É indigesto sim. Não foi sem motivo que alguns espectadores saíram sob impropérios da sua première, no último Festival de Cannes, em maio, incomodadíssimos com as cenas de violência contra mulheres, crianças e até animais. Mas não há como negar: é cinema da melhor qualidade, como se espera de uma produção que leva a assinatura do polêmico e cultuado cineasta Lars Von Trier (“Melancolia“, 2011; “Ninfomaníaca“, 2014). Agora em exibição no Festival do Rio, “A casa que Jack construiu” (The House that Jack Built, Zentropa Entertainment e outros, 2018) é soco no estômago, porrada na cara. O drama do pacato profissional liberal que se descobre serial killer é visceral, naquele nível de qualidade narrativa almejada por certos diretores comprometidos com premissa de “querer causar”, como Darren Aronofsky. Seus superestimados “Noé” e “Mãe“– leia mais aqui – são exemplos notórios. Poucos, entretanto, de fato conseguem, como é o caso de Pier Paolo Pasolini. Ou do dinamarquês de “Dogville“ (2003).

Matt Dillon é a nova aposta de Lars Von Trier na produção que narra a trajetória de um serial killer, “A casa que Jack construiu”(Foto: Divulgação)
Confira abaixo o trailer oficial legendado (Divulgação):
Ótimo diretor de atores, Von Trier arranca uma interpretação inspiradíssima de Matt Dillon (Jack) como o protagonista, um engenheiro que gostaria de ser arquiteto e que leva às últimas consequências seus impulsos assassinos, amplificados pelo preciosismo do seu transtorno obsessivo compulsivo.

A violência crua e a misoginia contidas em “A casa que Jack construiu” foram o motivo de protestos por parte do público que conferiu o longa-metragem no Festival de Cannes. Muitos espectadores abandonaram a sala de exibição no meio da projeção (Foto: Divulgação)
Aqui vale literalmente a máxima de que a vida imita a arte. No caso, é puro requinte a sublime empreitada artística com que Jack executa suas presas. A forma como ele se desfaz milimetricamente de suas vítimas, com toques de extrema crueldade, para ele se trata tão somente de epifania criativa, semelhante à maneira com que Tintoretto, Botticelli ou Da Vinci dão cabo de seus afrescos. Seu planejamento é tão rígido quanto o rigor post morten dos corpos endurecidos, e os cadáveres perfurados, mutilados, amassados, costurados, embalsamados, congelados ou em estado avançado de putrefação não passam de argila para escultura.

A narrativa de “A casa que Jack construiu” – produção capitaneada por Lars Von Trier – leva ao extremo o mote de que a vida imita a arte. Na história, os corpos das vítimas de um serial killer são tratados como peças artísticas (Foto: Divulgação)

Nua certa dimensão, o novo filme de Lars Von Trier dialoga com esculturas como “Mother and Child Divided”, obra de 1993 do artista plástico britânico Damien Hirst, famoso por usar animais mortos em suas criações, que costumam alcançar cifras estratosféricas (Foto: Reprodução)
Assim, na continuidade desses assassinatos, a própria existência de Jack vira obra de arte, tipo uma casa projetada por um arquiteto, ou como fizeram antes Andy Warhol e Salvador Dalí. Pontuando a trilha sonora, “Fame“, do álbum de David Bowie “Young Americans“ (1975), dá a exata dimensão dessa questão. E tudo fica mais claro ainda quando ele se autointitula “Sr. Sofisticação”, ao enviar envelopes com suas criações cadavéricas aos pasquins.

Uma Thurman faz rápida participação no novo longa de Lars Von Trier, em exibição no Festival do Rio (Foto: Divulgação)
Para Jack, pouco importa a crueldade, o sadismo, a misoginia e até a ironia usadas na concepção dessas obras de arte macabras, conforme rege o cérebro de um psicopata. No fim, o que vale mesmo é a beleza do resultado (para ele), e é esse estímulo o permite se manter vivo, migrando da indesejada função de engenheiro (aquele que lê) para a do arquiteto (aquele que toca), como que perfila uma sinfonia.

A construção que nunca acaba de uma casa é a principal metáfora de “A casa que Jack construiu”, produção repleta de representações, como gosta seu diretor Lars Von Trier, que usa uma estrutura de roteiro semelhante ao seu polêmico “Ninfomaníaca” (2014) (Foto: Divulgação)
A morte de suas presas assume a simbologia do gozo, tal qual estabelecida por Freud, uma vez que o ápice do “orgasmo” do assassino – o prazer proporcionado pela própria obra – é imediatamente saciado, morto, para ininterruptamente recomeçar no próxima, num eterno looping, ou numa sequência de sombras na travessia noturna numa rua, sob a iluminação dos postes. .
Em tempo: Bruno Ganz (“Asas do desejo“, de 1987, e “A queda! As últimas horas de Hitler“, de 2004) rouba a cena no final.
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