* Por Flávio Di Cola, direto de Cannes
Em “Ladrão de Casaca”, clássico do suspense de Alfred Hitchcock de 1955, ambientado na Riviera Francesa, Cary Grant interpretou um dos seus papeis mais emblemáticos, cristalizando para sempre no imaginário de gerações aquilo que é até hoje considerado a quinta essência da verdadeira elegância, a naturalidade. Pois bem, nesse mesmo cenário privilegiado do planeta e 62 anos depois, em meio à 70ª edição do Festival de Cannes, a propalada imagem daquele que aparece em todas as listas como um dos mais belos, charmosos e talentosos artistas cinematográficos de todos os tempos começa a ser desmontada através do documentário biográfico “Becoming Cary Grant”, co-escrito e dirigido pelo britânico Mark Kidel, e que está sendo considerado um dos melhores títulos da mostra paralela Cannes Classics, dedicada exclusivamente às apresentações de grandes clássicos universais restaurados do cinema e aos documentários sobre o mundo do cinema.

A cinebiografia “Becoming Cary Grant”, em apresentação em Cannes, é um estudo sobre o árduo processo de construção da imagem de Cary Grant como paradigma supremo da elegância masculina através de imagens e textos produzidas pelo próprio astro (Foto: Divulgação)
O mais curioso é que essa “desconstrução” não é do tipo que tem como objetivo o aniquilamento iconoclasta e oportunista dos grandes mitos, um dos mais perversos subprodutos do culto às celebridades. Pelo contrário, o documentário de Kidel tenta comprovar exatamente o contrário, ou seja, que as qualidades exaustivamente relacionadas à imagem de Cary Grant desde os anos 1930, quando estreou no cinema, como sutileza, fidalguia, suavidade, minimalismo e graciosidade eram genuínas e foram forjadas e refinadas com muita inteligência e trabalho árduo pelo próprio ator ao longo de uma carreira espetacular que começou no vaudeville londrino nos anos 1920 e só cessou no momento da sua morte aos 82 anos, em 1986, causada por um ataque do coração, enquanto se preparava para uma apresentação do show Conversation with Cary Grant num teatro da cidade de Davenport, no estado de Iowa.

Mark Kidel, o diretor de “Becoming Cary Grant”, passou pela Croisette para apresentar o documentário dentro da mostra Cannes Classic do Festival dedicada exclusivamente a filmes sobre o mundo do cinema (Foto: Divulgação)
Mark Kidel – um experimentado documentarista que já biografou personalidades como Elvis Costello, Boy George, Ravi Shankar, Rod Stewart e Derek Jarman – que está em Cannes para acompanhar a première mundial do seu documentário, afirma que a sua obra traz a público um material inédito e exclusivo que a credencia a mudar a nossa compreensão sobre o imorredouro “estilo Cary Grant”: a pesquisa tem como base uma série de filmes coloridos em 16mm realizados pelo próprio Grant no fim dos anos 1930 e recentemente descobertos.

Cary Grant levou sua câmera para registrar muitas das suas viagens, como esta em que compareceu ao Festival de Cinema de Veneza, em 1939, e se deixou fotografar com o seu aparelho no chão. Sua elegância tinha uma leveza e despretensão únicas que conquistou a simpatia do público e inspira até hoje as referências contemporâneas de moda (Foto: Divulgação)
Associado a esse verdadeiro tesouro que revela aspectos desconhecidos da preservada intimidade do astro, Kidel juntou extratos da autobiografia não publicada de Grant e que foram narrados na primeira pessoa pela voz do respeitado ator Jonathan Pryce, atualmente mais conhecido pela sua participação na série de TV“Game of Thrones”e nos primeiros filmes da franquia “Piratas do Caribe“. O documentário é arrematado por uma série de depoimentos de amigos que privaram da intimidade de Grant ao longo de décadas, principalmente durante a fase em que o ator parece ter encontrado certa paz de espírito ao tornar-se um verdadeiro “apóstolo do LSD”.
Desse trabalho pioneiro na forma como dá voz ao próprio Cary Grant através de palavras e imagens que ele mesmo criou, a mais surpreendente revelação é a de como o ator ficou profundamente grato e dependente dos benefícios psíquicos trazidos pelos tratamentos médicos com LSD em voga desde os anos 1950, antes de o ácido popularizar-se como um dos símbolos da contracultura que explodiu no final dos anos 1960.

Farofada & New Look: ficou para os anais da Sétima Arte o humor debochado de Hitchcock na famosa cena em que Grace Kelly e Cary Grant trucidam um franguinho num lanche à beira da estrada, em “Ladrão de Casaca”, tendo a Riviera Francesa ao fundo. Não existe registro algum sobre a futura soberana de Mônaco e o galã terem sujado os respectivos modelitos com as mãos sujas de gordura. Por outro lado, ninguém nunca comeu uma galinha com tanto estilo… (Foto: Reprodução)
Kidel advoga a tese de que Cary Grant, como outros artistas geniais oriundos da classe operária britânica, como Charlie Chaplin, Noel Coward, Alfred Hitchcock encontraram uma oportunidade de se reinventarem quando foram impelidos a desenvolver uma carreira nos Estados Unidos. O esforço e o estresse exigidos nesse processo de reengenharia comportamental derivaram – no caso de Cary Grant que também viveu uma infância difícil – para um lado depressivo que o deixava permanentemente inquieto. Por isso o apelo a tratamentos “alternativos”.
“Foi essa inquietude e essa vulnerabilidade que contribuíram, na minha opinião, a tornar Cary Grant único entre os seus pares. Enquanto o diretor Leo McCarey burilava o seu lado distinto de gentleman, conferindo-lhe um toque de simplicidade americana, Hawks [Howard] e Hitchcock, de maneira diferente, perfuraram essa imagem e dela extraíram com a ajuda do próprio ator a tal inquietude, criando um personagem charmoso, cruel, imprevisível e, consequentemente, imensamente sedutor”, avalia Kidel.

“Ninguém jamais usou um smoking como Cary Grant”. Essa frase foi repetida milhões de vezes ao longo de várias gerações, expressando a elegância graciosa e natural de Grant que, na verdade, foi laboriosamente construída nos mínimos detalhes segundo o documentário de Mark Kidel (Foto: Divulgação)
Dono de um humor refinado e autodepreciativo, é do ator o famoso comentário: “Todos querem ser Cary Grant, até eu quero ser Cary Grant”. E o documentário demonstra como nessa busca e reinvenção da sua própria imagem ele acabou se transformando num grande esteta, o que afetou nos mínimos detalhes os elementos que compunham sua própria aparência, desde a escolha das suas roupas, o cultivo impecável do bronzeado, até os ambientes e objetos de que se cercava, tudo dentro de um elevado padrão que lhe era permitido cultivar com largueza ao ter se tornado um homem muito rico já no final dos anos 1930, época em que começou a filmar essas três horas de imagens privadas, principalmente de amigas e viagens, e que também denotam seu esteticismo através do capricho com que enquadrava e movimentava a câmera.

Cary Grant era elegante até no momento de empunhar sua câmera 16mm. Graças às três horas de registros cinematográficos feitos pelo próprio ator no final dos anos 30, e agora acessíveis, é possível entender como Cary Grant tinha consciência da sua própria imagem pública (Foto: Divulgação)
Essa qualidade única de Cary Grant que aliava um refinamento genuíno a uma charmosa simplicidade de alguém que não se toma muito a sério, não só justifica o título de “gentleman democrático” como também o aproximou como nenhum outro ator do cinema da esfera afetiva e do gosto dos públicos feminino e masculino. Aí talvez resida o segredo da admiração e popularidade de que goza até hoje, fenômeno que “Becoming Cary Grant” tenta desvendar.

Cary Grant: ícone máximo de elegância e estilo na Velha Hollywood, postura de macho alfa nas telas e aparições públicas e suspeitas de homossexualidade nunca comprovadas, numa época em que revelar a opção sexual podia significar aposentadoria precoce (Foto: Reprodução)
Por outro lado, foram e ainda são essas mesmas percepções de refinamento que alimentam a suspeita de que Grant era homossexual ou que, pelo menos, manteve relacionamentos com alguns homens como Randolph Scott, com quem morou um tempo durante os anos 1930 e com quem ele aparece numa série de fotos muito divulgadas de flagrantes do elegante cotidiano dos dois e hoje consideradas “comprometedoras”.

As fotos de Cary Grant com Randolph Scott produzidas pelo departamento de publicidade da Paramount, nos anos 1930, acabaram com o tempo alimentando as suspeitas sobre a ambiguidade sexual do astro de “Ladrão de casaca” (Foto: Reprodução)
Nesse ponto, Mark Kidel é bem claro: “Nosso consultor de história Mark Glancy demonstrou que todas essas fotos foram feitas pela própria Paramount, numa época em que a homossexualidade era ilegal nos Estados Unidos. Esse tipo de imagem era essencial para as revistas de fãs destinadas quase que exclusivamente ao público feminino. Os títulos das matérias em que eles aparecem juntos falam de dois homens solteiros que ainda procuram as mulheres que lhes faltam. Mas a verdade é que não sabemos se Cary Grant era atraído também por homens. Essa dúvida nos colocou a seguinte questão: será que um só desses relacionamentos seria tão importante para mudar a visão narrativa do documentário? A resposta é: não”.

Atualmente, é George Clooney quem ocupa na Hollywood contemporânea o caminho aberto por Grant do “homem urbano sofisticado e masculino”. Na natureza da Sétima Arte, nada se cria, tudo se copia… (Foto: Reprodução)
E essa visão trazida por “Becoming Cary Grant” poderá ser devidamente conferida, pelo menos para os espectadores da emissora de televisão francesa ARTE, no próximo dia 11 de junho, numa soirée especial dedicada ao astro, precedida pela projeção de “Charada”, de 1963, dirigida por Stanley Donen, com Audrey Hepburn, outro paradigma eterno de beleza e estilo, cuja misteriosa fórmula de elegância também está à espera de uma “desconstrução”.

Mitos dentro e fora das telas: em “Charada” se deu o encontro do astro e da estrela que melhor sintetizaram os anseios de Hollywood por amalgamar a exata medida entre divindade cinematográfica e apuro fashion. Poucos exemplares do firmamento estelar alcançaram em vida aquilo que Cary Grant e Audrey Hepburn exibiam num piscar de olhos, sem o menor esforço (Foto: Reprodução)
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