Existem mais coisas entre o céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia. Obviamente, a vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro, como ‘Melhor Atriz em Dama’ pelo magnético “Ainda estou aqui”, é maravilhosa e a atriz, estupenda, vale cada frame da projeção. Sua atuação é soberba e o Brasil só tem o que comemorar. E é justamente seu prêmio – considerado o azarão da noite, ainda mais concorrendo ao lado de pesos pesados de Hollywood como Nicole Kidman, Angelina Jolie, Tilda Swinton e Kate Winslet – que entrega o jogo: definitivamente, o evento, organizado pela Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood, mudou. A começar pela base de votantes, que subiu de 80 correspondentes sediados em Los Angeles para 344 jornalistas egressos de toda parte do mundo, esta edição 2025 se revelou pronta para o confronto com o ultraconservadorismo que anda tomando conta do planeta e que ganha destaque às 14h do próximo dia 20 de janeiro com a posse de Donald Trump na Casa Branca.

A lista de vencedores é uma bandeira de que, sem precisar do alarde que o Oscar costuma fazer com a pauta woke, muitas vezes apenas para receber likes, o Globo de Ouro focou firme nas questões relativas à justiça social e racial. O destaque ganho com “Ainda estou aqui”, que oportunamente apresenta a luta de Eunice Paiva em plena ditadura brasileira, pode ser traduzido como um alerta dos votantes para o fenômeno da ultradireita assumindo o poder em vários países do mundo e a forma como esta procura se perpetuar nele à custa do apagamento das memórias do passado.

Não foi pouca coisa Fernanda receber a estatueta pelas mãos de Viola Davis, uma mulher preta, madura e ativista, também contemplada nessa edição com o Prêmio Cecil B. DeMille (honraria que já celebrou a trajetória de bichos políticos do naipe de Jane Fonda, Meryl Streep, Sidney Poitier e Barbra Streisand). Este detalhe amplia o poder de fogo da vitória de Fernanda demonstrando que, se depender do audiovisual, Trump não vai ter moleza, mesmo com maioria no congresso.

Outros vitoriosos da noite seguiram nessa direção, em maior ou menor escala, mas com destaques igualmente significativos. Demi Moore, linda aos 62, abocanhou a categoria de ‘Melhor Atriz em Musical ou Comédia’ pelo terror “A Substância”, refletindo a importância de se combater o antietarismo, sobretudo quando a narrativa vista na tela, sobre uma celebridade em decadência por conta da idade avançada, se confunde em curioso exercício de metalinguagem com o próprio percurso da atriz, cujo discurso ao emocionou por enfatizar isso.

Nesse âmbito, como não considerar as vitórias de Jodie Foster, 62 e lésbica assumidíssima, como ‘Melhor Atriz em Série Limitada, Antologia ou Filme Feito para a TV’ por “True Detective: Night Country” ou a veterana Jean Smart, 73, por ‘Melhor Atriz de TV Comédia’ por “Hacks” e que concorreu com peles de pêssego de grande apelo nas redes, como Selena Gomez?

Ou ainda a estrela preta de ascendência portorriquenha e dominicana Zoe Saldaña, 46, ao levar para casa a estatueta de ‘Melhor Atriz Coadjuvante de Filme’ em uma produção – o sensível “Emilia Pérez” – que, na contramão dos inúmeros filmes pipoca nos quais costuma dar expediente, interpreta uma advogada desiludida com a profissão, mas às voltas com o processo de transição de sexo de um cliente?

Já o roteirista do espetacular “Conclave” – cinemão da melhor qualidade que oferece ao púbico um drama político sobre a sucessão papal –, Peter Straugham, arrebatou ‘Melhor Roteiro de Filme’. No cardápio de temas delicados que o longa-metragem aborda, está o ultrapassado sistema patriarcal do Vaticano que anula as mulheres, e ainda questões de gênero (sem spoilers). Foi nessa direção, aliás, que justamente a comedia musical francesa falada parcialmente em espanhol “Emilia Pérez” foi o grande vencedor da gala, com quatro vitórias, inclusive ‘Melhor Filme Comédia ou Musical’ e ‘Melhor Filme em Língua Não Inglesa’, deixando claro que a briga com Donald Trump está apenas começando. Em um passado recente, quem imaginaria que uma realização sobre identidade de gênero seria o grande agraciado da festa?
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