Vulgar, alienada, exagerada, exibicionista, vazia, frívola, materialista… Insultos não faltam aos eighties, principalmente quando saem da boca das gerações que a partir do final dos anos 1960 achavam que a Era de Aquarius iria cobrir o mundo de “paz e amor” e as flores iriam entupir e calar os canhões da Guerra Fria. Mas bem antes de 1980, o “sonho” já tinha acabado: seus heróis ou tinham sido dizimados pelas drogas pesadas ou arranjado ótimos empregos no show bizz. A Era Disco explodia em toneladas de meias de lurex e sapatos-plataforma, enquanto o punk deixava os guetos da contracultura para virar “estilo”. Mas a culpa pelo enterro definitivo do “sonho” ficou mesmo com os anos 1980 que testemunharam o triunfo do “neoliberalismo” e a morte do “socialismo real” sem que ninguém derramasse uma gota de sangue por ele.
Todo esse preâmbulo é necessário porque a Mulher-Maravilha reaparece em 1984 justamente para pedir à Humanidade, em rede global de TV, que renuncie aos seus “desejos de consumo” e assim salvar o planeta da loucura e da destruição. Bem, é claro que ela consegue, pelo menos até “Mulher-Maravilha 1984” acabar. Hoje, infelizmente, sabemos que a sua cruzada anticonsumismo de 36 anos atrás não adiantou nada. Tomara que ela volte logo, antes que a Amazônia vire cinzas e num filme melhorzinho!

Difícil missão: no périplo da Warner Bros. para tornar o universo cinematográfico da DC Comics menos soturno, “Mulher-Maravilha 1984” acerta ao reproduzir a ambiência cromática dos anos 1980 (Fotos: Divulgação)
Mas, enquanto a Warner Bros. não agita o projeto da terceira parte de “Mulher-Maravilha”, vale a pena investigar o universo da moda e do estilo de toda uma época cujo ápice foi o biênio 1984-1985, e como ele foi recriado no filme de Patty Jenkins pela diretora de arte Aline Bonetto e pela figurinista Lindy Hemming. Vamos aproveitar o ensejo e tentar responder a algumas dúvidas que assombram as novas gerações. A primeira pergunta do nosso quiz não poderia ser outra: a moda dos anos 1980 foi assim tão horrenda e bizarra? Sim… e também deliciosamente divertida!

No caldeirão fashion de “Mulher-Maravilha 1984”, o tubinho preto de renda da Barbara Minerva (Kristen Wiig) e o terno-jaquetão de Maxwell Lord (Pedro Pascal) ganham mais destaque que a armadura de águia da heroína (Fotos: Divulgação)
AS OMBREIRAS ENORMES E AS CAPANGAS EXISTIRAM MESMO?
Hoje parece inacreditável, mas elas existiram e todo mundo adorava! Fruto degenerado da tendência de fazer colagens de estilos do passado, as ombreiras femininas e masculinas dos eighties foram uma releitura desvairada da estética dos filmes noirs da Hollywood dos anos 1940 que varreu a década de 1980. Já as capangas, herdadas dos anos 1970, receberam um banho de estilo e de materiais mais nobres nas décadas seguintes.

A figurinista Lindy Hemming teve que amenizar as dimensões das ombreiras de Gal Gadot em “Mulher-Maravilha 1984” para que o público não estourasse em gargalhadas, mas não poupou do ridículo a capanga de Chris Pine (Imagens: Divulgação)

Propaganda da câmera Kodak Pocket Instamatic 200 dos anos 1970: o problema da capanga foi ela ter passado de uma simples bolsa utilitária à categoria de adereço fashion a ponto de ser rebatizada como pochette (Imagem: Reprodução)

Na sequência da recepção oferecida por Maxwell Lord no Instituto Smithsonian, a figurinista Lindy Hemming conseguiu lidar muito bem com os exageros dos looks para as festas dos anos 1980 sem trair alguns paradigmas da moda do período. Apesar das ombreiras, do franzido das pregas e das mangas bufantes, Diana Prince passa neste modelito branco toda a dignidade, pureza e simplicidade dos ideais cultivados em Themyscira, sem renunciar um milímetro do seu sex appeal (Imagem: Divulgação)
A MAQUIAGEM NÃO ERA MUITO PESADA E COLORIDA?
Sim, mas com a assimilação pela cultura mainstream da cena underground das drag queens e dos artistas performáticos dos anos 1970 e 1980, o heavy make-up look popularizou-se como marca estilística dos ídolos pop e foi copiado por milhões de fãs.

A Rainha Pop do período foi indisputavelmente Madonna com seu visual de garota retrofuturista, mise-en-scène exagerada e canções new romantic (Imagem: Reprodução)

Por sua vez, Boy George foi o Rei da Androginia dos eighties. Seu excêntrico reinado à frente do grupo Culture Club foi marcado por escândalos e brigas. Segundo George, seu make-up inconfundível foi copiado diretamente da Elizabeth Taylor das capas de revistas de cinema dos anos 1950 (Imagem: Reprodução)

A atmosfera soturna da Mulher-Maravilha de 2017 não permitia uma exploração intensiva da franquia mais bem-sucedida do Universo DC no campo da moda e da beleza. Já “Mulher-Maravilha 1984”, pelo contrário, é um prato cheio para a indústria cosmética faturar . E a Revlon não perdeu tempo: lançou o seu kit de maquiagem Revlon X WW84 prometendo um “brilho super exuberante” para todas e todxs! (Imagem: Reprodução)
QUE MANIA FOI ESSA DA ESTÉTICA-NEON DOS ANOS 1980?
O neon foi um dos símbolos do retrofuturismo que imperou na década, pois alimentava simultaneamente a nostalgia pelos anos 1940 e seus filmes noirs, decorava os clubes noturnos onde os jovens que viveram aquela época passavam boa parte do seu tempo, e ainda cobria a aparência ordinária da vida com uma pátina de tons azuis e magentas, típica do universo cyberpunk, tão bem representado pelo filme-símbolo do período “Blade Runner – O caçador de androides” (1982).

A alegre frivolidade dos anos 1980, aditivada pelo hedonismo e pelo culto ao corpo, imediatamente se apropriou das cores e da atmosfera neon-cyberpunk para ambientar a academia retrofuturista de Olivia Newton-John no clipe do hit de 1981 “Physical”(veja abaixo). Repare como as cores do clipe dialogam com a paleta de sombras da Revlon X WW84 (Imagem: Reprodução)
PORQUE TODO FILME AMBIENTADO NOS ANOS 1980 TEM MURO GRAFITADO?
Porque, após a emergência e o reconhecimento do grafite como arte urbana, expressão de culturas periféricas e manifesto político, nas décadas de 1960 e 1970, Nova York vê florescer em suas ruas, nos anos 1980, os dois maiores artistas da história do grafite: Jean-Michel Basquiat (1960-1988) e Keith Haring (1958-1990) que influenciaram profundamente o vanguardismo visual do período.

Nesta curta cena em que Barbara Minerva (Kristen Wiig) percorre uma rua do subúrbio de Washington, já empoderada pela “Pedra dos Desejos”, Patty Jenkins e sua diretota de arte Aline Bonetto certamente quiseram prestar uma homenagem à criativa arte urbana dos grafites dos anos 1980 (Imagem: Divulgação)
O QUE É UM TERNO-JAQUETÃO?
O jaquetão, com seu paletó transpassado e abotoamento duplo, foi outra peculiaridade da moda masculina dos anos 1980. Também saqueada do look das décadas de 1930 e 1940, seu usuário mais icônico foi – pasmem! – Al Capone. No Brasil, o jaquetão aclimatou-se rapidamente no meio empresarial e político, tornando-se a marca registrada do próprio presidente do Brasil, José Sarney.

O jaquetão foi entronizado na moda masculina mundial, via Hollywood, pelos figurinos que Giorgio Armani criou para Richard Gere no filme Gigolô americano (1980) de Paul Schrader (Imagem: Reprodução)

O estilo voltou com muita força há poucos anos atrás, em 2017, graças à metrossexualidade do jogador português Cristiano Ronaldo, que recebeu pela quarta vez o título de Melhor Jogador do Mundo de 2016 pela FIFA envergando um jaquetão azul marinho (Imagem: Reprodução)

Toda a patifaria e canastrice do vilão corporativo e símbolo do “capitalismo selvagem” dos anos 1980 – Maxwell Lord (Pedro Pascal) – parecem ainda mais infames nos seus cafonérrimos jaquetões oitocentistas (Imagem: Divulgação)
QUE CELEBRIDADES DOS ANOS 1980 ADORARIAM FURTAR A “PEDRA DOS DESEJOS”?

Donald e Ivana Tramp, sem dúvida! Não porque eles precisassem ainda mais de dinheiro e poder, mas porque o casal mais icônico da sociedade nova-iorquina da época representou o clima de “vale-tudo” e de desregulamentação econômica da Era Ronald Reagan/Margareth Tatcher. O acúmulo desenfreado de riqueza da dupla se revela em cada detalhe desta fotografia tirada no 58º andar da “Trump Tower”, inaugurada em 1983 no ponto mais luxuoso da Quinta Avenida. O olhar fixo e implacável, as unhas longas e impecáveis e os cabelos louros armados de Ivana são dignos de uma Mulher-Leopardo muito mais perigosa do que a tolinha Barbara Minerva. Não acha, Patty Jenkins?
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