“A arte existe porque a vida não basta”. Dita pelo poeta Ferreira Gullar a partir do desdobramento de um pensamento de Fernando Pessoa, esta frase pode ser estendida à necessidade de espetáculo que permeia a banalidade da existência evitando a invisibilidade social, por sua vez o cerne de “Não! Não olhe!” (Nope, Universal Pictures, 2022) – aguardado terceiro longa-metragem de Jordan Peele, diretor que surpreendeu público e crítica com boas produções de terror, o excelente “Corra!” (2017) e o bom “Nós” (2019), recheadas de alegorias acerca de questões como racismo, desrespeito à diversidade e invisibilidade social. Em cartaz, essa realização que mescla sci-fi com horror sobre um vilarejo californiano às voltas com uma invasão extraterrestre parte da premissa – alardeada pelo farto material de publicidade – de que Peele se inspirou na atmosfera da série de televisão “Além da imaginação”, clássico da narrativa fantástica da virada dos anos 1960 que volta e meia é reciclado e ganhou a voz do diretor como narrador na sua última encarnação na telinha, entre 2019 e 2020.
Confia abaixo o trailer legendado oficial (Divulgação):
Sem dúvida, o roteiro do próprio cineasta abraça essa semelhança com o clima dos episódios da antiga atração, mas o que se vê vai muito além desse artifício lançado pelo estúdio para definir uma obra tão incomum e irregular como “Não! Não olhe!”, cheia de qualidades, mas também com alguns problemas. Dotado da costumeira habilidade para criar sequências assustadoramente tensas, mas menos óbvio em sua já reconhecida crítica social, Peele corre o risco de se tornar o novo M. Night Shyamalan (diretor que, após lançar o genial “O sexto sentido”, em 1999, nunca mais conseguiu criar nada tão contundente), mas continua se valendo de protagonistas negros para realizar um cinema visceral, nada nichado (como é o gênero blaxploitation), mas universal, ainda que, dessa vez, suas tintas possam ter esmorecido.

Se for compreensível que Jordan Peele se valha, nos seus dois primeiros filmes, de um mocinho preto (o sempre bom Daniel Kaluuya, agora ótimo) para capitanear uma encenação sobre racismo velado e uma atriz preta de prestígio, Lupita Nyong’o, para encarnar a mãe de uma família às voltas com duplos saídos da obscuridade (tema que tanto é caro à comunidade afrodescendente), agora ele recorre ao mesmo Kaluuya e à cantora e atriz Keke Palmer (presença deliciosa!) para capitanear essa história de terror que, (apenas) num primeiro olhar, nada tem a ver com a herança racista ocidental, mas onde não ver significa se manter vivo literal e metaforicamente, questão que pode se entrelaçar à invisibilidade preta.

Kaluuya e Palmer interpretam o casal de irmãos OJ e Emerald Haywood, cujo pai (Keith David, com 350 filmes no currículo e ótimos serviços prestados à indústria, rosto manjado e nome pouco lembrado) morreu há poucos meses num inexplicável incidente e têm, na cidadezinha de Agua Dulce, um rancho de cavalos adestrados para locação ao mercado audiovisual, vizinho ao parque temático de um ex-ator mirim da televisão que carrega um trauma, Rick (Steven Yeun, de “The Walking Dead” e “Minari: em busca da felicidade).

A relação dos irmãos azedou após a morte do patriarca e piora substancialmente quando Emerald descobre que OJ anda vendendo cavalos do rancho para o circo do vizinho, enquanto a irmã se encarrega de tentar não só um lugar ao sol na indústria cinematográfica como manter o legado da família para a posteridade hollywoodiana. Explica-se: Peele estabelece como bisavô da dupla o negro sentado no cavalo de uma série de fotogramas famosíssimos de um ancestral do cinema – o zoopraxiscópio, um dispositivo para projetar retratos em movimento criado no século 19 pelo inglês Eadweard James Muybridge (1830-1904).

É a partir daqui, da retomada da questão da invisibilidade preta presente em todos os seus filmes – de fato, todo mundo já viu esses fotogramas, mas não se sabe até hoje quem é o homem que conduz o cavalo –, que o diretor arranca em direção a essa metáfora sobre o “não ver”. O tema da invisibilidade se desdobra em outro seminal: a necessidade, na sociedade atual, de vivenciar, reproduzir e se render ao espetáculo para poder ser enxergado. Qualquer que seja o espetáculo da vida, esta se assemelha ao showbiz quando, para continuarmos nos sentindo vivos, determinamos que o show permaneça em ininterrupto looping nesta era definida pelo egocêntrico desejo de eternidade que norteia nossa existência em fugazes redes sociais. Ver agora significa viver o seu próprio espetáculo à vista de todos, mesmo que, para tanto, sejamos devorados, deglutidos e consumidos à exaustão por conta desta visibilidade forçada. É disso que o diretor se encarrega de sublinhar durante toda a projeção.

OJ precisa desesperadamente registrar o UAP (unidentified aerial phenomena ou, na tradução, fenômeno aéreo não identificado) para voltar a perceber a vida novamente pulsando após a morte do pai. Emerald embarca na visibilidade que o registro trará para os dois e o negócio da família, caso viralize nas redes. Vertido em colaborador, o instalador de câmeras compradas do magazine local cai de cabeça Big Brother sideral como forma de escapar da modorrenta realidade. E, entediado pelo fato de já ter filmado de tudo, o taciturno e mal-humorado diretor de cinema, arregimentado à última hora para capturar as imagens do óvni, espera recuperar o tesão pelo métier com o resultado fílmico desse terrífico espetáculo real, possivelmente seu “cai o pano”. Todos querem se alimentar desse espetáculo, não mais que o caubói Rick, que enxerga semelhança no comportamento dessa criatura espacial e no chipanzé que, num surto, dizimou a dentadas, diante de si, quase todo o elenco da sitcom da qual era astro na infância. O sentido premente de espetáculo se impregna tanto em todos que o rapaz só consegue se lembrar da tragédia vivenciada não através das lembranças in loco, mas pela encenação exibida no programa “Saturday Night Live”.

É a vida reduzida à dimensão de um picadeiro virtual, e para isso vale lembrar que o mesmo Fernando Pessoa que inspirou Ferreira Gullar escreveu “Heróstrato e a busca da imortalidade”, estudo sobre a celebridade póstuma que se debruça sobre a vida real do cidadão que, em busca da fama, em 356 antes de Cristo, ateou fogo no templo de Diana em Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Quase dois mil e quinhentos anos atrás, o desejo de eternidade já se expressava através da realização de espetáculos grandiosos, ainda que nefastos. Além de condenado à morte, Heróstrato teve duplo castigo: os habitantes daquela cidade, hoje no território turco, decretaram que qualquer um que registrasse o episódio seria morto como forma de evitar o registro para a posteridade de ato tão indigesto. O objetivo? Negar-lhe celebridade via invisibilidade. Não adiantou. Bastou o historiador Teopompo (378 a.C. – 323 a.C.) escrever sobre o acontecimento que o criminoso ganhou eterna notoriedade.
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