Uma das maneiras mais sinceras de comunicar-se na arte é, sem dúvidas, aquela que coloca a beleza no mesmo patamar da verdade. É certo que os processos criativos que envolvem a pintura, a escultura, a fotografia e demais artes plásticas seduzem, deixando mais fácil romantizar o ofício, mesmo que a realidade do artista muitas vezes seja uma verdadeira temporada no inferno de Rimbaud. Porém, destacar a arte que brota da adversidade já virou missão do time curatorial da ArtRio, feira de arte que terminou no último domingo (29), na Marina da Glória, Rio de Janeiro, mostrando que as dificuldades existentes não engolem o artista consciente da potência do trabalho feito.
Recebendo um público de 60 mil pessoas, o evento surpreendeu os visitantes com a nova cara do Pavilhão MAR, agora com mais espaço para as galerias e também para a agenda de conversas e encontros. Aquele clássico diálogo entre a palavra e a imagem, sabe como? Foi nesse mesmo pavilhão que o ÁS se deparou com o espaço da Carmo Johnson Projects, galeria com base em São Paulo, que fez sua estreia no evento já causando impacto.

Focada em realizar projetos que brotam de lacunas existentes na dinâmica sócio-cultural da arte contemporânea, a galeria levou as telas surrealistas do coletivo MAHKU, as cerâmicas fantásticas Kássia Borges e os grafismos inebriantes de Kaya Agari para o evento, sobrepondo o cenário que limita o acesso à arte criada por eles. O MAHKU pinta cantos Huni Meka e os converte em imagens. Esses cantos, por sua vez, são caminhos que colocam os participantes dos rituais com ayahuasca em relação com a alteridade. O MAHKU pinta, portanto, uma tecnologia de relação. Telas que são “portais” em direção ao mundo não-indígena.

“São artistas que não são do eixo Rio-São Paulo, são todos do Acre. Por isso promovemos esses diálogos e impulsionamos esses artistas a acessarem o mercado das artes. Esse acesso a novos espaços garante o apelo comercial, já que são as vendas das obras viabiliza a compra das terras perdidas durante o segundo ciclo da borracha experienciado no Acre, mas garante a perpetuação da cultura desse povo, que vivenciava certa aculturação de seus costumes.”, conta Carmo Johnson, nome que encabeça o projeto, que também conta com nomes como Alberto Pitta, Bruno Novelli, Talita Zaragoza e Julia Angulo.

“Foi Ibã Huni Kuin que deu start ao movimento, justamente por ser seringueiro e ter participado desse movimento de exploração da natureza, que não preservava as terras indígenas. Ele enxergou esse afastamento do seu povo com a própria cultura e passou a registrar por áudio e vídeo os cantos ancestrais através dos seus avós, iniciando essa transformação de carreira e de vida.”, conta Luan Lima Mesquita, representante da Carmo Johnson Projects na ArtRio.

Para alinharmos a potência da relação entre Carmo Johnson e os artistas, as pinceladas deles estamparam a fachada do Pavilhão Central da 60ª edição da Bienal de Veneza (Stranieri Ovunque – Foreigners Everywhere), na Itália. Lá o MAHKU pintou a história de Kapewë Pukeni (o mito do jacaré-ponte), que descreve a passagem entre os continentes asiático e americano pelo Estreito de Bering. Para atravessá-lo, os humanos encontraram um jacaré que se ofereceu para carregá-los em suas costas em troca de comida. Viagem siderada, carregada de cores, formas e, principalmente, de conhecimentos ancestrais.


Mesmo a atriz Marieta Severo, cujo trabalho é pautado pela união quase que irrestrita entre verbo e imagem, não resistiu ao universo da arte ritmada dos artistas: “Eu acho que essa é a partitura mais linda que eu já vi. Na verdade, eu acho que não há partitura mais bonita do que essa!”, revela enquanto contempla minunciosamente cada detalhe traçado pelo coletivo.
“É incrível imaginar que os sons provoquem essas imagens. A forma que eles dão outro aspecto aos cantos sagrados ancestrais é muito especial. Sem mencionar a plasticidade única e impressionante de cada obra. É tudo lindo e muito tocante, principalmente tomando conhecimento da história por trás desse processo de criação. Muito bonito ver a feira recebendo eles de uma forma tão justa.”, finaliza.



*Por Andrey Costa
Foto destaque: Andrey Costa para Ás na Manga
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