se considera o excesso de exageros. Soma-se a isso a maneira como ele exala o desejo de vencer na vida, praticamente um afrodisíaco no longa-metragem.

Ribalta no design de produção: “Elvis” oferece ao público um sofisticado panorama do showbizz no início, auge e declínio do Rei do Rock. Parte dessa atmosfera envolvente deve ser creditado à esposa de Baz Lurhamnn, Catherine Martin, que geralmente assina a direção de arte e figurino dos filmes do marido. Mais uma vez, ela estabelece a parceria com a Prada, que desenvolveu vários figurinos para a produção, como já havia realizado em “O Grande Gatsby”. (Divulgação)

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