O sonho de qualquer estrela do cinema, sobretudo as mais belas, é despir-se da vaidade física para encarar sob pesada maquiagem uma personagem interessante que destaque sua capacidade de interpretar, mas desprovida de belezura. Prova de fogo para aquelas atrizes que, por serem consideradas muito bonitas, volta e meia têm o seu talento questionado para além da fotogenia. A lendária Bette Davis foi hábil em abraçar esse tipo de papel, ainda que nunca tenha sido exatamente um padrão de beldade, e quem não se lembra das inúmeras vezes em que Glenn Close e Meryl Streep lançaram mão desse expediente em papeis que oxigenaram suas longevas carreiras, ainda que nenhuma das duas seja também uma misse? Nem sempre é questão de beleza, mas de divismo. A madura e feiosa Olivia Colman arrebatou de uma tacada só o Oscar e a fama quando embarcou no papel de uma rainha britânica digna de pena, tanto pelos atributos físicos quanto pelo sofrimento causado por doenças degenerativas em “A favorita” (2018), na contramão de uma estonteante Nicole Kidman no auge da juventude, que ganhou uma estranhíssima prótese de nariz para interpretar a atormentada escritora Virginia Woolf em “As Horas” (2002), o que também lhe rendeu a estatueta mais desejada do planeta. Caso da igualmente loura Charlize Theron, seguinte a ganhar o prêmio de ‘Melhor Atriz’ pela interpretação que a consagrou definitivamente em “Monster: desejo assassino” (2003) graças à formosura completamente eclipsada por quilos de make up que a verteram em uma medonha lésbica de verve caminhoneira que se torna serial killer. Seguindo essa tradição de se enfear para brilhar, a bola da vez agora é Helen Mirren, 78 anos, mas em plena forma – a britânica é o suprassumo da Geração Prateada nos red carpets. Ela se prepara para assombrar o público na pele da primeira-ministra Golda Meir (1898-1978), uma das fundadoras do Estado de Israel e figura de proa na consolidação desse país junto à comunidade árabe internacional. E anote no seu caderninho: Mirren já é forte candidata a candidata a ser contemplada pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, que adora esse tipo de esforço e carimba como abnegação esse outro tipo de falácia,por “Golda – A Mulher de uma Nação” (2023), que estreia nas salas de exibição do Brasil no próximo dia 31.


Não é a primeira vez que a esperta, hábil e firme Golda Meir vira matéria-prima para uma grande estrela. Ingrid Bergman encarnou a política em sua última performance – “Uma mulher chamada Golda” (1982), que estreou meses antes de falecer. Mas se trata de um telefilme de uma era em que a produção televisiva ainda não tinha o prestígio atual. Agora, em “Golda – A Mulher de uma Nação” é a primeira vez que a judia nascida na Ucrânia é retratada em uma realização norte-americana produzida para a tela grande, um feito e tanto quando se considera que o cinema hollywoodiano para adultos hoje é raridade, com esse tipo de narrativa quase sempre reduzida ao streaming ou mesmo à televisão aberta.

O período abordado pelo roteiro é aquele da Guerra do Yom Kippur, em 1973, quando Egito e Síria se aproveitaram de uma distração israelense – acreditar que os inimigos respeitariam o mais importante feriado nacional, o Dia do Perdão – para atacar simultaneamente o território inimigo pelo Norte (as colinas de Golã) e pelo Sul (A Península do Sinai e o Canal de Suez), impondo duras perdas ao exército comandado pelo implacável Ministro da Defesa Moshe Dayan, um herói de guerra. Com habilidade, uma Golda Meir fumante inveterada e já diagnosticada de câncer terminal luta para ser o esteio da nação e tomar as decisões certas na mesma proporção com que se submete a tratamentos médicos paliativos durante uma crise que a alçou tanto à condição de artífice internacional da paz quando a de pária dentro de casa, trucidada pelo seu povo, incapaz de aceitar as consequências do conflito bélico que ceifou a vida de dezenas de milhares de israelenses. Intimada a depor para uma comissão que lhe questionava a conduta, Golda se mostrou sólida, apesar de debilitada fisicamente. Logo sairia de cena para morrer poucos anos depois, não sem antes forçar a comunidade árabe a reconhecer a existência de Israel como nação.
Confira abaixo o trailer legendado oficial de “Golda – A Mulher de uma Nação” (Divulgação):
Mulheres como Golda Meir hoje são prato cheio para o cardápio de empoderamento feminino que alimenta plateias, ainda que a sua falta de glamour as coloque no lado oposto das celebridades que ganham a vida na flauta, com frases de efeito, looks do dia e cabelos ao vento. Sua fabulosa trajetória como personagem seminal da construção de um Estado Judeu é inegável e merece ser vivida por uma estrela do naipe de Helen Mirren, epíteto da mulher emancipada em diversas direções, mas que nos últimos tempos vinha sendo aproveitada como curiosidade de quermesse em blockbusters, como “Shazam! Fúria dos Deuses!” e “Velozes e Furiosos 10”, participando de filmes de ação tipo “Red: Aposentados e Perigosos”, dublando dragão em “Coração de Tinta: O Livro Mágico” ou atuando como narradora no sucesso “Barbie”.

A sequência de abertura de “Golda – A Mulher de uma Nação”, em que a atriz é flagrada pelas costas caminhando em direção ao inquérito que pode se transformar inquisição, com passadas firmes que demonstram sua firmeza como líder, enquanto ignora manifestantes fora de foco revoltados com suas decisões, mais que antológica como resumo da vida de Meir, é semiótica perfeita para o percurso da incansável Helen Mirren, que não dispensa um desafio e segue na boca dos oitenta obstinada pela labuta, com a mesma garra da juventude.
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