* Por Alexandre Schnabl
“A moda é a primeira das artes a se manifestar contra esse momento sombrio.” Essa declaração do diretor criativo do São Paulo Fashion Week, Paulo Borges, dada com exclusividade ao ÁS, dá a dimensão do que foi esta edição do evento: uma temporada política, polêmica, que transcende a roupa, atingindo a performance num patamar que o teatro, música e as artes plásticas ocuparam durante os anos de chumbo da ditadura. Helio Oiticica dreams, Glauber feelings, Vandré flowers. Os desfiles de Ronaldo Fraga, João Pimenta, Célio Dias, da LED, Cavalera e até Amir Slama, mais do que apresentar boas coleções, foram históricos. Viraram emblema tanto de libelos de resistência à onda conservadora que anda tomando conta do país (e de parte do mundo) quanto de afirmação do tsunami planetário que, na contrapartida das marolas reacionárias, catapulta questões como a diversidade e a pluralidade num patamar irreversível.

A mordaça e a tortura: na passarela de João Pimenta, na SPFW N47, modelo avança em look que alude à tentativa de veridicção, de reescrever a história dos anos de terror da ditadura sugerida pelo atual governo do Brasil (Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite / Divulgação)
No nível político, se a panfletagem não é inédita na moda, agora pode estar atingindo seu apogeu. O alvo na catwalk foi quase sempre o atual governo, seja em virtude de postura excludente, do ataque às minorias, do incentivo à violência ou das iniciativas de cerceamento da liberdade. Mas, nesse oceano de protestos, também vieram à superfície naturalmente borbulhas de questões profundas como a democracia de corpos, com modelos plus size, transgênero e de múltiplas etnias irrompendo em cardumes na passarela. A Fenda do Biquíni de Bob Esponja virou palanque, e ai do plâncton se reclamar.

Protesto durante e após o São Paulo Fashion Week: Ronaldo Fraga usou prints de Marielle na nova coleção, em vestidos chemise e até nas gáspeas de vans. A família e a viúva da vereadora carioca reclamaram. Acharam pesado, afirmaram que não pretendem que ela se torne “um Che Guevara”. O estilista tratou logo de fazer mea culpla: voltou atrás, se desculpou, disse que realmente ainda não há distanciamento histórico para causar mal-estar, deixando claro que são peças-conceito que não irão da passarela para as araras (Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite / Divulgação)
Hello, Oliviero Toscani. Suas chocantes campanhas plenas de crítica social para a Benetton nos anos 1980/1990 renderam frutos. Assim como as irreverentes imagens camp/kistch de David LaChapelle que nocauteavam a sociedade e seus hábitos de consumo, impregnadas de ironia technicolor, para uma Diesel nem tão mainstream ainda, quando era programinha cult o rolezinho na megastore de Manhattan defronte ao Bloomingdale’s. Quem diria, um dia deixariam de ser propaganda sensacionalista de grifes difusion para se tornarem bandeira apartidária dos “sem-direitos” invadindo a passarela, sem resistência. Ao que tudo indica, até as imagens repletas de teor candy erotic de Pierre et Gilles não se resumem mais ao basfond de Jean Paul Gaultier ou de novos designers como Walerio Araújo, não é, Amir? Fetish, fetish, poderia cantar Katy Perry, pervertendo títulos de hits, sem Gretchen.

A polêmica propaganda da Benetton que mostrava o suplício de um soropositivo retratado como Criso foi escândalo na virada dos noventa, numa época em que ser portador do HIV era decreto de morte. Essa e tantas ouras campanhas criadas por Oliviero Toscani imprimiram dimensão política à moda. De quebra, renderam milhões à grife italiana (Foto: Reprodução)

Duas campanhas da Diesel criadas pelo diretor de arte e fotógrafo David LaChapelle em 1995: da irônica e feérica crítica à violência urbana… (Foto: Reprodução)

… à homenagem ao fotógrafo francês Robert Doisneau na fotografia que transporta seu registro da celebração do fim da 2ª Guerra para o auge do novo gay power, durante a explosão das raves e do techno (Foto: Reprodução)
Nesse badalo conga la conga, o supermercado de biotipos gritou. Além de criaturas cheinhas, cheias e cheionas desfilando com orgulho, teve muita modelo nascida homem, sem precisar bater no peito, dizendo: “Je suis la femme”. Sobrou piripiri, faltou Amapô. E agora, o pomo-de-adão não entrega mais. “Nunca uma edição do evento foi tão inclusiva, de forma natural, sem apologia”, observa Paulo Borges. “Vi modelos desfilando por todas as grifes, establishment ou alternativas, os quais tive dificuldade de identificar se eram homens, mulheres, qual o sexo. Binário, não binário, trans, tudo foi visto. Eles compareceram nos castings espontaneamente, sem alarde. Isso é mudança de paradigma”, completa o diretor do evento, finalizando: “Muitos negros na passarela, e negros de vários tipos”, afirma, se referindo à variedade de pantones cor de pele.

Xô, supermodels! A diversidade de tipos imperou no desfile da Cacete Company, que optou por um casting fora do padrão clássico de uma semana de moda (Fotos: Marcelo Soubhia/Fotosite / Divulgação)
Direto da Pequena África – nome dado à região da Praça Onze, Rio, antiga concentração de negros que foi o berço do samba –, a mama Tia Ciata ficaria orgulhosa: este SPFW também vai ficar marcado pela presença da negra Amira Pinheiro como modelo-destaque. Recordista de fashion shows, quase sempre abrindo ou fechando a fila, a agenciada da Way que já faz sucesso nas semanas internacionais foge do padrãozinho “Naomi” mais aceito. Não é Halle Berry, não é Taís Araújo, não é Beyoncé, não é Diana Ross. Não parece nem um pouco com Iman e passa ao largo de Beverly Johnson. Nada de Bethy Lagardère. É raiz. Está mais para Lupita ou Alek Wek. Masai Mara é mesmo mara!
A variedade de physiques du rôle na semana de moda foi significativa, indo na aba, quando se considera que a crise ainda grita: havia poucas tops models, cujos cachês pululam. Além de Amira, uma Renata Kuerten e seu corpaço endiabrado aqui e ali, Mariane Calazan, Carol Ribeiro, Barbara Cavazotti e Flavia Lucini idem, uma Isabel Hickmann com picumã à la garçonne, e as veteranas Talytha Pugliesi, Marina Dias e Viviane Orth no Lino porque, se elas não estiverem, não é Lino.

Barbara Cavazotti foi uma das tops que dividiram o estrelato com celebs fora do padrão “Barbie” no fashion show de Amir Slama na SPFW N47 (Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite / Divulgação)
Mas, política de corpos e a variedade de peles/cabelos/narinas/shapes/bilaus à parte, essa edição do SPFW foi coreto de praça. Bom, foi nos anos 1960/70 que espetáculos como o show “Opinião” (Teatro de Arena, Rio, 1964) e a peça “Calabar” (Rio, 1973) – censurada, só entrando em cartaz seis anos depois, quando o governo militar já havia amolecido suas rédeas – procuraram se opor ao regime ditatorial de então, virando símbolos de resistência. Mais que retratos do seu tempo, se tornaram registro documental de uma era. Mantendo as devidas proporções, é possível que futuramente, quando o distanciamento histórico permitir, a semana de moda encerrada no último final de semana seja uma das referências desse momento político, extrapolando seu potencial de plataforma de lançamento de tendências para adquirir outras significações. O tempo dirá.

Prece pelo Brasil: Ronaldo Fraga hinou na sua emocionante apresentação nesta edição do SPFW. “Queremos o país que nos dá orgulho.Não podemos nos calar. Não nos calarão”, diria o mineiro mais tarde, no backstage e na sua conta de instagram (Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite / Divulgação)
O ápice foi o desfile de Ronaldo Fraga, que encerrou a noite de sexta (26/4) com direito a corações apertados, lágrimas no cantos dos olhos. Não é de hoje que o designer mineiro e sua fiel escudeira/esposa/comparsa Ivana Neves emocionam o público. Nos últimos anos, o estilista conseguiu encontrar uma interseção entre o objetivo de apresentar ótimas coleções (no final, o motivo para a realização de um desfile) e o lirismo que se pretende o palco. Não é fácil. No teatro, tudo parte de um texto a ser encenado. Numa ópera, além do cenário, luz e o gogó dos cantores, existe um enredo pleno de Toscas, Aídas. Carmens, Violetas. No teatro musical e no balé clássico de repertório, idem. E na dança contemporânea é possível enveredar pelo estilo de companhias como as de Pina Bausch, Nederlands Dans Theater, de Jirí Kylián, ou de Fábio de Mello, nos seus tempos de Balé Contemporâneo do Rio de Janeiro, nos anos 1990, que mesclam dança e encenação; ou pelo caráter investigativo, no qual se questiona, através do corpo, a sociedade, o comportamento humano, o diabo a quatro. É o caso de grupos como Deborah Colker e O Corpo. Em todas essas expressões, a roupa – o figurino – nunca é o holofote central, mas componente de ilustração, veiculo para significações. Não é o caso de um desfile, no qual o protagonismo reside nos looks e o resto da encenação é moldura.

Carta de Ronaldo Fraga para Candido Portinari: manifesto foi distribuído pelo estilista ao público durante o SPFW (Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite / Divulgação)
Ronaldo Fraga consegue fazer sua boa roupa aparecer, dizer, gritar, panfletar, discursar, ainda que o invólucro do show divida o leading role com ela. Quem é mais importante no desfile da label, a coleção ou a apresentação? Não sei. Merece estudo.

“Na boca, o borrão de quarta-feira de cinzas, que é o clima que tomou conta desse país”, explica o designer acerca da beleza criada por Marcos Costa para o SPFW. Por sua vez, o beauty artist dá a sua visão da beleza do desfile: “Político, Portinari sempre lançou luz sobre as mazelas brasileiras. Na época em que pintou os paineis [Guerra e Paz], a guerra foi simbolizada pela fome no Nordesve. Hoje, acreditamos que as questões ambientais, a violência contra as minorias e as fraturas sociais expostas seriam o seu norte” (Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite / Divulgação)
Na mesma levada, João Pimenta promoveu uma ode contra o que ele chama de “forças do atraso”. A figura de linguagem para representar essa ideia na coleção? O kintsugi, arte japa de consertar cerâmica quebrada com ouro, evidenciando as fissuras e trazendo a imperfeição como valor. Nas sobreposições,seu diálogo típico entre alfaiataria e street style, dessa vez um pouco mais sujo, nervoso, rabiscado, agressivo. Reflexo do momento? Certamente.
Na alegoria, modelos de cara amarrada calados por silvertapes vermelhas e sufocados por sacos plásticos nas suas cabeças avançavam frenéticos pela pista, numa postura antitortura. Nessa bate & volta performático e intenso, iam retirando essas vedações, se desvencilhando dessa censura. A moda não aceita ser calada. ÁS amou as peças e o acting.
Dentre a turma mais novata, Célio Diaz, da LED, permanece em mão única nessa sua quarta presença no SPFW, agora estreando no Projeto Estufa, plataforma de fomento a jovens talentos: seu papo reto pró-empoderamento LGBTQ+, que professa desde os tempos de Minas Trend. Para tanto, a novidade é a parceria com Thereza Nardelli, que criou os grafismos da coleção. Quem, amor? Você pode não conhecer a moça, mas já viu o trabalho: o desenho que ficou famoso na época da campanha eleitoral: o desenho “Ninguém larga a mão de ninguém“. Agora, prints de arame farpado cortado, corações bocudos com vaginas dentadas (quem encara?) e letterings com chamadas tipo “Meu mito sou eu” (num macacão) ou “Fora canalhas“.
No geral, a LED deu um tempinho (de leve) na cartela intensa e no colorblocking, mas manteve as brincadeiras com recortes nos brins, xadrezes, viscoses e veludos. Tudo mais seco, fechado, menos cheguei, sempre chegay. No detalhe, as cinturinhas clochard e as bolsas da collab com a curitibana Katsukazan.
Na passarela, duas presenças ilustres: Alice Caymmi cantando ao vivo, com aquele típico sorrisinho de canto de boca, cínico, sacana e malemolente; e, olha ele aí de novo (só dá ele!): Ronaldo Fraga na catwalk, empunhando o orgulho gay.

Alice Caymmi soltou o verbo no desfile da LED por Célio Dias, no SPFW N47 (Foto: Zé Takahashi/Fotosite / Divulgação)
Amir Slama veio de bem-bolado, no pique do dois em um: desfilou a coleção desenhada em parceria com a atriz Suzana Pires, à frente do Instituto Dona em Si, que fomenta a ampliação do protagonismo feminino no mercado de trabalho. Logo de cara, surgiu em cena um batalhão de mulheres possíveis, com corpos tão diversos quanto um atlas das espécies: magras, altas, esguias, secas, carnudas, rechonchudas, peitudas, bundudas, sem bunda, todas seguríssimas. Woman Power, Mulher-Maravilha, Capitã Marvel, amor! O público gritava, esperneava, sacudia, pipocava, ui!
Dentre elas, a própria Suzana, Johnny Luxo de peruquinha curta, a trans Carol Marra e Samantha Schmütz. Vai que cola. Era para ter vindo até Jojo Todynho. Mas a cantora perdeu o bonde das poderosas e chegou só para o final. Toda toddy toddy, aliás, toda toda. Já estava dado, portanto, o tom político. Vai dizer que, nessa seara do comportamento, diversidade de corpos e mais espaço mulher no trabalho não são engajamento?

No final do seu fashion show, no SPFW, Amir Slama adentrou a passarela devidamente sanduichado por a atriz, escritora e ativista Suzana Pires e a top e apresentadora Caroline Ribeiro. (Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite / Divulgação)
Amir Slama / SPFW N47 / verão 2020 (Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite / Divulgação)
Depois, puxadas por Carol Ribeiro, um naipe de bonitonas que incluiu Flavia Lucini e Renata Kuerten envergou a coleção que celebrou as três décadas de estrada de Amir, amor. Lufada 1970, tirinhas laterais, transparências, belos vestidos e saídas jet-setters, cabelos à la lionne desconstruídos, criados pelo Max Weber. Tipo Carmen Maryrink Veiga na ventania que sempre traz Mary Poppins. Foi tudo babado, ops, ventado.
No tema, referências da cultura tupi-guarani. ÁS amou os prints com as penas de pássaro e os da silhueta do indiozinho, meio TV Tupi, assim como os aviamentos em metal do mesmo curumim. Índio quer apito? Não, quer maiô! No adorno, as joias do Julio Okubo e os maxi colares de uma designer carioca que é bamba: Sheila Chor, que ÁS adora de carteirinha. Talento. Na plateia, do lado, a Priscila Nicory, da Magma, no Brás, que forneceu para a grife os PVS e vinis para as tiras das sandálias e alças dos maiôs.
Único senão: em meio aos bonitões que desfilaram as sungas, para que Gominho? Isso acrescenta o quê, Amir, rs? Para dar mídia? Mais? Ah, vai! Nem os dois influenciadores que vão casar, fazendo farofa na passarela. Ah, para! Tão inclusivo tudo, só não precisava freakar, moço! Da próxima vez, vou puxar sua orelha até você virar o Dumbo, viu?
Já a Cavalera voltou ao line-up após uma edições fora. Fechou o evento sábado à noite (27/4) mostrando aquilo que sabe fazer bem até de olhos fechados: apresentou uma ótima coleção street embalada por boa música num show impactante que tem algo a dizer. Valeu? Valeu! Na trilha, um coletivo de rappers que incluiu até os Racionais MC’s, se revezando durante a catwalk em improvisos com questionamentos de responsa. Show é pouco.
Só um porém: Rico Dalasam, que resolveu criticar o público por estar ali, após a morte do modelo Tales Cotta pouco antes. Desculpa, Rico, mas, se você não concordava, por que não devolveu o cachê, pediu desculpas à produção e foi embora? Ficou para aparecer? Conheço abutres mais sinceros. Assim, Rico vira mico…
Cavalera / SPFW N47 / verão 2020 (Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite / Divulgação)
Deixe seu comentário