Destaque no Festival do Rio, “Mussum, o filmis” (Camisa Listrada e Downtown Filmes, 2023) arrebatou o público, que saiu extasiado do Cine Odeon com a espirituosa interpretação de Yuri Marçal e Ailton Graça se revezando no papel do comediante, músico e compositor popular que hoje passa por um processo de resgate. Agradável, palatável e afinada com a moda das biografias que hoje domina em parte o cenário cinematográfico brasileiro – filão que vem nos últimos anos dedicando especial atenção a expoentes do showbizz, retratados tanto na ficção quanto em documentário –, a produção é panorâmica, mas epidérmica. Em seu longa-metragem de estreia, o talentoso, engajado e empenhado Silvio Guindane diverte e emociona o público nesta narrativa cronológica pela forma gaiata (e reverente) com que homenageia o artista em sua trajetória de meados dos anos 1960, quando passou a integrar o conjunto Os Originais do Samba e logo depois seria abraçado pela televisão, em musicais e humorísticos da TV Excelsior e da recém-criada TV Globo, até a fase em que, no meio dos anos 1980, se afasta temporariamente de Renato Aragão, mas se esquece do principal: a oportunidade de focar no fato de Mussum (1941-1994) ter se tornado por quase 30 anos um dos poucos astros pretos verdadeiramente populares da telinha, mas confinado a um arquétipo que em nada contribuiu para reverter a semiótica pós-abolicionista que relegou a negritude ao lugar de pobre, bêbado, malandro e iletrado, um desserviço na construção da imagem dessa população no país em sintonia com uma ditadura oportunista e excludente.
Confira abaixo do trailer oficial de “Mussum, o filmis” (Divulgação):
Nem por isso a realização deixa de ser deliciosa, em boa parte pelas atuações tanto de Ailton Graça – desde “Carandiru” (2003), um fenômeno tanto no cinema quanto na televisão – quanto de Yuri Marçal, mais conhecido por telesséries, tipo “5x Comédia” (2021) e “Desjuntados” (2021), e também em função do panteão de coadjuvantes que dão vida a uma série de personalidades do mundo artístico, do Rei da Noite Carlos Machado a Chico Anísio (Vanderlei Bernardino, ótimo), passando por Elza Soares, Garrincha, Cartola, Dona Zica, Dona Neuma, os diretores de humorísticos e musicais Mauricio Shermann e Wilton Franco, o chefão da Globo Boni (José Bonifácio Sobrinho), o executivo da TV Walter Clark, os astros Grande Othelo, Dedé Santana e Zacarias e tanto outros, com direito a Ícaro Silva quase irreconhecível no papel de Jorge Ben e Gero Camilo roubando cena como Renato Aragão, a maioria dessas personalidades disposta, cada uma ao seu jeito, a tirar casquinha do talento de Mussum em visível intenção de apropriação que poderia comparecer na projeção de forma menos sutil.

A incorporação de Ailton é quase mediúnica. É Mussum de cabo a rabo, inclusive nos trejeitos, olhares e acrobacias bucais. O ator dá a sua contribuição à visão do roteiro de que o artista, multifacetado em uma época em que esse termo ainda não havia sido cunhado, apesar de todo o sucesso no fundo sempre manteve a pureza do suburbano carioca para quem a família pobre almejava um futuro melhor. Ao enveredar pelo showbizz, seja na carreira musical ou na audiovisual, Mussum é retratado como um meninão que, mesmo vertido pela mídia em palhaço-brucutu a serviço do do sistema, se esforça para conciliar sua vocação artística com o desejo de agradar a mãe Malvina (Cacau Protásio, longe da sua zona de conforto, e Neuza Borges, ambas maravilhosas), que via inicialmente na carreira militar a única forma de romper com os paradigmas impostos aos pretos em meados do século passado.

Assim, ao invés de avançar na questão da imposição da representação do preto como marginal nessa Era Pré-Taís Araújo & Lázaro Ramos, a produção prefere flanar na tensão entre o Mussum comediante de grande apelo popular e o músico também bem-sucedido, mas com disponibilidade submissa às demandas da visibilidade proporcionada pela televisão, em embate sintetizado pela sua relação com outro integrante dos Originais do Samba, Bigode (Édio Nunes, com carreira sólida no teatro musical e absolutamente esplêndido no papel).

Ainda que seja louvável o desfile de atores pretos dispostos a participar da realização, mesmo em pontas, que inclui de Serjão Loroza a Késia Estácio e Cinara Leal em perceptível objetivo de proporcionar empoderamento póstumo a Mussum, e dada a importância de narrar o percurso de um artista tão importante para a cultura popular nacional a ponto de virar marca de cerveja (Cacildis), mas com potência reduzida a pastiche, fica óbvia a intenção de Silvio Guindane de não embarcar no caminho fácil da lacração típica das redes sociais ao apenas resvalar na pauta de agenda que inclui a questão do apagamento do preto sob a máscara da caricatura que alegra as massas.
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