O mundo reagiu com curiosidade quando uma animação concebida na antiga república soviética da Letônia, no Leste Europeu, papou o Globo de Ouro em janeiro, derrotando produções consideradas barbadas como o belo e emocionante “Robô Selvagem” (Wild Robot, Dreamworks Animation) e a continuação de um grande sucesso da Pixar, o apenas competente, mas nada original “Divertida Mente 2” (Inside Out 2). Em um primeiro momento, como explicar que o singelo, impactante e contagiante, mas estranho “Flow” (Straume, de Gints Zilbalodis, Arte France Cinema e outros, 2024) – realização modesta que estreia nesta próxima quinta-feira (20/2) no Brasil, tocada por uma pequena equipe de um país sem tradição cinematográfica, que custou apenas 3,7 milhões de dólares, forjada à custa de uma ferramenta digital gratuita chamada Blender e protagonizada por animais não antropomorfizados que não emitem uma palavra sequer, mas apenas seus grunhidos naturais –, desbancaria empreitadas de grandes estúdios de animação norte-americanos, acostumados a papar Oscars, capitaneadas por milhares de profissionais? E que ainda concorreria ao mais celebrado prêmio do Cinema Mundial, concedido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, tanto na categoria de ‘Melhor Animação’ quanto na de ‘Melhor Filme Internacional’, que neste ano é uma das categorias mais acirradas dada a qualidade dos cinco candidatos?


Aparentemente, “Flow” rema contra a maré do corolário de providências a serem tomadas por um estúdio para que um longa-metragem de animação tenha não apenas sucesso comercial, mas se consagre como um potencial candidato à temporada de premiações. Só que não. A começar pela deslumbrante cinematografia, dotada de um irresistível traço que beira a aguada, e uma cartela de cores de cair o queixo, amplificadas por enquadramentos realistas que fazem, por vezes, o público esquecer que está vendo um desenho, esse novo longa-metragem do jovem Gints Zilbalodis, com apenas 29 anos e já conhecido por outras duas produções tão singelas quanto “Flow”, “Oásis” (2017) e “Longe” (2019), tem o principal: alma. É dá-lhe alma!

A partir de um argumento potente – cinco animais distintos, dotados tanto do instinto de sobrevivência geral quanto daqueles peculiares de suas respectivas espécies, precisam aprender a conviver quando confinados em um barco à deriva durante uma inundação de proporções catastróficas –, o diretor e seus dois coroteiristas, Matiss Kaza e Ron Dyens, constroem um sólido, enxuto e espertíssimo roteiro que proporciona a matéria-prima perfeita para que Zilbalodis (que joga nas onze: é o diretor de arte, diretor de fotografia, coroteirista, coprodutor, compositor, editor e ainda assovia e chupa cana em uma equipe de apenas 48 pessoas) conquiste a plateia pelo coração e pelos olhos.

Uma das estratégias é não perder tempo em explicações que desviem o público do seu objetivo: destacar a urgência de sentimentos como empatia, respeito e solidariedade, cada vez mais deixados de lado em dias de trumpismo. Nunca é explicado o motivo dessa enchente digna de filmes-catástrofe que varre aquela região, cobrindo as montanhas mais altas. Seria em que parte do mundo? No planeta inteiro? Não se sabe. Quando o barquinho esbarra em cidades-fantasma quase inteiramente submersas, por que não existe resquício da Humanidade, exceto pela arquitetura e salvo alguns poucos objetos civilizatórios deixados de lado para servirem adequadamente à história? Foi o aquecimento global que derreteu os polos, elevando o nível dos mares? Uma barragem descomunal varreu aquele imenso pedaço de terra? Se não aparece sequer um ser-humano ao longo da projeção, ainda existe em algum lugar a nossa civilização? Ou Somos vítimas da resposta da Natureza aos nossos descalabros? Desaparecemos em função dos nossos excessos? Abandonamos o planeta, deixando para trás tanto a vida selvagem quanto os animais domésticos? Para o diretor, nada disso importa.

O que vale é se concentrar na narrativa, se detendo no principal: estabelecer as alegorias de um mundo convulsionado, polarizado e que hoje não admite diferenças. Aquele gatinho preto, o golden retriever, a capivara, o lêmure e a ave de rapina precisam aprender a colaborar uns com os outros para coletividade sobreviver.

Metáfora para a uma conturbada sociedade desorientada, nos parâmetros definidos pelo filósofo Domenico De Masi, e superlotada com oito bilhões de indivíduos que só olham para o seu próprio umbigo, esses simpáticos animais sencientes dotados de sentimentos – medo, fome, empatia, alegria e desejo de segurança, dentre outros – são quem pode de fato nos ensinar a sairmos do casulo para olhar o próximo. Quem sabe, se aprendermos a lição, nosso planeta ainda possa ter salvação.
Confira abaixo o trailer oficial do “Flow” (Divulgação):

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