A morte de Flávio Migliaccio, aos 85 anos nesta segunda-feira (4/5), elevou a Escala Richter emocional que anda tomando conta de um perplexo Brasil, às voltas com terremotos que vão da crise sanitária à política. Low profile fora da ribalta, o ator foi figura presente na vida nacional através de inúmeros papeis na televisão, teatro e cinema, durante os últimos 60 anos, desde quando estreou no Grande Teatro Tupi, em 1958. Apesar dos tipos memoráveis (os mais jovens vão se lembrar do Seu Chalita de “Tapas & beijos“), foi apenas graças ao suicídio, em seu sítio em Rio Bonito, que o público constatou tardiamente o quanto a vida fica pior sem sua presença em tempos sombrios que vão do covid19 à intolerância. Por ser old school, daqueles cuja vaidade não escorre pela leviandade de fenômenos voláteis como as mídias sociais, Flávio – que fez a audiência sorrir com personagens igualmente divertidos e marcantes – não costumava aparecer muito fora das telas, do palco. Talvez blindasse a percepção geral de que se encontrava no mesmo panteão de criaturas acima do bem e do mal, como Fernandona, Gloria Pires, Pelé, Carlinhos de Jesus ou Sabrina. Simpático a todos, menos, quem sabe, por Brasília, hoje afeita a um governo que prefere administrar contas no Twitter a se preocupar com a segurança dos mais velhos.

Ser ou não ser? Apesar do envolvimento nos projetos, a vaidade de Flávio Miggliaccio nunca encontrou escape na superexposição. “Ele era na dele, morava na Urca e preferia canalizar tudo através do dinamismo. Caía fundo nos projetos, pois veio do circo, ele e a irmã Dirce. Ainda era casado e deixa um filho, Marcelo”, comenta Bel Kutner (Foto: Reprodução)
Em sua carta de despedida, encontrada ao lado do seu corpo, um trecho dizia: “Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos, como tudo aqui. A humanidade não deu certo. Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora… Num país como este. E com esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje!”. Sinal de fastio de alguém diante do absurdo que se desenha num horizonte próximo, com as declarações de autoridades médicas de que, com o sistema de saúde beirando o colapso, pode ser que seja preciso exercer o fiel da balança, escolhendo salvar os mais jovens, com suposto maior potencial de cura?

Desesperança de um Tio Maneco: a carta deixada pro Flávio ao seu lado, no sítio e Rio Bonito. Segundo fontes, a polícia da região está estudando o caso. O corpo foi achado enforcado, próximo a um banco caído (Foto: Reprodução)
ÁS bateu um papo com Bel Kutner, filha de Paulo José, que fez dupla com Flávio antes mesmo de “Shazam, Xerife & Cia.“, série de tevê que os dois protagonizaram no início dos anos 1970, spin-off da novela “O primeiro amor“, onde os personagens foram apresentados. Embora a memória dos leitores mais jurássicos dispare ao se lembrar da parceria na série, que equivaleria hoje a um “Detetives do Prédio Azul“, na verdade ambos os atores já haviam se encontrado no cinema dos sessenta: foram colegas nos clássicos “Todas as mulheres do mundo” (1966) e “O homem nu” (1968), quando havia mais respeito pelos mais velhos.

Juntos, Paulo José (Shazam) e Flávio Migliaccio (Xerife) representaram para o público infantil da virada dos anos setenta o arcabouço daquilo que as apresentadoras das décadas seguintes viriam a se tornar (Foto: Reprodução)

Prestes a entrar em cartaz com “Nos tempos do imperador”, novela das 18h horas adiada por causa do coronavírus, Bel Kutner se mostra perplexa com a possível seleção que pode vir a ser feita por um sistema de saúde saturado no Brasil, graças à pandemia (Foto: TV Globo / Divulgação)
ÁS: Em sua mensagem derradeira, Flávio menciona que pertencer à terceira idade no Brasil é caótico. Suas palavras ecoam potentes neste momento, em dias de saturação do sistema de saúde, quando já se considera a possibilidade de canalizar os tratamentos de covid19, nas UTIs, para os mais jovens, supostamente com maior chance de sobrevivência. O que você pensa disso?
Bel Kutner: A que ponto nós chegamos, não? Como aconteceu na Itália. É inacreditável. Como é possível escolher quem vai viver e que vai morrer? Hoje em dia, as pessoas de idade avançada fazem planos, a existência se estendeu. Um governo não pode decidir que vivem e quem morre.
ÁS: Como ele era? Para sua morte fazer algum sentido, que recado você daria à uma sociedade que afirma ser necessário se reinventar após a pandemia?
BK: Nem sei o que dizer. Conheci Flávio criança ainda, era cheio de vida. Nunca parou. Fazia planos, planejava. Estivemos na Cidade das Artes em 2018. Ele encenava a peça “Confissões de um senhor de idade”, escrita e dirigida por ele. A cabeça dele não dava trégua, vivia elétrico. Me ligou meses atrás e andava trabalhando num novo texto, “O evangelho segundo os boatos”.
ÁS: Ele afirma que a humanidade não deu certo…
BK: A Era de Aquário era para a gente? Será? Até a Nasa acaba de afirmar que não tem como explicar alguns daqueles objetos de fotografias, que podemos encontrar vida extraterrestre até o final desse ano ou no máximo antes do final da década. Só pode ser!
ÁS: Como você está vendo essa questão do vírus?
BK: Tem só quatro meses que nos foi apresentado. O que realmente garante que, mesmo tomando todas as precauções, ele não esteja ainda rodando por ali, na sola de um sapato em casa? Ou que possamos nos reinfectar? Muita coisa a descobrir sobre ele. Espero que saibamos bem mais sobre ele para nos proteger antes de os Ets da Nasa darem as caras…
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