Existem mais coisas entre o céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia. Obviamente, a vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro, como ‘Melhor Atriz em Dama’ pelo magnético “Ainda estou aqui”, é maravilhosa e a atriz, estupenda, vale cada frame da projeção. Sua atuação é soberba e o Brasil só tem o que comemorar. E é justamente seu prêmio – considerado o azarão da noite, ainda mais concorrendo ao lado de pesos pesados de Hollywood como Nicole Kidman, Angelina Jolie, Tilda Swinton e Kate Winslet – que entrega o jogo: definitivamente, o evento, organizado pela Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood, mudou. A começar pela base de votantes, que subiu de 80 correspondentes sediados em Los Angeles para 344 jornalistas egressos de toda parte do mundo, esta edição 2025 se revelou pronta para o confronto com o ultraconservadorismo que anda tomando conta do planeta e que ganha destaque às 14h do próximo dia 20 de janeiro com a posse de Donald Trump na Casa Branca.

Premiação do Globo de Ouro foi termômetro da resistência que Trump vai encontrar no mundo do cinema.
Fernanda Torres: a vitória inesperada da brasileira na 82ª edição do Globo de Ouro tem várias camadas de significado. A atriz desistiu de interpretar Odete Roitman no remake de “Vale Tudo“, que estreia no final de e março, na Globo, para se dedicar á turnê de divulgação de “Ainda estou aqui” (Foto: Divulgação)

A lista de vencedores é uma bandeira de que, sem precisar do alarde que o Oscar costuma fazer com a pauta woke, muitas vezes apenas para receber likes, o Globo de Ouro focou firme nas questões relativas à justiça social e racial. O destaque ganho com “Ainda estou aqui”, que oportunamente apresenta a luta de Eunice Paiva em plena ditadura brasileira, pode ser traduzido como um alerta dos votantes para o fenômeno da ultradireita assumindo o poder em vários países do mundo e a forma como esta procura se perpetuar nele à custa do apagamento das memórias do passado.

Fernanda Torres é dirigida no set por Walter Salles (em pé): as sequências que reproduzem os interrogatórios sofridos por Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva, nos porões da ditadura são momentos marcantes em “Ainda estou aqui” (Foto: Divulgação)

Não foi pouca coisa Fernanda receber a estatueta pelas mãos de Viola Davis, uma mulher preta, madura e ativista, também contemplada nessa edição com o Prêmio Cecil B. DeMille (honraria que já celebrou a trajetória de bichos políticos do naipe de Jane Fonda, Meryl Streep, Sidney Poitier e Barbra Streisand). Este detalhe amplia o poder de fogo da vitória de Fernanda demonstrando que, se depender do audiovisual, Trump não vai ter moleza, mesmo com maioria no congresso.

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Encontro histórico no palco e no backstage: atriz negra de maior repercussão na Hollywood atual, Viola Davis entregou a estatueta de ‘Melhor Atriz em Drama’ a Fernanda Torres na 82ª edição do Globo de Ouro (Foto: Reprodução)

Outros vitoriosos da noite seguiram nessa direção, em maior ou menor escala, mas com destaques igualmente significativos. Demi Moore, linda aos 62, abocanhou a categoria de ‘Melhor Atriz em Musical ou Comédia’ pelo terror “A Substância”, refletindo a importância de se combater o antietarismo, sobretudo quando a narrativa vista na tela, sobre uma celebridade em decadência por conta da idade avançada, se confunde em curioso exercício de metalinguagem com o próprio percurso da atriz, cujo discurso ao emocionou por enfatizar isso.  

Premiação do Globo de Ouro foi termômetro da resistência que Trump vai encontrar no mundo do cinema.
Do lixo ao luxo: desprezada pelo Oscar durante seu auge, apesar da condição de estrela de grande sucesso de público, nos anos 1990, Demi Moore deu a volta por cima na maturidade, com “A Substância”, hipnotizando a plateia com sua performance arrebatadora e beleza magnética madura. O filme foi aplaudido por 11 minutos em sua estreia, no Festival de Cannes, no qual ganhou o prêmio de ‘Melhor Roteiro’ (Foto: Getty Images/ Divulgação)

Nesse âmbito, como não considerar as vitórias de Jodie Foster, 62 e lésbica assumidíssima, como ‘Melhor Atriz em Série Limitada, Antologia ou Filme Feito para a TV’ por “True Detective: Night Country” ou a veterana Jean Smart, 73, por ‘Melhor Atriz de TV Comédia’ por “Hacks” e que concorreu com peles de pêssego de grande apelo nas redes, como Selena Gomez?

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Estrelado pela atriz transexual espanhola Karla Sofia Gascón, e com participações impactantes de Zoe Saldaña (esq.) e Selena Gomez (dir.), o musical “Emilia Pérez” conquistou o público com a inusitada narrativa sobre um perigoso narcotraficante que muda de sexo, se tornando um fenômeno junto à crítica internacional e sendo o longa-metragem selecionado para abrir o último Festival do Rio, em outubro (Foto: Divulgação)

Ou ainda a estrela preta de ascendência portorriquenha e dominicana Zoe Saldaña, 46, ao levar para casa a estatueta de ‘Melhor Atriz Coadjuvante de Filme’ em uma produção – o sensível “Emilia Pérez” – que, na contramão dos inúmeros filmes pipoca nos quais costuma dar expediente, interpreta uma advogada desiludida com a profissão, mas às voltas com o processo de transição de sexo de um cliente?

Ao procurar desnudar as entranhas de um dos fenômenos políticos mais secretos do mundo – a eleição de um papa -, “Conclave” transborda em polêmicas como a masculinidade tóxica e o emudecimento das mulheres na Igreja Católica. Além de astros maduros como Ralph Fiennes e Stanley Tucci, a produção de Edward Berger apresenta Isabella Rossellini em atuação afiada como a Irmã Agnes, uma freira sagaz, apesar de submissa ao sistema (Foto: Divulgação)

Já o roteirista do espetacular “Conclave” – cinemão da melhor qualidade que oferece ao púbico um drama político sobre a sucessão papal –,  Peter Straugham, arrebatou ‘Melhor Roteiro de Filme’. No cardápio de temas delicados que o longa-metragem aborda, está o ultrapassado sistema patriarcal do Vaticano que anula as mulheres, e ainda questões de gênero (sem spoilers). Foi nessa direção, aliás, que justamente a comedia musical francesa falada parcialmente em espanhol “Emilia Pérez” foi o grande vencedor da gala, com quatro vitórias, inclusive ‘Melhor Filme Comédia ou Musical’ e ‘Melhor Filme em Língua Não Inglesa’, deixando claro que a briga com Donald Trump está apenas começando. Em um passado recente, quem imaginaria que uma realização sobre identidade de gênero seria o grande agraciado da festa?

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