Terminou nesta noite de domingo (15/10) a 25ª edição do Festival do Rio, com a premiação dos vencedores do Troféu Redentor, no Cine Odeon, que contemplou, sobretudo, minorias pretas, LGBTQIAP+ e mulheres, com ênfase nas trans, além de regiões como o Norte e o Nordeste. Foi uma celebração inclusiva, o que é natural porque o mercado se expandiu nessas direções em todos os campos do conhecimento, inclusive no cinema. De certa forma mais até que nos últimos anos, a noite foi pontuada por muitas manifestações a favor da cultura, da democracia e pela ordem mundial, com a diretora executiva do evento, Walkiria Barbosa, pedindo “a paz pra todas as pessoas do mundo”, após confirmar que, durante os encontros do Rio Market, o Brasil está próximo de alcançar aquilo que ela havia levantado como premissa na cerimônia de abertura do evento dez dias antes: o estabelecimento de uma política de Estado “para que o audiovisual não seja apenas um apêndice do Ministério da Cultura”. Para ela, “É preciso focar não apenas no tripé – produção, distribuição e exibição –, mas ir além: a formação [de plateia] e a preservação [da memória cinematográfica nacional] precisam ser pensadas”.

Por sua vez, a diretora executiva e de programação do Festival do Rio, Ilda Santiago, comemorou as salas de exibição cheias: “A gente acreditava que a volta no pós-pandemia, para valer mesmo, seria somente ano que vem, mas felizmente foi agora. A formação de público é a coisa mais importante que existe para que este e outros festivais permaneçam”. Ela já havia alertado na arrancada do evento para questões cruciais da indústria audiovisual, como os 80 milhões de downloads piratas, neste ano, que prejudicam o setor, e para a urgência do resgate das salas de exibição tradicionais: “Este [o Odeon] é o último cinema de rua de um bairro que se chama Cinelândia. Podemos reverter isso, somos uma indústria poderosa!”, afirmou.

Se na cerimônia de abertura os apresentadores Vanessa Giácomo e Alexandre Nero deram o glacê, coube aos atores pretos Carla Cristina Cardoso, carioca do Catumbi que foi sucesso na novela “Vai na fé”,e o ator e cantor congolês nascido na Bélgica, mas naturalizado brasileiro Bukassa Kabengele, recém-saído de “Amor Perfeito”, fazerem as vezes nessa pegada plural. A moça foi responsável pelo momento “La la land” da noite, quando o assistente de palco se confundiu na entrega dos envelopes e ela anunciou “A Batalha da Rua Antonia”, que ganhou o prêmio máximo de ‘Melhor Longa-metragem de Ficção’, como se fosse o de ‘Melhor Direção de Longa-metragem de Ficção’, que contemplou Lillah Halla por “Levante”. A pequena confusão acabou virando descontração, com risos e brincadeiras no palco e plateia.

Diretora de “A Batalha da Rua Maria Antônia” – feroz drama baseado em fatos reais que narra o confronto entre o Comando de Caça aos Comunistas e os estudantes e professores da Faculdade de Filosofia da USP, durante a ditadura –, Vera Egito não pode receber o prêmio por estar apresentando o longa no Festival de Chicago, mas foi representada pelo marido Heitor Dhalia, seu sócio na produtora Paranoid Filmes, e a filha de 11 anos.

Dentre os vencedores da noite, entre estatuetas e menções que levaram o Troféu Redentor na Première Brasil e na Mostra Novos Rumos ou o Prêmio Felix, que destaca o universo LGBTQIAP+, “Pedágio” (4 estatuetas), que denuncia a cura gay; “Estranho Caminho” (2), que parte da pandemia para construir uma inquietante história; “Sem Coração” ( 2), que apresenta uma interessante narrativa sobre preconceito, exclusão e universo gay; “Levante” (2), sobre fundamentalismo, preconceito e intolerância; “Tudo o que você podia ser” (2), delicado libelo trans sobre afeto, solidão, preconceito e inclusão; “O dia que te conheci” (2), delicado drama; e “Assexybilidade” (2), contundente documentário sobre a sexualidade de pessoas com deficiência.

Destaque também para o ‘Melhor Documentário’ pelo Prêmio Felix, “Orlando, minha biografia política” – filme francês dirigido pelo ativista trans Paul B. Preciado, que venceu o Prêmio Teddy no Festival de Berlim estabelecendo uma carta cinematográfica à Virginia Woolf, autora de “Orlando”, primeiro romance em que o protagonista muda de sexo no meio da história – e para “Othelo, o Grande”, “Melhor Documentário’ pela Première Brasil, tributo de Lucas H. Rossi dos Santos ao ator Grande Othelo, baluarte do cinema brasileiro, orfão e neto de escravos.

Foi uma cerimônia de frases potentes. Ganhador de “Melhor Longa-metragem’ na Mostra Novos Rumos, o diretor de “Saudade fez morada aqui dentro”, Haroldo Borges, sintetizou o clima de realização atual do cinema brasileiro: “Somos um coletivo de cineastas, há muito tempo juntos, desde a faculdade, com uma imensa vontade de contar histórias da Bahia, do Sertão, do coração”.

Homenageadas com o Prêmio Felix Suzy Capó de personalidades do ano, o casal composto pela atriz Nanda Costa e a percussionista Lan Lahn emocionou os convidados. “Estive no Festival realizando um sonho, em 2009, mas não pude estar por inteiro. Por uma série de circunstâncias, não foi possível me entregar à minha namorada na época. Agora, é outro tempo”, disparou Nanda, feliz com os filhos das duas na plateia. Ao lado do elenco queer de “Tudo o que você podia ser”, o diretor Ricardo Alves Jr. mandou a braba: “Pessoas trans são como todos vocês”.

Portador de deficiência, o vencedor por “Melhor Direção de Longa-metragem Documentário’ Daniel Gonçalves, por “Assexybilidade”, disparou: “Pesquisas revelam que 15% a 25% da população global têm alguma deficiência. O Brasil conta, então, com 30 milhões delas”. O esforço do cineasta, tanto para subir e descer do palco do Odeon quanto para segurar o pesado troféu, era visível, enfatizando sua fala. Vitoriosa por ‘Melhor Curta-metragem’ na Novos Rumos, a atriz Luisa Arraes bradou: “Parece que temos uma nova mulher na direção!” pouco depois de Johnny Massaro, que presidiu o júri dessa parte, afirmar: “Nunca poderia imaginar que um espectador militante desse festival, como eu, um dia fosse jurado de uma seleção de filmes tão pungente. Mas, afinal, o que é novo?”, questionou.

Mas a plenitude dos discursos que rasgam a alma ficou quase para o final, a cargo da dupla que arrebatou as estatuetas de ‘Melhor Ator’ e ‘Melhor Atriz’, ambos por “Pedágio”, respectivamente Kauã Alvarenga, 19 anos, e Maeve Jinkings (que ganhou junto com Greice Passô, por “O Dia que te conheci”). Muito nervoso, o novato refletia pureza enquanto destacava a surpresa pelo prêmio, logo em sua primeira incursão no cinema, e sua origem humilde, atribuindo ter chegado ao pódio à boa criação: “Precisamos de educação, respeito e oportunidade. Axé!”. Figurinha fácil de produções premiadas como “O sonho ao redor” (2012), “Boi Neon” (2015), “Aquarius” (2016) e “Carvão” (2022), Maeve interpreta uma mãe que trabalha como cobradora de pedágio e resolve fazer uma renda extra para financiar a ida do seu filho à cura gay ministrada por um pastor famoso. Ela foi direto ao pote: “Para esse trabalho, pesquisei mães que lutam contra a identidade dos seus filhos. Os dois lados sofrem. O movimento conservador é uma máquina de destruir famílias…”

Conheça abaixo os vencedores do Festival do Rio 2023:
“Première Brasil Novos Rumos:
O júri foi composto por Johnny Massaro (Presidente), Beatriz Seigner, Jéssica Ellen e Pedro Bronz.
- Prêmio Especial do Júri: “A Alma das Coisas”, de Douglas Soares e Felipe Herzog (produção Acalante Filmes).
- Melhor direção de longa-metragem: Ricardo Alves Jr. por “Tudo o que você podia ser” (produção: Entrefilmes).
- Melhor curta-metragem: “Dependências”, de Luisa Arraes (produção: Casa Forte).
- Melhor longa-metragem: “Saudade fez morada aqui dentro”, de Haroldo Borges (produção: Plano 3 Filmes).
Menção Honrosa: “Bizarros Peixes das Fossas Abissais” e “Iracema”.
Prêmio Felix:
O júri foi composto por Sandro Fiorin (Presidente), Andrea Capella, Pedro Henrique França e Wescla Vasconcelos.
- Melhor Documentário: “Orlando, Minha Biografia Política”, de Paul B. Preciado (Les Films du Poisson).
- Melhor Filme Brasileiro: “Sem Coração“, de Tião e Nara Normande (Cinemascópio Filmes).
- Melhor Filme Internacional: “20.000 Espécies de Abelhas”, de Estibaliz Urresola Solaguren (Gariza Films, Inicia Films e Sirimiri Films).
- Prêmio Especial do Júri: “Tudo o que você podia ser”, de Ricardo Alves Jr. (produção: Entrefilmes).
- Prêmio Felix Suzy Capó Personalidade do Ano: Nanda Costa e Lan Lanh.
Menção Honrosa: “Assexybilidade”.
Première Brasil:
O júri foi composto por Laís Bodanzky (Presidente), Gaia Furrer, Isabél Zuaa, João Vieira Jr. e Renata Pinheiro.
- Melhor curta-metragem: “Cabana”, de Adriana de Faria e Tayana Pinheiro.
- Melhor atriz coadjuvante: Aline Marta Maia, por “Pedágio”.
- Melhor montagem: Eva Randolph, por “Levante”.
- Melhor direção de arte: Vicente Saldanha, por “Pedágio”.
- Melhor fotografia: Evgenia Alexandrova, por “Sem Coração”.
- Melhor ator coadjuvante: Carlos Francisco, por “Estranho Caminho”.
- Melhor roteiro: Guto Parente, por “Estranho Caminho”.
- Melhor direção de longa documentário: Daniel Gonçalves, por “Assexybilidade”.
- Menção honrosa do júri: “Black Rio! Black Power!”, de Emilio Domingos.
- Melhor longa documentário: “Othelo, o Grande”, por Lucas H. Rossi dos Santos.
- Melhor ator: Kauã Alvarenga, por “Pedágio”.
- Melhor direção de longa ficção: Lillah Halla, por “Levante”.
- Melhor atriz: Greice Passô (por “O dia que te conheci”) e Maeve Jinkings (por “Pedágio”).
- Prêmio Especial do Júri: “O dia que te conheci”, de André Novais Oliveira.
- Melhor longa-metragem ficção: “A Batalha da Rua Maria Antônia”, de Vera Egito.
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