Na sequência final de “Elizabeth” (de Shekhar Kapur, 1998), uma jovem Elizabeth I (Cate Blanchett) ainda estupefata com a inesperada ascensão ao poder toma uma decisão: ao som de “Lacrimosa”, extraída do Réquiem de Mozart, a soberana corta suas longas madeixas acobreadas de forma a acomodar uma sensacional peruca para em seguida escolher o pancake que vai lhe deixar tão alva quanto a Virgem Maria, tornando sua aparência divina, enquanto suas aias choram por entenderem que aquela moça doce que conheciam acaba de sucumbir a um eficiente projeto de reinado. Na cena seguinte, o burburinho da corte imediatamente cessa quando a rainha da Inglaterra adentra o imenso salão, trajando um espetacular conjunto de vestido e joias arrematado por  um gigantesco rufo que praticamente isola a sua cabeça do resto do corpo, tornando-a inatingível. Impávida, ela avança em direção ao trono que tantos lhe tentaram usurpar, enquanto a corte, desconcertada, se ajoelha diante da monarca. Ela senta o trono. Abre os antebraços, rotaciona os pulsos e volta as palmas das mãos em direção aos céus, como nas pinturas sacras que retratam o caráter sagrado de Jesus Cristo, fazendo uso de uma inacreditável semiótica para afirmar sua incontestável presença em frente aos súditos perplexos. É com esse mesmo grau de preciosismo que Madonna construiu, ao longo desses 40 anos de carreira, sua persona como Rainha do Pop e que pode ser conferido no surpreendente show que encerrou The Celebration Tour” – turnê que consagra seu longevo percurso no showbizzz –, na Praia de Copacabana, Rio, na noite deste sábado (4/5), para o maior público de sua trajetória: 1,6 milhão de pessoas.

Madonna arrebatou público nas areias de Copacabana com espetáculo irretocável que abraça o sagrado.
Maior público: 1,6 Milhão de pessoas se reuniu na Praia de Copacabana para conferir o show que finalizou a turnê Ve Madonna. (Foto: Marcos Hermes/Divulgação)

Madonna ainda não alcançou o tempo de reinado de Elizabeth I (44 anos), mas está próxima. Deve ultrapassar. Três palavras descrevem o nível da artista na milimétrica construção de sua imagem nesse espetáculo: mitologia, liturgia e elegia, tudo temperado com alta dose de sacralidade, a começar pela auréola que encabeça o look de abertura neobarroco, criado pelo etíope-americano Eyob Yohannes.

Madonna arrebatou público nas areias de Copacabana com espetáculo irretocável que abraça o sagrado.
Produção de sentidos: Em “The Celebration Tour”, Madonna investiu pesado em artifícios para refirmar sua posição, elaborando refinadas significações valiosas à sua persona. (Foto: Marcos Hermes/Divulgação)

Sua veia operística e a precisa noção de que não está entregando à plateia um show, mas uma cerimônia religiosa em atos musicais é que fazem dela uma ameaça, ainda hoje, à parcela conservadora da sociedade, a mesma que (ainda!) se choca com as bandeiras que empunha em prol da liberdade sexual, amor livre, empoderamento feminino, emancipação gay, uso do corpo sem amarras e hoje, aos 65 anos, a favor do antietarismo, tudo junto e misturado a um legado sonoro e imagético potente. “Pobre é o homem cujos prazeres dependem da permissão de outro homem”. Essa frase, que finaliza um de seus clipes mais impressionantes, Justify My Love (1990), permanece atual em países que insistem em eleger para a Suprema Corte ministros “terrivelmente evangélicos”.  

Madonna arrebatou público nas areias de Copacabana com espetáculo irretocável que abraça o sagrado.
Fenômeno 60+: última super estrela da sua geração, Madonna atraiu à Copacabana um público de todas as idades disposto a embarcar com a musa em emocionante experiência imersiva. (Foto: Marcos Hermes/Divulgação)

Bem verdade que há mais de 30 anos ela já vem fazendo isso. O mundo descobriu o quanto suas apresentações eram atos políticos na virada dos anos noventa, com The Blondie Ambition e, logo depois The Girlie Show(1993), que teve etapa brasileira no Maracanã e no Morumbi. Mas nada se compara a “The Celebration Tour”. Nesse tempo, Madonna aprimorou sua máquina de produção de sentidos, ampliou o repertório de hits, amadureceu e envelheceu sem perder o frescor. E, claro, com a tecnologia da Era Digital na palma da mão, depurou seu homo faber. Fato que o mix de recursos atuais, aliado à evolução de sua expertise como one woman show não se compara àqueles espetáculos históricos. Pelo contrário, vai além permitindo que Madonna alcance, com seu impecável time de roteiristas e diretores de cena, um patamar inigualável mesmo para ela, que inventou essa teatralizada experiência litúrgica no palco de grandes proporções. O que se viu sábado foi a cantora em sua melhor forma, mesmo que sua idade não lhe possibilite mais rodopiar como antes e precise do amparo da projeção e cenografia combinadas para ganhar tempo, tomando fôlego.

Madonna arrebatou público nas areias de Copacabana com espetáculo irretocável que abraça o sagrado.
Em sentido horário: o look que transporta Madonna para o lugar dos grandes mitos; o beijo lésbico; o abraço caloroso em Pablo Vittar; o concurso ballroom de mentirinha com Anitta. (Fotos: Marcos Hermes/Divulgação)

Pouco importa se a diva atrasou uma hora ou se cantou em playback. Podia ter sido britânica no horário? Devia. Teria sido melhor se houvesse banda? Sim, mas e daí? Não é fácil cantar, dançar e performar em cena e ainda não se sabe se ela vai conseguir fazer o mesmo aos 80, como Paul McCartney e Mick Jagger, ou se vai aproveitar esse recorde de público para escassear as aparições ao vivo.

Madonna arrebatou público nas areias de Copacabana com espetáculo irretocável que abraça o sagrado.
A trend-setter e o megashow: Madonna continua usando a moda para refinar sua potência. (Foto: Marcos Hermes/Divulgação)

Cria da primeira fornada da MTV, que alavancou carreiras e se fez à custa destas, Madonna domina a imagem. Além de servir ao propósito do roteiro de viabilizar trocas de figurino e caracterização, o conjunto de vídeos pré-gravados intercalados com tomadas projetadas ao vivo e somadas às cenas de arquivo, em edição frenética picotada, abraça todos os públicos, da Geração X que a consagrou às faixas etárias telêmicas, Millennial e GenZer, que se fizeram no virtual e não só sobrevivem das inúmeras telas de devices abertos simultaneamente como têm fascínio por qualquer coisa que venha dos anos 1980, berço de Madonna.

Madonna arrebatou público nas areias de Copacabana com espetáculo irretocável que abraça o sagrado.
Desfile de estilos: quase como um carnaval, cariocas e turistas se entregaram à folia fora de época para trasnformar o show de Madonna em um verdadeiro espetáculo. (Foto: Marcos Hermes/Divulgação)

Essa estratégia de elaborar o espetáculo de forma a arrebatar um público multigeracional faz parte do objetivo de perpetuar através do tempo sua imagem sacralizada. Não é à toa que a projeção que simula tela chinesa, com Madonna em look New Wave contracenando com Michael Jackson num remix de Like a Virgin com Billie Jean”, sintetiza a dimensão do diabo que a performer faz na ribalta. Sabendo que é mais fácil ficar para a posteridade como ícone que morreu jovem, com a imagem cristalizada na flor da idade – James Dean, Marilyn, Cazuza, Freddie Mercury, Jonh Lennon, Carmen Miranda, Prince, George Michael, Amy Winehouse estão aí para provar isso, ao lado do autor de Thriller–, Madonna luta contra o tempo. Se, por um lado, se converteu no baluarte contra um machismo tardio que insiste em demonizar a mulher madura que brada pela sexualidade e expandiu seu discurso na direção do antietarismo, se alinhando a um movimento mundial irreversível que se ampara no envelhecimento da população global e deve fazer caírem por terra os paradigmas da busca pela eterna juventude forjada no pós-2ª Guerra Mundial, por outro lado a cantora sabe que, por permanecer na ativa, precisa continuar a gestar relevância para não se tornar relíquia confinada ao Madame Tussaud. Por ser uma parabólica que sempre captou tendências, demonstra usar “The Celebtation Tour” como pedra fundamental dos próximos anos.     

Os dois maiores ícones do showbizz oitentista se reencontraram no telão da “The Celebration Tour”. (Foto: Reprodução)

Para realizar essa façanha, Madonna lança mão de uma poderosa ferramenta: a moda. Como no passado, quando foi capaz de se apropriar dela para firmar seu status quo, lançando nomes então desconhecidos das massas, tipo Dolce Gabbana, ou turbinando sucessos maximalistas dos eighties na boca dos minimalistas nineties, como Jean Paul Gaultier, a loura disparou seu arsenal: além de contar com a ajudinha providencial de D&G, Versace e do próprio JPG, que desenhou seu look nas cores da bandeira brasuca a partir de um desenho de um fã brasileiro, Rafael Arena, ela abusa de referências no seu visual e no do seu numeroso elenco. Algumas são óbvias, como Thierry Mugler, Balmain, Vivienne Westwood e Balenciaga. Outras nem tanto. É possível enxergar traços de Pam Hogg – escocesa que já apimentou o line-up da London Fashion Week e foi responsável por figurinos da cena musical underground para artistasdo naipe de Siouxsie and The Banshees, The Cult , Paula Yates e Debby Harry –, da designer francesa Chantal Thomass – quintessência da lingerie transformada em outerwear –, da mistureba street da russa Jahnkoy e do estilo cyberpunk distópico da Demobaza, que desfila na Semana de Moda de Los Angeles

Supermercado de estilos no show de Madonna nas areias de Copa: da esquerda para a direita, o cowboycore alinhado com o último desfile da Vuitton, a versão brasileiríssima de Jean Paul Gaultier e o novo grunge. (Fotos: Divulgação)

Partindo do princípio que sua fan base atravessa décadas, ela mistura arranjos de um hitão com outro, arrisca até no sub aproveitamento de alguns standards contando com o apelo afetivo de suas canções, às vezes apoiada somente nos arranjos clássicos dos refrões, às vezes modernizando esses nunca ao ponto de deixá-los irreconhecíveis. Não se trata de brincadeira, Madonna não é leviana. Na verdade, é compenetradíssima e leva o business a sério.

Madonna arrebatou público nas areias de Copacabana com espetáculo irretocável que abraça o sagrado.
Caleidoscópio: no turbilhão de referências pop de Madonna, ganharam espaço até as lisérgicas coreografias de mandala inspiradas em Busby Berkeley, lendário diretor de movimento na Hollywood da Era de Ouro. (Foto: Marcos Hermes/Divulgação)

Por isso, faz esses jogos de representação sonoros e também visuais. Em Like a Prayer – um escândalo em 1988 graças ao controverso clipe com o Jesus negro –, o carrossel com bailarinos pendurados remete à estrutura modular do vídeo de Human Nature”, que segue em sintonia com a procissão de figuras religiosas portando turíbulos com incenso, como em “The Blondie Ambition”. Na hora de Vogue”, ela usa o penteado de “Justify My Love”, contracenando com bailarino que veste o icônico figurino original do show de 1990. Por falar em “Vogue”, o corpulento Bob The Drag, que atua como mestre e cerimônia, encarna na abertura do espetáculo a cortesã em estilo século 18 que Madonna vestiu em histórica apresentação no VMA e também em “The Girlie Show”. Já em Erotica”, o bailarino em close-up no telão faz o movimento de mãos com unhas enormes de outro dançarino, o do videoclipe de “Justify My Love”.  Por sua vez, no número de Hung Up”, o corpo de baile reproduz com exatidão a irresistível coreografia da música de trabalho do lançamento de Confessions on a Dance Floor”, ao passo que a venda nos olhos de “Erotica” comparece em outras ocasiões. E, como se não bastasse, o apoteótico número final é praticamente um desfile de stylings mais emblemáticos da artista nesses 40 anos.   

Madonna arrebatou público nas areias de Copacabana com espetáculo irretocável que abraça o sagrado.
Frufru rococó: condutora do espetáculo, Bob The Drag Queen – ou Caldwell Tidicue, vencedora da 8ª temporada de RuPaul’s Drag Race – abriu o show de Madonna incorporando a Maria Antonieta chiclete. (Foto: Marcos Hermes/Divulgação)

Sem dúvida é muito bem-vinda a massagem de ego nos cariocas e brasileiros em meio à potência de discursos viscerais, que devem ecoar por décadas. Afinal Madonna nunca negou sua verve política. Assim,  há quem celebre a reintrodução a camisa com as cores do Brasil fora do contexto bolsonarista graças às intervenções de Madonna em Copacabana. Mas, se ater ao corolário de praxe que astros e estrelas de fora se rendem quando vem fazer show por aqui é perda de tempo, deixando pouco espaço para se concentrar naquilo que importa. Melhor se lambuzar com o cardápio de pão & circo recheado de provocação e fina ironia que esse disruptivo furacão nascido no Michigan proporciona que com as gracinhas fáceis que rendem o tsunami de postagens nas redes e alimentam as notas do jornalismo factual, ainda que tenham sido deliciosas as mediações da produção local – presença de Anitta, participação entusiasmada de Pablo Vittar e o pancadão das crianças ritmistas de escolas de samba capitaneadas por Pretinho da Serrinha em Music”, além das projeções de gente fina, elegante e sincera como Cazuza e Pelé no telão. Não se iluda. Madonna é muito mais que isso.

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