Antes de ser consagrada pelos inúmeros prêmios importantes que já recebeu ou pela espetacular filmografia que pontua sua carreira de quase cinco décadas, Milena Canonero já detinha o mais difícil reconhecimento possível de se arrancar do meio cinematográfico: a admiração e o respeito profundos do genial diretor Stanley Kubrick (1928-1999), considerado uma das personalidades mais exigentes e difíceis da Sétima Arte. Seu padrão de exigência era tão absurdo que os detratores do diretor diziam que Deus depois do sétimo dia quase se arrependeu da sua criação e que no oitavo pensou em chamar Kubrick para refazer tudo. Portanto, ao receber o Urso de Ouro Honorário do Festival de Berlim na noite desta última quinta-feira (16/2), depois de uma concorridíssima sessão que exibiu a sua terceira e última colaboração fílmica sob a batuta de Kubrick – o aterrorizante O iluminado –, Milena Canonero voltou a reiterar – como habitualmente faz nessas ocasiões – a sua dívida com o mestre com quem trabalhou em outros dois clássicos: Laranja mecânica (1971), considerada por ela a experiência mais excitante da sua vida, e Barry Lyndon (1975).

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A italiana Milena Canonero foi a primeira figurinista a receber o Urso de Ouro Honorário dedicado às personalidades mais influentes do cinema mundial em cerimônia de gala da 67ª edição do Festival de Berlim nesta última quinta-feira (16/02) (Foto: Divulgação)

E é através da eterna gratidão de Canonero por Kubrick que se pode avaliar a importância que o diretor dava aos figurinos no conjunto de fatores necessários à expressão artística total de um filme. A figurinista revelou, por exemplo, que Kubrick a ensinou a começar o processo de caracterização de um personagem a partir da cabeça para depois se esparramar para o resto do corpo. Nas espetaculares recriações de época como “Barry Lyndon”, Kubrick aconselhou-a a se preocupar com a fidelidade histórica apenas no final, isto é, só depois de ter capturado a essência pictórica e visual dos trajes.

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Milena Canonero entrou para o mundo do cinema sob a tutela do mais importante diretor na passagem dos anos 1960-1970: Stanley Kubrick. Em “Laranja mecânica” (1971), a figurinista recebeu liberdade total de Kubrick para fugir das descrições futuristas do autor do romance que inspirou o filme Anthony Burgess e recriou o inesquecível visual de Alex e bando a partir da estética skinhead que pesquisou nas ruas de Londres (Foto: Reprodução)

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A diretora Sofia Coppola usou a figura de Maria Antonieta, a infeliz Rainha da França cuja cabeça acabou na cesta da guilhotina e título do seu filme de 2006, como instrumento de crítica ao consumismo contemporâneo, embora ela mesma seja uma fashion victim. Milena Canonero foi incumbida de recriar um dos guarda-roupas mais festejados do cinema . Suas criações lhe renderam seu quarto Oscar e influenciaram estilistas como Alexander McQueen e Ralph Lauren (Foto: Reprodução)

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O elaboradíssimo trabalho de Milena Canonero para “Maria Antonieta” tornou-se tão popular que peças do guarda-roupa original viajaram o mundo através de exposições (Foto: Reprodução)

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Sofia Coppola e Milena Canonero conferem a coleção de sapatos na oficina de figurino da produção. A ponte entre a adolescente Maria Antonieta (Kirsten Dunst) e os teens de hoje foi estabelecida pela trilha musical roqueira e por alguns adereços deslocados no tempo-espaço, como o famoso tênis no closet da rainha (Foto: Reprodução)

Embora trabalhando para alguns dos maiores diretores de cinema como Francis Ford Coppola, Sydney Pollack, Alan Parker, Louis Malle, Michelangelo Antonioni, Wes Anderson ou Roman Polanski, Milena Canonero tinha o hábito de se definir como uma “diretora frustrada”, desconforto que ela parece ter finalmente sanado agora, aos 71 anos, pois ela acaba de estrear na direção de um filme publicitário, enquanto continua a desenvolver o projeto de um documentário sobre o “mestre dos mestres” dos figurinistas italianos, Piero Tosi.

Além desses projetos pessoais, Milena continua pontificando soberana como figurinista. Ela acaba de assinar o guarda-roupa do esperado Suspiria”, dirigido pelo italiano Luca Guadagnino e que vem sendo erroneamente definido como remake do clássico do horror de Dario Argento de 1977.

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Já estabelecida como a mais importante figurinista da Sétima Arte, Milena Canonero recebeu de Warren Beatty uma missão quase impossível: transplantar para o cinema não só o look dos personagens do universo de Dick Tracy, o detetive de HQ criado por Chester Gould em 1931, como também dar a impressão de que as figuras tinham saído diretamente das revistas para a tela (Foto: Reprodução)

Em “Suspiria”, Milena Canonero vai vestir Tilda Swinton, Dakota Johnson, Chloë Grace Moretz e a estranhíssima (mais do que a própria Tilda) Mia Goth, numa história que mistura o mundo do balé com bruxaria da pesada. Com esse elenco, figurinista e tema, Stanley Kubrick – se pudesse – provavelmente adoraria estar na primeira fila da sessão de estreia.

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Milena Canonero é considerada uma das mais talentosas caracterizadoras de personagens do cinema, produzindo resultados que ultrapassam ao do papel de uma figurinista convencional. A bizarra Madame D. (Tilda Swinton), hóspede de “O Grande Hotel Budapeste” (2014), de Wes Anderson, é uma das suas criações recentes mais surpreendentes (Foto: Reprodução)

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Mas “construir” Madame D. não foi fácil. Antes, Milena Canonero precisou desenvolver uma complexa pesquisa no repertório da pintura europeia do início do século 20, filtrando e sintetizando referências de Gustav Klimt, Tamara Lempicka, George Grosz e Kees Van Dongen (Foto: Reprodução)

Assista parte da cerimônia de premiação com o discurso de Milena Canonero:

COM “BARRY LYNDON” COMEÇA A COLEÇÃO DE PRÊMIOS OSCAR DE MILENA CANONERO

 A figurinista sempre fez questão de afirmar que tudo o que sabe sobre imagem e figurino ela aprendeu com Stanley Kubrick. Essa parceria continuou imbatível no filme seguinte do diretor, o revolucionário “Barry Lyndon” que arrebatou 4 prêmios da Academia, inclusive o de Melhor Figurino para Canonero e Ulla-Britt Söderlund. Confira este trailer do filme restaurado para o seu 40º aniversário:

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A Itália gerou uma longa linhagem de figurinistas oscarizados como Vittorio Nino Novarese, Piero Gherardi, Piero Tosi, Danilo Donati, Milena Canonero e Gabriella Pescucci cuja contribuição para a arte do figurino cinematográfico, teatral e operístico é incomparável. Mas essa maestria só seria possível com uma base artesanal sólida – as famosas sartorie, como o famoso Atelier Tirelli, em Roma, cujas confecções já foram agraciadas com 16 prêmios da Academia (Foto: Reprodução)

MARIA ANTONIETA DERRUBA MIRANDA PRIESTLY NA NOITE DO OSCAR DE 2007

“Maria Antonieta” enfrentou “O diabo veste Prada” pelo prêmio de Melhor Figurino e levou a melhor. Mas isso não tirou o humor da dupla Anne Hathaway e Emily Blunt diante do próprio Diabo (Meryl Streep, na plateia), incumbida de apresentar os cinco fortes candidatos. Confira a divertida “saia justa” pela qual passaram as duas pupilas de Miranda Priestly e Milena Canonero agradecendo ao seu eterno mestre, Stanley Kubrick:

TRÊS CLÁSSICOS E UMA FIGURINISTA
O  Urso de Ouro não foi o primeiro prêmio para o conjunto da obra dessa figurinista natural de Turim. Muito além dos troféus, são as visões de Milena enraizadas no imaginário do público mundial há quase 50 anos que importam verdadeiramente. Desfrute de algumas delas:

Carruagens de  fogo” (1981), de Hugh Hudson, trouxe o único Oscar para Vangelis e a Milena Canonero o seu segundo:

 

Como se esquecer da aparição das gêmeas em “O iluminado” (1980), terceira e última colaboração de Canonero para Stanley Kubrick?

Ou o vôo de Robert Redford e Meryl Streep em “Entre dois amores” (1985), de Sydney Pollack, embalado pelo tema de John Barry?

CONFIRA ABAIXO OS VENCEDORES DA 67ª EDIÇÃO DO FESTIVAL DE BERLIM:

 A Berlinale encerrou-se ontem à noite com a divulgação dos premiados da competição oficial apontados pelo Júri Internacional presidido este ano pelo diretor holandês Paul Verhoeven, cujo filme “Elle” pode  conferir o Oscar de Melhor Atriz para Isabelle Huppert no próximo domingo (26/02). Considerado o mais politizado entre os grandes festivais cinematográficos do mundo, Berlim refletiu na tela as questões e os temas que estão na ordem dia como a condição transgênero, o mundo pós-Donald Trump e a onda revisionista de processos e personagens históricos, como Karl Marx e o nosso Tiradentes.

São estes os premiados da 67ª edição do Festival de Berlim

Urso de Ouro: On body and soul, de Ildikó Enyedi –  (Hungria).

Urso de Prata, Grande Prêmio do Júri: Félicité, de Alian Gomis (França-Senegal).

Urso de Prata de melhor diretor: The other side of hope, de Aki Kaurismäki (Finlândia).

Urso de Prata de melhor atriz: Kim Min-hee por On the beach at night alone, de Hong Sang-soo (Coreia do Sul).

Urso de Prata de melhor ator: Georg Friedrich por Helle Nächte, de Thomas Arslan (Alemanha).

Urso de Prata de melhor contribuição artística: Dana Bunescu pela montagem de Ana, mon amour, de Calin Peter Netzer (Romênia).

Urso de Prata de melhor roteiro: Sebastián Lelio e Gonzalo Maza por Uma mulher fantástica, de Sebastián Lelio (Chile).

Urso de Prata de melhor documentário: Ghost Hunting, de Raed Andoni (França/Palestina/Suíça).

Prêmio Alfred Bauer: Pokot, de Agnieszka Holland (Polônia).

Prêmio de melhor estreia: Verão 1993, de Carla Simón (Espanha).

Urso de Ouro de melhor curta-metragem: Cidade Pequena, de Diogo Costa Amarante (Portugal).

Urso de Prata de melhor curta-metragem: Ensueño en la pradera, de Esteban Arrangoiz (México).

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Vitória feminina: a diretora húngara Ildikó Enyedi levanta o seu Urso de Ouro, prêmio máximo do Festival de Berlim, pela tragicomédia “On body and soul” (Foto: Divulgação)

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O Grande Prêmio do Juri, correspondente ao 2º lugar, coube à co-produção franco-senegalesa “Félicité”, do diretor Alain Gomis, sobre a luta desesperada de uma cantora africana sem recursos para operar seu filho (Foto: Divulgação)

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“Pendular”, história de amor entre uma bailarina e um escritor, conquistou o prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema-FIPRESCI. O filme da diretora Julia Murat foi a única consagração obtida entre as 12 produções brasileiras que foram este ano a Berlim, incluindo “Joaquim”, de Marcelo Gomes, selecionado para a competição oficial (Foto: Reprodução)

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