Para quê um novo “O Rei Leão” (The Lion King, 2019)? Essa pergunta foi feita com frequência nestes dias que antecederam ao lançamento do live action que acaba de chegar aos cinemas. Afinal, a maestria do desenho animado de 1994 é comparável, em cinematografia e dramaturgia, a obras que não precisam de nova versão, tipo “… E o vento levou!“, “Cantando na chuva” e “O Mágico de Oz. A inegável magnitude visual e técnica desta emocionante refilmagem capitaneada por Jon Favreau, com um gigantesco elenco animal criado digitalmente da cabeça à cauda à perfeição, a priori não justificaria a sua realização, mesmo levando em conta o sucesso da atual onda de remakes em carne e osso dos clássicos do estúdio. Por isso, a despeito do seu deslumbre imagético, há quem ande falando por aí que a Disney acabou plagiando desnecessariamente ela mesma. Tolice. Deixando de lado o assombroso desbunde gráfico da produção, é preciso considerar o momento: tempos sombrios ecologicamente, com Trump, Putin, China e Bolsonaro enaltecendo o consumo no seu estado mais irresponsável, de pernadas em acordos de despoluição planetária ao retrocesso na redução da emissão de gás-estufa, das tragédias de Brumadinho e Mariana prometendo se repetir a torto e a direito às políticas de devastação da Amazônia, passando pelas toneladas de sacos de polietileno vertendo os sete mares na quarta-feira de cinzas da Sapucaí, obrigando a vida marinha a uma indigesta dieta carnavalesca.

Inteiramente criado por computação, sem uma tomada real sequer, o novo “O Rei Leão” vai entrar no rol dos contos de fada live action mais pela hiperrealidade das sequências que pelo termo ao pé da letra. Na verdade, trata-se do mais sofisticado desenho animado já realizado, abrindo o terreno para uma nova era de produções do gênero (Foto: Divulgação)
Confira abaixo o trailer oficial legendado de “O Rei Leão” (Divulgação):
Por trás de uma típica narrativa de jornada de culpa, amadurecimento e responsabilidade, o libelo em prol do tal círculo da vida de “O Rei Leão” torna hoje essencial essa adaptação do clássico que misturou Shakespeare e um obscuro conto japonês, transformando o resultado numa das mais exuberantes interpretações da África selvagem já vistas que reforça, agora com a Terra na rota do colapso, seu papel de lição acerca do equilíbrio da natureza.

Responsável pelos sucessos de “Homem de Ferro” e do remake de “Mogli, o menino-lobo” (2016), o diretor Jon Favreau – dos filmes da Marvel e atualmente também em cartaz nos cinemas com sua porção-ator, no longa “Homem-Aranha: longe de casa” – apostou na reprodução quase quadro a quadro de algumas cenas de “O Rei Leão” original (Fotos: Divulgação)
Se, em 1994 o mundo vivia tempos otimistas, com crescimento econômico, a chegada da globalização, da internet, das novas tecnologias e da conexão mundial a níveis sequer antes imaginados, “O Rei Leão” de Roger Allers e Rob Minkoff se afinava com os desígnios da ECO 92 – primeiro encontro de líderes mundiais dessa estatura, realizado no Rio, para estabelecer políticas de crescimento global sustentável que não transformassem o planeta naquela exaurida Blade Runner que faz Trump e Bolsonaro lamberem os lábios.

Depois de aprender a lição com “Alice no País das Maravilhas” (2010) e Malévola” (2014) sobre aquilo que o público fiel dos clássicos espera encontrar nos live actions, a Disney passou a mapear em cada remake aquilo que não pode falar: na receita de “O Rei Leão”, o estúdio entrega com pompa e circunstância ao público as sequências mais emblemáticas da narrativa: as do Circulo da Vida e a da disparada dos gnus. Já a engraçadinha “Hakuna Matata” é boa, mas deixa a desejar justamente porque a ausência de antropoformização dos animais, nesse caso, compromete o seu sucesso. Para compensar eventuais perdas com a expressividade dos personagens, Favreau investe na espetacularização das imagens, com travelings de tirar o fôlego, tanto em cenas macro da savana, deserto e floresta quanto em pequena escala, quando um besouro ou um fiapo da juba de Simba percorrem seu trajeto (Foto: Divulgação)

Primeiro grande sucesso da Disney que não incluía uma princesa, “O Rei Leão” foi um marco. Proporcionalmente, é a produção do estúdio que mais faturou, se mantendo no topo do ranking quando se atualizam as cifras, mesmo em comparação com o campeão de público, “Frozen” (2013). A mescla de exuberância africana, apelo dos animais selvagens e a musicalidade da trilha sonora garantiu à obra de Roger Allers e Ron Minkoff a supremacia no imaginário do público, o que levou à trajetória sem precedentes do musical na Broadway. A diretora da experimental versão para o palco que estreou em 1997, Julie Taymor, é a produtora executiva do longa-metragem live action. Ela soube dosar a presença das canções na narrativa cinematográfica, sem deixar a música impregná-la mais que o necessário, a não ser quando é protagonista, como em “Circle of Life” e “Hakuna Matata”(Foto: Divulgação)
Agora, mais que um banquete para os olhos, o novo “Rei Leão” amplifica as funções de espetáculo pronto para seduzir e de alerta para que as novas gerações não se esqueçam dos ensinamentos lançados ao vento na época do original. À véspera do novo milênio, elas deveriam ter grudado como graxa na pele de líderes e da população, só que não. Passados 25 anos, ainda não entranharam como manda o figurino, e Favreau demonstra ter consciência disso. Para tanto, o diretor impregna o vilão Scar e a matilha de hienas com nuances que acentuam seu caráter predatório em linha direta com o esgotamento de recursos, aspecto que passava bem ao largo no original. Eles estão mais assustadores que nunca, despidos quase sempre de eventuais alívios cômicos, desnudos na antropoformização que diluiria seu caráter nefasto mas, devidamente inseridos na cartilha maniqueísta dos contos de fada, humanos o suficiente na essência para cumprir de cabo a rabo o papel que lhes cabe nesse latifúndio: o de representarem o perigo de um mundo devastado, em desequíbrio causado por um apetite voraz. E nem Trump é páreo para eles.

Irmão do Rei Mufasa e tio do leãozinho Simba, Scar está mais amedrontador que nunca. Originalmente, o vilão foi dublado por Jeremy Irons,: agora ganhou a voz de Chiwetel Ejiofor, de “Doze anos de escravidão” (2013). Continua maquiavélico no melhor estilo shakespeariano (Foto: Divulgação)

No caso dos vilões, a perda das caretas e ausência de expressões humanas é aspecto positivo nesta realização, que precisa ser encarada como uma outra forma de expressão cinematográfica, diferente do desenho original (Foto: Divulgação)
Como produto, mais que um veículo ajustado para inserir uma narrativa batida dentro dos padrões tecnológicos da atual produção cinematográfica, “O Rei Leão” de Jon Favreau cumpre a função de um filme de agenda. Sim, um senhor longa-metragem do ponto de vista dramatúrgico e técnico, com todos os ganchos catárticos aproveitados ao extremo – apesar das reclamações de parte da crítica internacional de que a ausência de antropoformização minou a emoção, aproximando o resultado de um documentário do Animal Planet –, mas ainda assim uma produção afinada com as modinhas da vez, o que em nada o desmerece.

O hiperrealismo que aproxima o novo “O Rei Leão” dos documentários da vida selvagem perde em expressão facial, precisando se limitar quase sempre aos olhares e movimentos de boca para dar sentido às emoções e falas, sem ficar fake. Nessa hora, a sensação de estranheza existe, ainda que o público embarque de bom grado na crença daquilo que é mostrado, sublimando o fato de os animais viverem uma história de traição e culpa. Apesar disso, mais humano impossível. Trata-se apenas de um novo caminho estético e técnico para contar uma história, forma com a qual o espectador ainda não está familiarizado, o que não chega ser um problema, a não ser quando se apega à produção de 1994, sem levar em consideração que agora se trata de outra proposta (Foto: Divulgação)

Por isso, o pajé da savana, o mandril Rafiki – vivido por John Kani, o rei sênior de Wakanda em “Vingadores: Guerra Civil” e “Pantera Negra” -, seja um dos personagens que mais se beneficiou da nova tecnologia de animação. Afinal, o repertório de expressões faciais de primatas é infinitamente mais amplo e próximo dos seres humanos que o de um leão (Foto: Divulgação)
Desde quando Kenneth Branagh acertou a mão dos contos de fada live action com “Cinderela” (2015), a conservadora Disney anda surfando nos novos tempos, adaptando seu catálogo de produtos ao sabor da evolução de costumes, aqui e ali, se reciclando aos poucos para não assustar, em pequenos detalhes no roteiro para não correr o risco de perder o fio da meada. Hoje, a empresa dificilmente expulsaria Baby do Brasil e Pepeu da Disneylândia. Contudo, na atual fornada de empreendimentos cinematográficos, essas inovações só são bem-vindas caso a premissa número um for cumprida à risca: dar à plateia aquilo que ela espera ver numa produção com a sua chancela, só que feita com atores.

Outro diretor que foi testado primeiro na Marvel antes de ser arregimentado pela Disney, Kenneth Branagh emplacou dimensão shakespeariana a “Thor” (2011) para depois cair de cabeça em “Cinderela” (2015). Maduro, ele logo entendeu que, para ter êxito na produção, precisaria ser fidedigno ao conto de fadas, dando de bandeja ao público os dois momentos icônicos pelos quais este pagaria o ingresso, sob o risco de, em caso contrário, o barco naufragar: a sequência da transformação da abóbora em carruagem e a da saída à francesa no baile, quando a mocinha perde o sapatinho de cristal. Desde então, o mapeamento daquilo que não pode faltar em cada live action tem sido seguido à risca pelos executivos do estúdio (Foto: Divulgação)
“A Bela e a Fera” (2017) trouxe uma mocinha que ensaiava o empoderamento da vez ao lado de um inesperado coadjuvante gay, com direito a final feliz de amor entre iguais. “Dumbo” (2019) enfatizou o respeito à diferença, inclusive na inclusão de ua fornada de novos personagens humanos. “Aladim” (2019) levou ao extremo a questão do woman power ensaiada por Bela: a nova Jasmine se transmutou rapidamente em queridinha das menininhas no Instagram ao adquirir roupagem de ativista a favor do papel de proa da mulher na política, na contramão de uma monarquia das Arábias.

Lançado há apenas quatro meses, o “Dumbo” de Tim Burton foi criticado pelo aspecto irreal dos olhos do elefantinho, recurso usado pelo diretor para amplificar a empatia do personagem realista no seu manancial de emoções. Justamente a razão oposta pela qual “O Rei Leão” anda sendo apreciado com reserva por parte da plateia (Foto: Divulgação)
Enquanto uma nova princesinha Disney plena de si (e sem menor a pretensão de arrebatar um príncipe encantado) não chega – a produção da chinesinha Mulan está programada para estrear em março – “O Rei Leão” vai assim: ocupando a função de defensor de um planeta mais sustentável, se posicionando, de leve, contra a maré de capitalismo cruel que por hora vem ameaçando a harmonia ecológica global, em sintonia com a pauta de questões que hoje dão likes.

A ex-modelo e cantora Yufei Lui, da saga chinesa “Os quatro”, foi a escolhida para dar vida a mocinha que prefere ser guerreira que casar na machista China medieval (Foto: Divulgação)
De quebra, o clássico repaginado ainda mostra que a troca de vivências entre empresas que pertencem à The Walt Disney Company é uma prática financeiramente salutar: depois de faturar uma nota preta (sem trocadilho) com o estrondoso sucesso de público e crítica do elenco majoritariamente negro de “Pantera Negra” (2018), da subsidiária Marvel Studios, “O Rei Leão” investe num casting do mesmo naipe, cujo maior trunfo é pop star Beyoncé Knowles no papel da leoa Nala. Nada como preparar terreno para uma Pequena Sereia negra por vir, a Ariel encarnada pela cantora Halley Bailey, que começa a ser filmada em 2020.

Dentre os nomes do casting de vozes escalado por Favreau para abrilhantar “O Rei Leão”, Beyoncé é o grande medalhão para atrair o público às salas de exibição. Ela aproveitou direitinho a deixa, fez o dever de casa e mandou ver: acaba de lançar um álbum de canções inspiradas no filme, “The Lion King: The Gift”. O elenco do filme, entretanto, conta com a presença de atores não tão badalados quanto a estrela, gente que faz a industria hollywoodiana acontecer, como a sempre competente Alfre Woodard, que interpreta Sarabi, a mãe de Simba. O veterano Jaes Earl Jones, que fez a voz de ufasa na versão dos anos 1990, retorna ao papel. Para compensar a ausência de antropoformização, o diretor optou por fazer os atores contracenarem entre si no set, ao invés de apenas gravarem suas vozes isoladamente no estúdio de som (Fotos: Divulgação)

Dias antes do lançamento de “O Rei Leão”, a polêmica tomou conta da internet com outro clássico da Disney, quando o diretor escalado para tocar o projeto de “A Pequena Sereia”, Rob Marshall (“Chicago”, “Nine” e “O retorno de Mary Poppins”) divulgou nas mídias sociais que a negra Halle Bailey, do duo de R’n’B Chloe x Halle, vai encarnar a ruiva. Pergunta que não quer calar: vai manter o picumã cor de fogo da personagem? (Fotos: Divulgação)
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