Em 2025 Elis Regina faria 80 anos. Vida efêmera e carreira meteórica, a pimentinha deixou um legado valoroso para mulheres que enviesaram, em dado momento de suas jornadas, pelo canto da cantora. No caso de Laila Garin, talento absoluto da atuação e masterclass humana no quesito voz como instrumento, esse encontro com Elis nasceu, cresceu e demonstra maturar cada dia mais sob novas perspectivas que se ajustam de acordo com a forma em que a vida da “cantatriz” se transforma. Da beleza sonora e estética, passando pelo tom político, Laila alinhava sentimentos coletivos de celebração da vida, mas com o olhar atento para nossas dores, em show que segue valendo o ingresso.
Ao lado de Claudia Elizeu (pianista e maestra) e Thaís Ferreira (violoncelista), Laila retorna aos palcos com “Laila Garin canta Elis” e demonstra vontade de rodar o Brasil com o show e, quiçá, ir para fora também. Se em 2020, ano da estreia desse “bibelô” musical, o formato já emocionava pelo tom ultrassensível e repertório refinado, ao cortarmos para o hoje, as apresentações que aconteceram nos dias 04 e 05 de abril no Theatro Municipal de Niterói ganharam deltas contemporâneos cada vez mais otimistas. Para celebrar Elis e apresentar um Brasil em constante retomada às mazelas e alegrias, Garin bateu um papo com ÁS antes de subir ao palco e contou tudo. Confira!

Ás na Manga: Por conta da sua carreira de atriz, a sua carreira musical se tornou algo mítico; o que justifica a espera por shows como esse. Tendo a voz como instrumento que comunica mensagens importantes, assim como foi para Elis Regina, Gal Costa, Maria Bethânia, Claudya — grandes intérpretes que apoiaram seu canto sobre a obra de compositores indispensáveis para entender o Brasil —, como você lida com essa expectativa?
Laila Garin: Antes de tudo eu me vejo como uma atriz que canta, eu não me vejo como cantora. É diferente dessas gigantes que você citou. Sim, sou intérprete, que é o que uma atriz é. Então, talvez até por isso, eu ainda faça shows. Cantar Elis, por exemplo, é algo que o público pede, até porque foi um espetáculo que marcou a minha carreira e porque são músicas maravilhosas que eu amo cantar, todas escritas por compositores que são mestres da comunicação com o povo. Quando a gente revisita essas canções, a gente acaba se nutrindo também, é uma troca mútua, me alimenta também.

ÁS: Sobre a cena musical brasileira, onde muitas vezes o banal acaba engolindo o essencial, como você se enxerga nesse lugar?
LG: Como as cantoras que você citou antes, eu não me vejo tendo a mesma importância que elas tiveram e ainda têm para a música brasileira. Sim, eu me considero uma atriz que canta e não acho que eu entrei nesse mercado musical, mesmo com essa demanda. Na verdade, acho que eu realmente não lido bem com essas questões do mercado musical. Eu não estou em nenhuma prateleira, entende? Eu já tive contrato com a Som Livre, então acho que se fosse classificar eu seria uma cantora de MPB, né? Posso vir a gravar outro disco, mas não é a prioridade. Inclusive, eu tive um insight vendo a (cantora) Juliana Linhares falando sobre as intérpretes: eu acho que as intérpretes não são muito reconhecidas, apesar da gente ser um país em que a alma da música brasileira é a voz de uma mulher. Eu só acho que ainda não sou cantora para o mercado da música. E nem acredito que o mercado me enxergue como cantora também, já que não me inclui. Ah, mas também eu nem estou correndo atrás dele (ri). Eu desisti dele. Eu não cumpro com as demandas ou tento me submeter.

ÁS: Sobre esse resgate do repertório de Elis, que já se transformou no registro de um relacionamento platônico entre vocês, como essa mensagem chega ao público num momento em que não temos Bolsonaro no poder, mas o bolsonarismo ainda ronda?
LG: Elis representa muita coisa. Quando a gente revisita a obra dela, a gente acaba sendo obrigado a falar da história da gente. Ela é a nossa história política, ela é a luta contra a ditadura, ela é a revelação de compositores sublimes e músicos maravilhosos que ela mostrou ao mundo. Revisitar a obra dela é se reencontrar com uma mulher à frente do seu tempo, provocativa em suas falas e atitudes. Essas falas, aliás, feministas sem forjarem-se no feminismo. Então, quando eu canto Elis, canto mais sobre os valores deixados do que o saudosismo pelas músicas. É um repertório que nos faz lembrar da nossa história e de que o Brasil tem memória curta. Não acho que a gente esteja livre do bolsonarismo, creio que estamos bem longe, na verdade, então eu sigo fazendo esse show para evocar essa força dela contra as opressões que estão aí, mas com a leveza de cantar músicas bonitas que a gente sempre deve destacar.

ÁS: Você não se reconhece como cantora no sentido literal da palavra, mas a sua voz é muito sensível, sentimos a lágrima e a risada em cada nota, o que é uma característica das grandes cantoras. Sendo assim, me conta como se deu essa relação com a música dentro de casa e a descoberta dela dentro de você?
LG: Minha voz é um instrumento, é minha matéria-prima. Digo, o sentimento, as emoções, as questões do ser, filosofas e tal, o drama humano, tudo isso alimenta minha voz; eu a uso para fazer tudo. Então, sim, eu sou cantora essencialmente. Na infância, em casa, minha mãe ouvia de tudo. Contextualizando, minha mãe é professora universitária, homossexual, foi presa política, então ela ouvia Caetano Veloso, Ney Matogrosso, Bethânia, Elis um pouco menos, mas sempre tinha muita música lá em casa. Minha mãe tocava violão, sabe? Lembro das serestas e também de ouvir muitas músicas eruditas, por conta da minha ascendência francesa. Final de semana a vitrola bombava!
ÁS: De toda essa galera que alimenta tua playlist, qual seria a colaboração/feat. dos sonhos?
LG: Eu amo a Mayra Andrade, adoro o BaianaSystem, a Juliana Linhares; acho que é uma turma tem a ver comigo.

ÁS: Me conta sobre sua relação com a Claudia Elizeu e a Thaís Ferreira, que te acompanham no palco. Como surgiu a ideia de botar de pé esse show?
LG: Eu as conheci fazendo o espetáculo “Elis, a Musical“, aí veio a pandemia e, quando começaram a flexibilizar os shows, a ideia tomou forma. Foi em 2020: o Teatro Adolfo Bloch permitiu botar o público ao ar livre e abrir o fundo do palco, então, a gente ficava no palco por conta do distanciamento (não haviam vacinas). Pleno governo Bolsonaro, sabe? O desamparo na saúde e nas artes era a realidade. Por isso mesmo fizemos um repertório que tinha muito a ver com essa sensação de opressão por uma extrema-direita e de pensar nessa coisa da vida e da morte caminhando juntas. No começo o show tinha um tom melancólico, mas na verdade tem pulsão de vida, hoje com essas mulheres acaba sendo uma celebração dos 80 anos de Elis. Ficou um show muito chique, para cello e piano, uma joia, que nem esse teatro.

ÁS: Há o desejo de levar esse show para mais lugares do Brasil ou para fora?
LG: A gente está construindo, mas com um novo repertório, um show nesse mesmo formato. E sim, queremos botar o pé na estrada pelo Brasil e, claro, levá-lo para fora; começando por Portugal.
ÁS: Que mensagem você busca passar através desse show?
LG: São tantas… A primeira é a de que o Brasil realmente viveu uma ditadura, a segunda é a de que a gente tem que condenar os crimes contra a democracia. Por fim, lembrar sempre que a gente tem uma cultura maravilhosa, portanto o show de todo artista tem que continuar.

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