No 15 de agosto passado, Dia Nacional do Cinema Mexicano, os meios de comunicação locais anunciaram com especial estardalhaço o lançamento pela empresa norte-americana de brinquedos Mattel de mais uma reencarnação em vinil (polivil cloreto) de uma diva da época de ouro do cinema mundial – a boneca da atriz e cantora Maria Félix (1914-2002), o maior nome feminino durante as décadas de 1940 e 1950 do cinema mexicano que – nesse período – dominava a indústria cinematográfica em língua espanhola na América Latina. Para garantir essa liderança, seguida de longe pela indústria argentina, o México dispunha de vastos e modernos estúdios, técnicos de qualidade (muitos deles treinados ali ao lado, em Hollywood) e, principalmente, de uma constelação de astros e estrelas de projeção internacional como Dolores Del Rio, Lupe Velez, Pedro Almendáriz e Cantinflas.

Mas a importância de Maria Félix para o imaginário cinematográfico e social dos latino-americanos transcendeu e transcende até hoje, em muito, a dos seus colegas superestelares, justificando não só esse investimento da Mattel, duas décadas depois do falecimento da atriz aos 88 anos de idade, como também estas palavras do prêmio Nobel de Literatura, o seu compatriota Octavio Paz: “María Félix nació dos veces: sus padres la engendraron y luego, ella se inventó a si misma. Nació como un relámpago que rasga las sombras“.

Na mesma semana em que o filme “Barbie” (2023), de Greta Gerwig, com Margot Robbie, rompia a barreira de US$ 1,2 bilhão arrecado nas bilheterias dos cinemas do mundo inteiro, a Mattel espertamente lançou a sua boneca “María Félix” na Cidade do México, anunciada como uma homenagem à maior estrela da Era de Ouro do cinema abaixo do Texas. Tudo isso ao preço de 87 Dólares (cerca 430 Reais ou 1.500 Pesos mexicanos) (Foto: Reprodução)

Mas que tipo de mulher Maria Félix representava nas telas? Qual a natureza da conexão que ela estabelecia entre si mesma, seus personagens cinematográficos e “aquelas pessoas maravilhosas lá embaixo, no escuro do cinema”, como diria Norma Desmond/Gloria Swanson no auge da loucura na cena final do clássico “Crepúsculo dos Deuses“? Pois bem, Maria Félix “rasgava as sombras como um relâmpago” porque foi a rainha das mundanas, das destruidoras de lares, das aventureiras, das decaídas, das vamps latinas que fertilizaram os sonhos e a imaginação das massas durante as décadas em que o México e a América Latina se urbanizavam aceleradamente e as novas condições de vida impostas pelas cidades passaram a ser representadas nas telas não só como signos da modernidade mas também como experiências confusas e perigosas através de uma safra dos mais inacreditáveis dramalhões da história do cinema. Esses filmes foram responsáveis, em grande parte, pela fortuna e glória da cinematografia mexicana até a década de 1970, quando essa grande indústria foi finalmente vencida pela televisão e pelo monopólio hollywoodiano.

Para representar Maria Félix, a Mattel optou pela estilização do glamour over que a própria estrela cultivou ao longo dos seus 47 filmes e da sua vida pessoal em que não ocultava a sua volúpia por joias, peles e modelos exclusivos dos grandes estilistas (Foto: Reprodução)

O melodrama policial “A deusa ajoelhada” (1947), de Roberto Gavaldón, é um dos mais curiosos exemplos do kitsch cinematográfico mexicano estrelado pela nossa disruptiva diva, a começar pela trama: Raquel (Maria Félix), depois de ter induzido seu amante, o milionário Antonio (Arturo de Córdova) a pensar que fora ele a causa da morte da sua própria mulher, obriga-o a se casar com ela, abrindo caminho para mais uma sucessão de perversidades e desgraças. Ainda assim, sobram-lhe descaramento e cinismo para dançar uma rumba. No México, o filme provocou um enorme escândalo, dividindo a audiência entre aqueles que eram “pró” ou “contra” Raquel/Maria Félix, polêmica que arrastou ainda mais gente para os cinemas e para a fogueira dos debates que envolviam novas percepções sobre moralidade, casamento, sexo e o potencial reprimido das mulheres, temas pouco discutidos publicamente pelas massas até aquele momento no México.

Maria Félix e a maioria das suas personagens na tela representaram mulheres fortes forjadas pelo sofrimento e cujo objetivo num mundo dominado pelos homens era o poder, não o amor, como em “A deusa ajoelhada” (1947), de Roberto Gavaldón. No atual posicionamento de mercado da Mattel que moderniza e empodera as suas bonecas nos ditames da diversidade e da inclusão, a apropriação de Maria Félix cai como uma luva (Foto: Reprodução)

Aliás, os títulos dos grandes sucessos de Maria Félix revelam muito sobre a sua própria personalidade indômita que acabou transbordando para a tela: “La mujer sin alma” (1943), “La devoradora” (1946), “Una mujer cualquiera” (1950), ou “Messalina” (1951), esta a primeira superprodução italiana desde o final da Segunda Guerra. Maria Félix também ficou mundialmente conhecida por codinomes que traduzem à perfeição dois fatores – beleza e riqueza – que quando perigosamente combinados numa só mulher, garantem até hoje o sucesso das mais valiosas vilãs do cinema ou das telenovelas: “Maria Bonita” e “La Doña”, este último em referência ao filme “Doña Bárbara“, tremendo sucesso de 1943 em que cristalizou sua imagem de mulher bela e má.

Bem, depois do vulcão Maria Félix, bem que poderemos esperar aqui no Brasil, quinto maior mercado consumidor de bonecas da Martell, por uma nova Barbie latino-americana: a “Brazilian bombshell”, a Pequena Notável, a Rainha do Technicolor, Carmen Miranda!

O título deste melodrama clássico dirigido por Tito Davison entregou, em 1950, tudo o que a legião de fãs de Maria Félix podia esperar da “reina del cine mexicano”: a trajetória de uma pecadora da queda à redenção, após uma passagem pelos nove círculos do inferno. O público inundou os cinemas com lágrimas e Mária Félix reforçou ainda mais o título que já a acompanhava e continuaria a consagrá-la na posteridade – “La Doña” (Foto: Reprodução)

Bela e predadora

Se tivéssemos que sintetizar a persona cinematográfica de Mária Félix em apenas 1 minuto, a escolha recairia sobre “La devoradora” (1946), de Fernando de Fuentes, film noir com inconfundível sabor mexicano em que a diva oferece uma contrafação melodramática das frias e pérfidas manipuladoras criadas por Mary Astor em “Relíquia Macabra” (1941) e Barbara Stanwyck em “Pacto de Sangue” (1944). Assista aos próximos 73 segundos sem constrangimento!

Muito antes da boneca americana, a idolatria dos mexicanos

Em 2021, dois anos antes do lançamento da Mattel, o jovem artista plástico mexicano Servando Hernández já chamara a atenção da mídia ao recriar uma soberba boneca de Maria Félix usando como base uma Barbie genérica. Acompanhe o seu processo de confecção nesta matéria da televisão mexicana da época.

Mattel em Hollywood

As investidas da boneca Barbie no Olimpo Cinematográfico vêm de longa data e já deixaram como legado dezenas de coleções e séries  na mitologia de Hollywood, suas estrelas, filmes e cerimônias. Recorde algumas delas:

Uma das melhores abordagens da Barbie para Marilyn Monroe no conjunto das “Barbie Hollywood Movie Star Collection” não foi modelada sobre um dos seus personagens da tela, mas na sua fatídica participação na comemoração dos 45 anos do Presidente Kennedy, no Madison Square Garden, em Nova York, em 19 de maio de 1962, envelopada a vácuo no célebre longo criado por Jean Louis rebordado com 2.500 strass, o que enfureceu a direção da 20th Century Fox e motivou a sua demissão do estúdio 20 dias depois (Foto: Reprodução)
Uma das mais amadas estrelas da Meca do Cinema, mesmo entre as novas gerações, Audrey Hepburn mereceu vários looks da Mattel como o de “Minha querida lady” (1964), figurino de Cecil Beaton (E); “A princesa e o plebeu” (1953), figurino de Edith Head; e “Sabrina” (1954), figurino de Hubert de Givenchy (Foto: Reprodução)
Enquanto Marilyn Monroe se rebelava em Hollywood, a Fox enfrentava ao mesmo tempo outro mega problema em Roma: as caóticas e custosas filmagens de “Cleópatra” (1963) cujo lendário traje de gala em ouro desenhado por Irene Sharaff foi envergado pela estrelíssima Elizabeth Taylor (Foto: Reprodução)

*Por Flavio Di Cola

Foto destaque: Reprodução

Deixe seu comentário

Seu email não será publicado.