O lento, embora decidido, movimento de todos os setores da indústria audiovisual global rumo à inclusão de temas, personagens e vozes historicamente silenciadas ou estereotipadas foi colocado em pauta no painel “Inclusive storytelling: depth over surface” [Narrativas inclusivas: a profundidade sobre a superfície, em tradução livre] que lotou a sala 6 do Cinema Barberini, integrante do complexo onde se desenrola até 13 de outubro o MIA-Mercato Internazionale Audiovisivo, na capital italiana. O evento teve a preocupação de reunir profissionais atuantes nas diversas etapas da cadeia criativa de grandes produtoras ou comissionadoras mundiais de conteúdo, como a britânica Channel 4 e a francesa Tf1/Histoire, não se restringindo apenas à visão dos diretores como é mais comum nos debates sobre os desafios, os percalços e os rumos desse campo de produtos audiovisuais concebidos para diversificar o olhar sobre questões passadas e futuras fundamentais para a compreensão da vida de todos nós em todas as partes do mundo.

Em Roma, o MIA Market trouxe painel com especialistas sobre a questão da inclusão nas narrativas audiovisuais.
Obra-prima do barroco italiano, o Palazzo Barberini, no centro de Roma, tornou-se o centro de convergência dos negócios e dos debates sobre o futuro do mercado audiovisual europeu durante o MIA Market, entre 9 e 13 de outubro (Foto: Flávio Di Cola para Ás na Manga)

Um quinteto multiétnico, multilinguístico e multitarefa formado por Krishan Arora, consultor de conteúdo de origem indiana na SBS (Special Broadcasting System) e atuante na Austrália; a francesa Elisabeth Hagsteadt, chefe de conteúdo e difusão da Tf1/Histoire, baseada em Paris; o italiano Lucio Mollica, produtor e diretor de documentários da LOOKSfilm, de Berlim; a britânica de origem indiana Shaminder Nahal, editora-chefe especialista em audiovisual factual da Channel 4; e a holandesa Barbara Truyen, estrategista e editora de co-produções internacionais para a VPRO, sediada em Amsterdã, todos eles foram unânimes em reafirmar que no ecossistema audiovisual global as abordagens ainda hegemônicas do homem branco heterossexual de meia-idade competem cada vez mais com as histórias ainda não contadas, ocultas ou esquecidas, inspiradas ou colhidas nas mais diversas partes do planeta com a colaboração ativa dos seus protagonistas anônimos ou locais, e acuradamente investigadas em fontes não contagiadas pelas distorções das “narrativas oficiais”.

Em Roma, o MIA Market trouxe painel com especialistas sobre a questão da inclusão nas narrativas audiovisuais.
O concorrido painel “Narrativas inclusivas: a profundidade sobre a superfície”, ocorrido no segundo dia do MIA Market, em Roma, reuniu cinco especialistas em “inclusive storytelling”, entre eles, Krishan Arora, consultor de conteúdo de origem indiana na SBS, da Austrália; a holandesa Barbara Truyen, editora estrategista de co-produções internacionais na VPRO, de Amsterdã; e a britânica de origem indiana Shaminder Nahal, editora-chefe especialista em audiovisual factual da Channel 4 (Foto: Flávio Di Cola para Ás na Manga)
Completando o quinteto de executivos e criadores de obras que discutiram os rumos das produções audiovisuais factuais com temáticas e abordagens inclusivas no MIA, o italiano Lucio Mollica, produtor e diretor de documentários da LOOKSfilm, sediada em Berlim; e a francesa Elisabeth Hagsteadt, chefe de conteúdo e difusão da estatal Tf1/Histoire, baseada em Paris (Foto: Flávio Di Cola)

Segundo os depoimentos dos cinco especialistas, essa promissora demanda de proporções mundiais, se por um lado é positiva ao refletir a fome das audiências por histórias que lhes digam diretamente respeito, sem véus e filtros ideologicamente alinhados, por outro, impõe aos pesquisadores, roteiristas, diretores, editores e produtores uma nova e impiedosa autocrítica em relação aos produtos que estão entregando sob o rótulo de “inclusivo”.

Este termo, tão controverso e muitas vezes apropriado com ligeireza e oportunismo na verdade exige dos próprios agentes atuantes nesse campo de atuação não só uma constante vigilância sobre a transparência e justeza dos seus propósitos como também o compromisso de treinar e – principalmente – de empregar nas suas equipes jovens profissionais com perfis marcados pela diversidade. Esta seria, de fato, a postura verdadeiramente inclusiva e transformadora.

Em Roma, o MIA Market trouxe painel com especialistas sobre a questão da inclusão nas narrativas audiovisuais.
Um dos mais esperados programas da Channel 4 neste fim de ano é o chocante documentário “Britain’s Human Zoos” conduzido pela pesquisadora somali-britânica Nadifa Mohamed que revive para o público de hoje a história deliberadamente “esquecida” dos espetáculos muito populares na era vitoriana e até no século 20 de “zoológicos humanos”, em que indivíduos ou grupos humanos inteiros eram importados de “lugares exóticos ” – África e Ásia, a partir de uma visão eurocêntrica – e exibidos como diversões em espaços especialmente encenados (Imagem: Reprodução)

Durante o encontro, o público presente teve a oportunidade de conferir por meio de curtos clipes algumas obras já lançadas ou ainda inéditas da lavra das produtoras em que atuam os profissionais convidados, em permanente sintonia com as histórias – as boas histórias, todos eles insistem em enfatizar – que podem nos ajudar a entender e a conviver no mundo.

Parece inacreditável, mas os “zoológicos humanos” ainda eram considerados atrações “naturais” em pleno século 20 e – pasmem ! – no âmbito da Feira Universal de 1958, em Bruxelas, como ilustra esse flagrante incluído no documentário “Britain’s Human Zoos” de Nadifa Mohamed, comissionado pela Channel 4 e apresentado no painel por Shaminder Nahal (Imagem: Reprodução)

Confira abaixo dois vídeos apresentados na palestra e que ilustram o tema do painel (Reprodução):

MIA Market: Chefe de conteúdo e difusão da Tf1/Histoire, Elisabeth Hagsteadt trouxe para o encontro o trabalho da documentarista e apresentadora de TV francesa assumidamente lésbica Marie Labory que neste ano dirigiu e roteirizou com Florence d’Azémar a série documental “Lesbiennes, quelle histoire?” baseada na sua história pessoal e na de lésbicas famosas ou não ao longo do século 20. (Fonte: YouTube)
MIA Market: Consultor de conteúdo de origem indiana na australiana SBS (Special Broadcasting System), Krishan Arora ilustrou a sua participação com um clipe da série documental semanal “The first inventors” que aborda como há 65.000 anos os povos originários da Austrália vivem e prosperam até hoje graças ao emprego de técnicas inovadoras em diversos campos da vida, como o relacionamento com o ecossistema, a previsão do tempo ou a exploração dos recursos naturais, a ponto de eles representarem o grupo humano mais antigo atualmente sobre o nosso planeta. Assista a trechos da série e da entrevista de Larissa Behrendt, escritora, ativista dos direitos dos povos originários dos quais descende por parte de pai, e diretora do primeiro capítulo da série. (Fonte: YouTube)

* Por Flávio Di Cola, diretamente de Roma

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