O mundo reagiu com curiosidade quando uma animação concebida na antiga república soviética da Letônia, no Leste Europeu, papou o Globo de Ouro em janeiro, derrotando produções consideradas barbadas como o belo e emocionante “Robô Selvagem(Wild Robot, Dreamworks Animation) e a continuação de um grande sucesso da Pixar, o apenas competente, mas nada original “Divertida Mente 2(Inside Out 2). Em um primeiro momento, como explicar que o singelo, impactante e contagiante, mas estranho “Flow(Straume, de Gints Zilbalodis, Arte France Cinema e outros, 2024) – realização modesta que estreia nesta próxima quinta-feira (20/2) no Brasil, tocada por uma pequena equipe de um país sem tradição cinematográfica, que custou apenas 3,7 milhões de dólares, forjada à custa de uma ferramenta digital gratuita chamada Blender e protagonizada por animais não antropomorfizados que não emitem uma palavra sequer, mas apenas seus grunhidos naturais –, desbancaria empreitadas de grandes estúdios de animação norte-americanos, acostumados a papar Oscars, capitaneadas por milhares de profissionais? E que ainda concorreria ao mais celebrado prêmio do Cinema Mundial, concedido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, tanto na categoria de ‘Melhor Animação’ quanto na de ‘Melhor Filme Internacional’, que neste ano é uma das categorias mais acirradas dada a qualidade dos cinco candidatos?   

“Flow”, à esquerda, surpreendeu na premiação do Globo de Ouro, em 7 de janeiro: derrotou o favorito “Robô Selvagem” (à direita), emocionante desenho animado sobre uma robô extraviada que adota um pato numa ilha remota, habitat de animais silvestres. Presente nas duas produções, o tema da colaboração entre espécimes diversos é alegoria que reflete uma questão seminal da atualidade: a intolerância à diferença (Fotos: Divulgação)

Concorrendo a dois Oscar, o desenho animado "Flow" é esperiência universal que conduz o público à mais plena elevação espiritual.
Ao centro entre seus dois colegas roteiristas, o diretor Gints Zilbalodis posa com o Globo de Ouro na mão, em vitória inesperada, mas justíssima. Nos tempos atuais, dificilmente uma animação alcança o mesmo patamar da magnificência de “Flow” (Foto: Reprodução)

Aparentemente, “Flow” rema contra a maré do corolário de providências a serem tomadas por um estúdio para que um longa-metragem de animação tenha não apenas sucesso comercial, mas se consagre como um potencial candidato à temporada de premiações. Só que não. A começar pela deslumbrante cinematografia, dotada de um irresistível traço que beira a aguada, e uma cartela de cores de cair o queixo, amplificadas por enquadramentos realistas que fazem, por vezes, o público esquecer que está vendo um desenho, esse novo longa-metragem do jovem Gints Zilbalodis, com apenas 29 anos e já conhecido por outras duas produções tão singelas quanto “Flow”, “Oásis” (2017) e “Longe” (2019), tem o principal: alma. É dá-lhe alma!

Concorrendo a dois Oscar, o desenho animado "Flow" é esperiência universal que conduz o público à mais plena elevação espiritual.
Estilizados em seu traçado minimalista, mas muito críveis tanto pelas expressões quanto pelo profundo estudo de seus movimentos, os animais retratados em “Flow” atingem, em sua simplicidade, aquilo que toda superprodução hiperrealista, como o recente “Mufasa”, gostaria de atingir: o deslumbre da plateia com a tangência entre desenho e realidade (Foto: Divulgação)

A partir de um argumento potente – cinco animais distintos, dotados tanto do instinto de sobrevivência geral quanto daqueles peculiares de suas respectivas espécies, precisam aprender a conviver quando confinados em um barco à deriva durante uma inundação de proporções catastróficas –, o diretor e seus dois coroteiristas, Matiss Kaza e Ron Dyens, constroem um sólido, enxuto e espertíssimo roteiro que proporciona a matéria-prima perfeita para que Zilbalodis (que joga nas onze: é o diretor de arte, diretor de fotografia, coroteirista, coprodutor, compositor, editor e ainda assovia e chupa cana em uma equipe de apenas 48 pessoas) conquiste a plateia pelo coração e pelos olhos.  

Concorrendo a dois Oscar, o desenho animado "Flow" é esperiência universal que conduz o público à mais plena elevação espiritual.
Parábola da diversidade: a salvo de uma inundação de proporções bíblicas, daquele tipo arraigado no imaginário universal, os animais de “Flow” conseguem, mesmo agindo como eles mesmos, imergir em um grau de humanidade cada vez mais distante de nós, atormentados pelo medo generalizado e cada vez mais incapazes de gestos empáticos (Foto: Divulgação)

Uma das estratégias é não perder tempo em explicações que desviem o público do seu objetivo: destacar a urgência de sentimentos como empatia, respeito e solidariedade, cada vez mais deixados de lado em dias de trumpismo. Nunca é explicado o motivo dessa enchente digna de filmes-catástrofe que varre aquela região, cobrindo as montanhas mais altas. Seria em que parte do mundo? No planeta inteiro? Não se sabe. Quando o barquinho esbarra em cidades-fantasma quase inteiramente submersas, por que não existe resquício da Humanidade, exceto pela arquitetura e salvo alguns poucos objetos civilizatórios deixados de lado para servirem adequadamente à história? Foi o aquecimento global que derreteu os polos, elevando o nível dos mares? Uma barragem descomunal varreu aquele imenso pedaço de terra? Se não aparece sequer um ser-humano ao longo da projeção, ainda existe em algum lugar a nossa civilização? Ou Somos vítimas da resposta da Natureza aos nossos descalabros? Desaparecemos em função dos nossos excessos? Abandonamos o planeta, deixando para trás tanto a vida selvagem quanto os animais domésticos? Para o diretor, nada disso importa.

Concorrendo a dois Oscar, o desenho animado "Flow" é esperiência universal que conduz o público à mais plena elevação espiritual.
Produção de sentidos contrastante: a vida in natura apresentada em “Flow” se contrapõe ao skyline das construções humanas abandonadas, não por acaso referências da arquitetura renascentista. Afinal, ainda hoje o Renascimento representa o ápice da grandiosidade humanista (Foto: Divulgação)

O que vale é se concentrar na narrativa, se detendo no principal: estabelecer as alegorias de um mundo convulsionado, polarizado e que hoje não admite diferenças. Aquele gatinho preto, o golden retriever, a capivara, o lêmure e a ave de rapina precisam aprender a colaborar uns com os outros para coletividade sobreviver.

Concorrendo a dois Oscar, o desenho animado "Flow" é esperiência universal que conduz o público à mais plena elevação espiritual.
Colírio: protagonista dotado de irresistível expressividade, o gato preto é um dos personagens mais carismáticos da recente História da Animação Mundial (Foto: Divulgação)

Metáfora para a uma conturbada sociedade desorientada, nos parâmetros definidos pelo filósofo Domenico De Masi, e superlotada com oito bilhões de indivíduos que só olham para o seu próprio umbigo, esses simpáticos animais sencientes dotados de sentimentos – medo, fome, empatia, alegria e desejo de segurança, dentre outros – são quem pode de fato nos ensinar a sairmos do casulo para olhar o próximo. Quem sabe, se aprendermos a lição, nosso planeta ainda possa ter salvação.  

Confira abaixo o trailer oficial do “Flow” (Divulgação):

Em tempo, vale lembrar: sucesso de 2012, a fábula alegórica “As aventuras de Pi“, de Ang Lee (“O Tigre e o Dragão” e “Brokeback Mountain“) também lançou mão do arquetípico recurso do dilúvio ancestral, estabelecendo o confronto entre um rapaz, um tigre, uma hiena e um macaco, que precisam aprender a conviver presos em um bote (Foto: Divulgação)

Deixe seu comentário

Seu email não será publicado.