Ambientado no mundo da alta-costura dos anos 1950, Trama Fantasma” (Phantom Thread, Universal Pictures e outros, 2017) abusa das relações de interdependência entre criador de moda e cliente como alegoria para estabelecer que as relações afetivas, tal qual as primeiras, são jogos de afeto nos quais predominam dominação, submissão e até perversão. Grosso modo, o diretor Paul Thomas Anderson faz um ótimo filme tão inquietante quanto provocador, um sádico suspense tipo Hitchcock ou Brian DePalma, repleto de simbolismos como as realizações de Peter Greenaway.

(Foto: Divulgação)

O fashion designer Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) vive uma relação de poder e sadismo com a musa, top model, modelo de prova e namorada Alma (Vicky Krieps) em “Trama Fantasma” (Foto: Divulgação)

Aliás, embora o suspense possa ser evidente nesta que está sendo anunciada como a despedida das telas de seu ator principal, Daniel Day-Lewis, e com a ótima esnobe música de Jonny Greenwood indo do delicado ao assustador, o estofo estilístico-visual de Anderson o aproxima muito de Greenaway ainda mais nessa obra, considerando o apreço que ambos os diretores têm tanto pela meticulosa construção visual quando pela inserção de minuciosas significações.

Descoberta Woodcock (Day-Lewis) por ele num café como garçonete, Alma (Vicky Krieps, à esquerda) se transforma numa modelo de couture, na nova Galateia de um pigmalião cuja vaidade pode ser maior que o desejo de enobrecer seu objeto do amor (Foto: Divulgação)

Confira abaixo o trailer oficial legendado (Divulgação):  

Dentre os candidatos ao Oscar de ‘Melhor Filme’, sem sombra de dúvida “Trama Fantasma” encontra-se na dianteira ao lado de Três anúncios para um crime(leia mais aqui), embora esse último possa se ressentir, exceto pela excelente última cena, de uma barriga em sua reta final, o que não acontece com o longa-metragem de Anderson, que prossegue do início ao fim num crescente que beira o medo.

Reynolds Woodcock estabelece relações de dominação e dependência com as clientes do seu ateliê de alta moda. Com algumas delas, em cujo passado ele se misturou afetivamente, o relacionamento pode incluir até misoginia (Foto: Divulgação)

Afinal, pode ser mesmo aterrorizante estabelecer uma relação entre amantes, entre artista e musa, entre homem e mulher quando tudo isso está embaralhado e quando estão em cena disputas sádicas de micro poder, numa dimensão foucaultiana.

Como irmã, mãe substituta e segunda em comando no ateliê de Reynolds Woodcock, Leslie Manville rouba cena em “Trama Fantasma” num papel que pode ser interpretado como um amálgama entre uma típica dominatrix do meio empresarial da moda e a circunspecta, proativa e dominadora governanta,  que conhece todas as nuances da personalidade do patrão, vivida por Judith Anderson no clássico “Rebecca”, de Alfred Hitchcock (Foto: Divulgação)

Assim como pode ser um exercício de pavor o espetáculo que se faz necessário para manter ao redor a mística imprescindível para sobreviver no alto da pirâmide do universo fashion, com representações pessoais que beiram esquisitices pseudochiques e barroquismos cujo objetivo, senão, é somente para impressionar se mantendo no topo da carne-seca ou ainda para suprir as próprias carências.

Asséptico e tão aristocrático quanto frio, o bureau de criação de moda de “Trama Fantasma” reproduz com exatidão a atmosfera de subserviência, dominação e obsessão pelo trabalho que beira o transtorno compulsivo obsessivo que se espera do mundinho da moda (Foto: Divulgação)

Na pele do estilista talentoso, excêntrico, refinado, quase misógino e obsessivo Reynolds Woodcock,  que tem um édipo mal-resolvidíssimo com a mãe morta, Day-Lewis pinta e borda numa maturidade cênica ímpar, brilhantemente amparado por Vicky Krieps, a ex-garçonete Alma alçada por ele ao posto de boneca Barbie da vez, cujo passado pouco importa desde que cumpra a função de boneca de prova que lhe foi destinada, no ateliê e na vida pessoal. Algo que estilistas, stylists, produtores de moda, maquiadores, fotógrafos e diretores criativos fazem diariamente ao seu bel-prazer, assim como todos nós ao fetichizar criaturas que passam pela nossa vida emocional para, quem sabe, descartá-las mais adiante quando perdemos o interesse e descobrimos um novo brinquedinho.

Boneca na estante: a ex-garçonete Alma (Vicky Krieps) se sujeita a ser namorada-fetiche do egoísta Reyndols (Daniel Day-Lewis), que parece pouco se importar se ela é um ser humano ou apenas um joguete de sua elucubrações estilísticas (Foto: Divulgação)

Ao longo da narrativa, Vicky desempenha o papel de inspiração, braço-direito no trabalho, namorada, mulher e até modelo fotográfica de Reynolds Woodcock (Day-Lewis). E é nesse emaranhado de funções que ela acaba descobrindo como virar a mesa com o amor de sua vida (Foto: Divulgação)

Nesse âmbito, Paul Thomas Anderson dá um soco no estômago do público ao personificar a moda quase como uma persona vivinha da silva na psiquê de quem trabalha nela, se alimenta dela ou a simplesmente a consome em justaposição à fixação de comparar seres humanos, no vigor de suas relações íntimas, a itens fashion que podem ser retirados da circulação em nossas existências reduzidas a guardarroupas, como se fossem um antigo vestido lindo que ficou demodê.

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