Foi preciso duas mulheres para por nos trinques o desejo da Warner Bros. de estabelecer uma dramaturgia de filmes de super-herói de responsa, coisa que nenhum marmanjo conseguiu desde as controversas produções Homem de Aço (2013) e Batman vs. Superman (2016). À frente de Mulher Maravilha” (Wonder Woman, 2017) – que estreia nesta quinta (1/6) no Brasil e no dia seguinte no resto do mundo  –, a diretora Patty Jenkins (de “Monster: desejo assassinos”, que deu o Oscar de ‘Melhor Atriz’ a uma Charlize Theron irreconhecível) e a Miss Israel 2004 Gal Gadot (da série “Velozes e Furiosos”), que agora encarna a mais célebre super-heroína dos gibis, viraram a mesa: o longa-metragem é diversão da melhor qualidade graças a elas.

Aposta máxima de Hollywood para conquistar o público no verão norte-americano, “Mulher Maravilha” chega às telas após 20 anos de tentativas, com o roteiro sendo reescrito inúmeras vezes e a produção passando de mão em mão. Ao que parece, tanto esforço deu certo e os investimentos da major para promover o longa-metragem englobam de promoções nas TVs aberta e fechada e incluem até o Wonder Woman Day (3/6), criado para ações promocionais no mundo inteiro. Sim, a principal heroína dos quadrinhos é peso-pesado no merchandising, com licenciamentos que incluem brinquedos, linhas de roupas, de papelaria, fantasias, artigos para festas e todo o tipo bugiganga, movimentando fortunas (Foto: Divulgação)

A diretora Patty Jenkins orienta Gal Gadot no set de filmagem da Ilha Paraíso. Ela optou por uma direção de arte fantasiosa, com toques de irrealidade, que imprime uma tessitura de “pintura clássica”, fugindo do colorido esfuziante usado nas produções da concorrente Marvel Studios. E já pretende, na continuação, fazer uso de um dos mais emblemáticos componentes das HQs clássicas da personagem – o avião invisível –, conforme tem mencionado em entrevistas (Foto: Divulgação)

Confira abaixo o trailer oficial legendado (Divulgação):

Jenkins parece confirmar aquilo que o público no fundo já sabia desde quando Kenneth Branagh mandou ver em Thor” (2011): não basta ser nerd; é preciso ter tanto afinidade com os mundo das HQs quanto repertório narrativo que transcenda o gênero que mais dá lucro atualmente em Hollywood.

Em “Thor” (2011), Kenneth Branagh mostrou ser possível imprimir alguma dimensão extra-gibi em uma produção baseada nos quadrinhos, impregnando a ação com um drama familiar repleto de tintas shakespereanas. Deu certo, e Jenkins vai pelo mesmo caminho com um personagem que, pela sua natureza, encontra nos protagonistas das narrativas mitológicas clássicas o paralelo perfeito com o Deus do Trovão. Nesse âmbito, “Mulher Maravilha” enfoca a típica “jornada do herói” que, imbuído de uma missão, cresce como ser humano ao superar dificuldades (Foto: Divulgação)

Com apenas um longa-metragem no currículo, mas boa presença por trás da câmera na TV, a diretora bem que quis comandar a continuação das aventuras do Deus do Trovão, “Thor: o mundo sombrio (2013). Mas, por divergência com a Marvel/Disney, foi defenestrada e acabou caindo de paraquedas no estúdio concorrente. A audiência agradece: a primeira incursão cinematográfica da heroína, 75 anos após sua criação (leia mais aqui), é mesmo lacradora.

Assinadas por Isabel Baquero, as coreografias de luta são ponto alto do filme, combinadas com os efeitos especiais de ponta que quase sempre funcionam. Com o diretor e produtor Zack Snyder capitaneando a produção, a influência dos movimentos de luta vistos em  “300” – dirigido por ele em 2007 – adquirem aqui seu ápice, com aquela já conhecida pirotecnia que conjuga filmagem digital das torções corporais dos atores e o registro de sequências super velozes alternadas com a câmera lenta. Assim, a plasticidade está garantida (Foto: Divulgação)

Patty Jenkins demonstra ter plena consciência de que, para a princesa amazona em carne e osso dar certo, é necessário conjugar os três aspectos mitológicos da personagem: em primeiro lugar, entender que os super-heróis, enquanto produtos da indústria cultural, hoje ocupam na cabeça do público o mesmo espaço que os antigos deuses detinham no imaginário das velhas civilizações pagãs. Em seguida, é imperativo compreender que, dentre o poderoso casting de metahumanos da editora DC Comics, subsidiária da Warner, a Mulher Maravilha é o suprassumo do caráter mitológico pelo fato de que foi concebida a partir de componentes da mitologia greco-romana.

Na segunda metade dos anos 1980, a Mulher Maravilha foi repaginada pela editora DC e a reestruturação ficou a cargo do quadrinista George Pérez, que recuperou e intensificou os componentes “chupados” da Antiguidade Clássica por William Marston, diluídos ao longo das décadas (Foto: Reprodução)

Por fim, vem o mais poderoso dos sistemas de signos que envolvem a paladina: a trajetória da Mulher Maravilha se confunde com o feminismo, representando na cultura pop o fenômeno da emancipação da mulher que começou a se desenhar no século 19 e foi tomando conta da modernidade no seguinte. Sua criação em 1941, pelo psicólogo William Moulton Marston – que acreditava no caráter educativo dos quadrinhos e já previa o papel que a mulher viria a ocupar na sociedade –, coincide com um significativo momento histórico, quando as mulheres passaram a ocupar postos de trabalho tradicionalmente masculinos em função dos esforços de guerra.

Criada durante a 2ª Grande Guerra, a Mulher Maravilha preencheu as capas dos periódicos para crianças em 57 edições publicadas na All Star Comics (que depois se fundiria com outras editoras para formar a poderosa DC) até a morte do seu autor, William Marston. Vestida com as cores da bandeira, as estrelas e a águia americana, ela acabou fazendo parte da estratégia de propaganda estadounidense durante o conflito bélico, assim como o Superman e o Capitão América. E sua presença como dominatrix na ficção  entrou para a história, quando sua popularidade se mesclou com a emancipação feminina nos fourties (Foto: Reprodução)

Mais tarde, a célebre série de televisão (1975-1979) As novas aventuras da Mulher Maravilha só foi possível porque, pouco anos antes, as feministas queimavam sutiãs em praça pública a fim de se libertarem da opressão de um mundo machista. Assim, a heroína também  foi a síntese na mídia dessa nova fêmea dona de si e de seu corpo, que eclodiu no turbilhão de novos comportamentos sociais dos revolucionários sixties, ganhando as manchetes de publicações emblemáticas como a New Yorker (Reprodução)

A Miss Mundo Lynda Carter foi a segunda opção para interpretar a Mulher Maravilha na TV, mas foi quem definitivamente “colou” no papel. Sua força cênica, jeito de boa moça e os traços perfeitos marcariam para sempre tanto a atriz quanto a personagem, com sua sombra até hoje pairando sobre a amazona. A tentativa de uma nova série de TV em 2011 não decolou, e só agora foi possível desvincular o semblante de Lynda – hoje com 66 anos – do de Diana Prince, mérito de Gal Gadot e seu carisma igualmente sedutor (Foto: Divulgação)

Portanto, não poderia ser mais bem-vindo o deslocamento da origem da personagem da 2ª Guerra Mundial para o conflito bélico que a antecedeu, uma vez que a esfumaçada Londres eduardina, fruto da Revolução Industrial, também é berço dos movimentos sufragistas. Espertamente, o roteiro de Allan Heiberg, Zack Snyder e Jason Fuchs é pródigo em alternar cenas de ação fabulosamente filmadas com alívios cômicos que contrapõem o severo mundo de um patriarcado britânico quase misógino à ideologia feminista que a amazona carrega.

O figurino de Lindy Hemming é outro acerto da produção. Tanto o visual das amazonas quanto os uniformes de guerra europeus são um charme à parte. E os belos costumes eduardinos ajudam a impregnar a produção de uma aura retrô que só beneficia a narrativa, o que já havia acontecido de leve com “Capitão América: o primeiro vingador” (2011). A atmosfera de aventura juvenil de “Mulher Maravilha”, típica do cinemão da Era de Ouro, colabora na construção do mito da personagem nas telas (Foto: Divulgação)

Da tela para a estante do quarto: à parte de suas funções na narrativa, os figurinos à paisana vestidos pela Mulher Maravilha incluem vestidos de gala e até uniforme de secretária. E, tal qual o look clássico da heroína, também já conquistaram as lojas de brinquedos numa linha de bonecas da Mattel (Foto: Divulgação)

Agora, quando tanto se fala em “empoderamento feminino”, termo esvaziado pelo uso banal nas mídias sociais, a presença da Princesa Diana no cinema é referencial, fato amplificado quando se constata que foram justamente as mulheres que conseguiram criar os fundamentos para a existência de uma filmografia consistente da DC Comics na Sétima Arte, tanto no enredo quanto nos créditos de produção.

Considerando o percurso 38 anos entre a despedida de Lynda Carter como a personagem na telinha e essa nova realização protagonizada por Gal Gadot, talvez essa seja a mais importante façanha da Mulher Maravilha: chegar finalmente ao cinema sem cair do salto, dominando o red carpet com seu laço dourado após uma conturbada pré-produção que levou duas décadas para sair do papel.

Como o interesse romântico da Mulher Maravilha, o Capitão Steve Trevor é vivido pelo astro Chris Pine, que também encarna na telona outro icônico personagem, o Capitão Kirk da franquia “Star Trek“. Mas, pouca diferença faz. Afinal, independente da produção, o ator acaba sempre interpretando um único papel: ele mesmo! (Foto: Divulgação)

Por isso mesmo, apesar de todos os cuidados técnicos com a produção, não há como negar: é o carisma de Gal Gadot a peça-chave nessa equação vitoriosa, e a ponte que a moça estabelece com a audiência é tão poderosa quanto os apetrechos de combate portados pela Mulher Maravilha. Somam-se a isso as eficientes participações de duas atrizes de meia-idade no elenco, Connie Nielsen (“Gladiador”) e Robin Wright (“House of Cards”), respectivamente a Rainha Hipólita e a General Antíope.

Prestes a completar 52 anos, a dinamarquesa Connie Nielsen (à dir.) prova que idade não é problema para uma amazona: bate um bolão na parte inicial do filme e deve retornar no segundo semestre às telas na pele da mesma Rainha Hipólita, no próximo longa de super-herói da Warner, “Liga da Justiça”, que estreia em novembro (Foto: Divulgação)

Estrela da TV como a primeira-dama Claire Underwood de “House of Cards”, Robin Wright (centro) faz uma participação especial em “Mulher Maravilha“, se destacando tanto da popularidade que desfruta hoje em dia quanto da ótima forma para alguém de 51 anos. Casada por quase 15 anos com o ator Sean Penn, quem sabe ela poderia ter feito uso do treinamento de amazona para se defender do ex, conhecido por ser violento com as esposas? (Foto: Divulgação)

E até a vilã Doutora Veneno (a espanhola Elena Anaya, de “Lucía y el Sexo”), ainda que mal aproveitada, tem lá o seu charme:  evoca outras do antigo seriado, como a Baronesa e Fausta, a Mulher Maravilha nazista. Sim, definitivamente o longa é delas.

Em desvantagem em relação ao escrete feminino do elenco de “Mulher Maravilha”, a espanhola Elena Anaya faz o que pode para chamar atenção como a maléfica Doutora Veneno  nesta produção em que os vilões são quase todos homens. Não dá conta do recado, mas a culpa não é dela. Seguiu o que estava no roteiro, com um subtexto que explora mal a submissão da mulher vertida em amargura… (Foto: Divulgação)

Deixe seu comentário

Seu email não será publicado.