“Corra para a Luz! A luuuuuz, Carol Ann!” a frase proferida pela paranormal Tangina (Zelda Rubinstein) em direção ao espírito da pequena caçula (Heather O’Rourque) da familia Freeling, capturada por uma entidade maligna e levada ao plano espiritual, em “Poltergeist – o fenômeno” (1982), poderia resumir o percurso do público pelos dois desfiles seguidos – e mais concorridos – do segundo dia (26/5) do DFB Festival, em Fortaleza. Prata da casa há muitas temporadas, os criadores autorais Lindebergue e Ivanildo Rocha representam, de certa forma, olhares opostos acerca da moda. Suas apresentações exalaram isso, sobretudo se consideramos que, mesmo vivendo num momento pós-vacina, rumo ao pós-pandemia, temos outros fantasmas a nos assombrar muito mais assustadores que aqueles que compareceram no clássico produzido por Steven Spielberg: eleições polarizadíssimas em outubro, ameaça de golpe, possibilidade de uma nova guerra mundial, governantes macabros e uma quase nova pandemia, a tal de varíola do macaco, todas tão assustadoras quanto o look de Ana Maria Braga no último Domingão com Huck. Para piorar, Elon Musk veio ao Brasil falar sobre a Amazônia. Será que ele quer levar a nossa biodiversidade à Marte? Visão do inferno.
É possível perceber reações distintas dos dois estilistas diante de tantas mazelas a nos horrorizar, com consequente reflexo na coleções apresentadas. Penúltimo a dar expediente no dia, Lindebergue (que agora assina só assim, sem sobrenome, um luxo!) ofereceu ao público, talvez, sua melhor coleção. A mais consistente até hoje, pelo menos, redondinha e desfilada em dois atos. Ou árias, porque tudo com Lili é operístico. Para por de pé esses dois momentos na passarela , o designer – sempre afeito à transgressão – pintou os canecos no fashion show, oferecendo uma trajetória da morte ao nirvana pós-existencial (literal, e não sartriano).

ÁS ouviu dizer que o tema tinha algo a ver com Lampião e Maria Bonita, mas os dois fizeram forfait, sequer deram as caras. Melhor assim. O que se viu foi, no primeiro bloco, uma pegada bem interessante do bom e velho dark dos anos 1980, revisitado com qualidade, a começar pelo look do vestido de transparência com desenho de leques art déco. Tudo a ver.

Afinal, este estilo artístico resume o zeitgeist dos anos 1920, não por acaso chamados de anos loucos, quando a turma aloprou: as saias subiram pelas pernas; influenciadas pelas sufragistas, as mulheres cortaram as cabeleiras à la garçonne. Os festeiros se divertiam com borbulhas e rapé, enquanto cocaína era vendida nas farmácias. E a boa música negra (o jazz no Estados Unidos e o samba por aqui) saiu do gueto, alcançando o mainstream. Tudo forma de exorcizar os poltergeists da Primeira Grande Guerra e da gripe espanhola, como hoje, aqui e agora.

Lindebergue relê o momento nessa ponte que estabelece entre o hoje e os anos loucos, reproduzindo, em looping ascendente, a morte da balada, do frisson, da leveza. A música já dá a pista, começando por “Funeral de um lavrador“, de Chico Buarque (inspirada pelo clássico de João Cabral de Melo Neto, “Morte e Vida Severina“) que emenda com “Knockin’ On Heaven’s Door“, do Guns’N’Roses. Disse tudo. Nessa catwalk toda trabalhada no pretume, não há espaço para festar, o badalo est fermé, o babado é deprê, ainda que as montações de Lili sejam tão babadeiras que conduzam, fora do contexto do desfile, a rolês lacradores, possivelmente plenos de extase/ecstasy. Pra ligar o #balamodeon

Jacquards negros com arabescos idem, maxi maxi maxi rufos repolhudos dignos da megafauna – capazes de fazer Velásquèz enfrentar uma preguiça gigante -, vestidos-pelerine e prints corridos de caveiras de quatro, em posição kamasutriana, dão as cartas nessa moda-velório impactante, divertida, caruda, mas capaz de enterrar o blasê.
Os olhos Mortícia e a profusão de calçados pesadões – boots, plataformas e melissas – nos pés imprimem coerência ao styling da cabeça aos pés nessa moda-protesto com direito a poses glam contorcidas diante do pit do fotógrafo num mix de cultura ballroom com Hellraiser. Destaque para a série de suéteres descontruídos. É a apoteose desse divertido funeral fashion de quem anda aterrorizado com o mundo à volta, acreditando que o fim pode estar próximo.

Corta para o segundo ato. Ao som de “Xanadu“, na voz de Olivia Newton John, a modelada irrompe mais leve (pero no mucho), como se, no post-morten, houvesse atingido o nirvana. Nefelibáticas criaturas, mas nem tanto, com franjinhas faceiras ou baby hair, irrompem a passarela em jeans com blaster estrelas aplicadas em glitter ouro, como se o terror houvesse virado descambado na paz universal. Looks em pêssego, rosê e prata, muitos tops cropped revelam que a tempestade virou calmaria. Ao fundo, um ceu azul com cara de início de abertura dos Simpsons dá a bandeira no telão: é celestial, mas não é baba. Por isso, o desfile fecha com o modelo num macacão prata, estilo Abba, conectando os vinte com os setenta. Ah, quero festar!

A seguir, Ivanildo Nunes embarcou numa positividade muito além de Lili. O moço também compartilha da visão do colega de que, no final, prevalecem as good vibes. Como diriam os argentinos, “tudo buena onda”. Okay. Mas, para ele, não é preciso descer ao inferno para alcançar a elevação. O pós-pandemia é suficiente e, por isso, o estilista aposta no look dopamina, alegrando espíritos de luz com seus vestidos coloridos, cheios de texturas repolhudas. Deve ter sido mesmo o último círculo do inferno de Dante o período de isolamento social para Ivanildo. Como sobreviver de roupa de festa quando a festa acabou. Rega-bofes transformaram-se em rios de lágrimas, boletos se acumularam em pilhas e viver de festa pode ter virado trabalho de Hércules. Assim, no final da fila, resta apenas ajoelhar e agradecer por ainda estar de pé, pondo desfile pra jogo enquanto o mundo quase acabou.

É preciso celebrar, enaltecer a boa sorte. Assim, o desfile segue ao som de inúmeras versões de “Aleluia”, de Leonard Cohen, o círculo cromáticos de cores que aquecem a alma vai dando vez ao preto & branco, fechando no branco total. Modelos dão a vez a mulheres gente como a gente, mas nem por isso menos lindas. Mais velhas, mais curtidas da vida, mas com menos curtidas no insta. Reais. Cheinhas. Gente como a gente, que ninguém é de ferro. Fica até aquela sensação: no pós-cataclisma, seria bom se o sol fosse mesmo para todos…


Confira abaixo as imagens da coleção de Lindibergue (Fotos: Divulgação):














Confira abaixo as imagens do desfile de Ivanildo Nunes (Fotos: Divulgação):



















*Por Alexandre Schnabl
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