Em setembro, a Semana de Moda de Paris já havia decretado: em tempos sombrios, com duas guerras em curso, modo “devastação planetária” ligado, extremas direitas assanhadas e recessão global, a maré não está para peixe. Tempo, portanto, para reeditar no consumo o clima de pessimismo que tomou conta do mundo na virada dos anos oitenta, durando cerca de uma década até a chegada da esperança que rebobinou a fita global com a proximidade no Novo Milênio, a partir dos noventa. Assim, se as passarelas internacionais embarcaram na vibe Wandinha”, com muito preto e reinterpretações do estilo dark, o cinema também carregou nas tintas: foi a retomada de franquias soturnas daquela década – tentativas de garantir a bilheteria em dias sombrios para o faturamento dos estúdios – com obras como o divertidíssimo, mas gótico “Os fantasmas ainda se divertem: Beetlejuice Beetlejuice” (melhor que o original!) e o claustrofóbico “Alien: Romulus”. Sim, 2024 foi mesmo um ano singular para o cinema de horror, com longas-metragens como “Abigail”, “Maxxxine”, “Entrevista com o demónio”, “Imaculada”, “A primeira profecia” e “A substância”, que ressuscitou a carreira de uma quase morta-viva dos red carpets, Demi Moore. Portanto, nada como iniciar o Ano Novo com uma obra-prima do calibre de “Nosferatu(Idem, Focus Features e outros, 2024), que acaba de estrear no Brasil.    

Confira abaixo o trailer oficial legendado (Divulgação):   

Famoso como um dos realizadores que deflagraram uma inspiradíssima safra recente de filmes de terror, ao lado de diretores como Ari Aster, Ti West e Jordan Peele, Robert Eggers potencializa em “Nosferatu” o repertório imagético-narrativo que já havia explorado em obras capazes de causar infarto, todas de época: “A Bruxa” (2015), “O Farol” (2019) e “O Homem do Norte” (2022), repletas de sequências viscerais que se sucedem a outras arrastadas, onde o silêncio e a dúvida preparam o inquietante terreno para o sobrenatural, fugindo do lugar comum e arrematadas com fotografia primorosa (sempre a cargo de Jarin Blaschke, colaborador ativo em todas as produções do cineasta) e enquadramentos geniais recheados de chiaroscuros de gelar a alma, que costumam emoldurar seu desdém pela masculinidade – para ele a origem de uma psiquê puritana capaz de catapultar a tragédia, trazendo sofrimento a mulheres sexualmente abafadas por sociedades patriarcais tóxicas.

(Foto: Divulgação)

Afiadíssimo, Eggers faz valer cada frame deste remake do clássico “Nosferatu(Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, 1922), produção seminal que sedimentou a linguagem de terror no cinema e consolidou a carreira cinematográfica do alemão F. W. Murnau, tornando-se seu legado maior para a Sétima Arte.

Fugindo do padrão que seria estabelecido por Hollywood para um vampiro a partir do “Drácula” garboso de Bela Lugosi (1931), causa arrepio a concepção visual do Conde Orlok original, com figurino criado pelo produtor do filme Albin Grau e maquiagem concebida pelo próprio ator que viveu o personagem, Max Schreck, que vinha do teatro. Sua aparência decrépita, com dentes e orelhas de rato, aliada ao figurino no qual se destaca um casaco escuro de botões que tangencia os uniformes de uma ameaça então muito real – os bolcheviques -, se encarregou de imortalizar essa representação, apropriada parcialmente por Stephen King em seu romance inaugural, “A hora do vampiro“. Mais famoso que o próprio filme, o aspecto do Conde Orlok entrou para o panteão de criaturas da cultura popular mundial, inspirando imitações e virando até bonequinho (Foto: Reprodução) Reprodução)

Depois de evocar a maneira de fazer cinema à antiga com um projeto filmado em preto & branco – “O Farol” –, Robert Eggers dessatura ao extremo o colorido do seu “Nosferatu”, esbarrando no P&B o suficiente para recriar o Expressionismo Alemão em jogos de sombra que perderiam força se submetidos à cor, tornando tão assustadora quanto melancólica a representação da modorrenta e pacata cidadezinha alemã de Wisburg, para onde o vampiro Conde Orlok (Bill Skarsgard) se transporta a fim de possuir Helen Hutter (Lily-Rose Depp, em atuação que se aproxima visualmente de Isabelle Adjani na segunda versão de “Nosferatu”, de 1979), esposa de um corretor de imóveis (Nicholas Hoult, ótimo) que viaja até a Transilvânia para vender um imóvel ao aristocrata desmorto.

Para recriar a narrativa de “Nosferatu”, Robert Eggers se aprofundou nos registros de costumes da época em que se passa a história, bem como no legado pictórico da nobreza da Valáquia do século 15, tempo do reinado de Vlad Tepes, cruel soberano que empalava seus inimigos, considerado herói romeno. Por isso, o diretor acabou abrindo mão das referências aos ratos na concepção do personagem, mas conservando o significado de “Nosferatu”, que na língua romena medieval significa “repugnante” ou “sujo”. Um dos poucos elementos mantidos do original são os dedos longos com unhas prolongadas que se assemelham a garras (Foto: Divulgação)

O diretor se aprofunda na realidade burguesa protestante da Europa Mercantilista de meados do século 19, forjada pela Revolução Industrial, focando no afastamento espiritual da Humanidade em prol de uma sociedade racional, justamente o principal motivo dos habitantes de Wisburg não conseguirem se defender do mal ancestral que se instalou em suas ruas agora infestadas de ratos trazidos pelo Conde Orlok – semiótica da peste que recebe camadas contemporâneas de ressignificação após a pandemia da Covid-19.

A figurinista Linda Muir se esmerou na reprodução dos looks de época, um dos pontos altos deste novo “Nosferatu”, fruto do nível de exigências de Eggers, que chegou a pedir para que a artista refizesse 20 vezes os calçados do Conde Orlok, que só aparecem na penumbra. Esse grau de rigor histórico encontra eco somente nos relatos de produção de “O Leopardo” (1963), obra maior do cinema italiano para a qual Lucchino Visconti teria encomendado ao costume designer e diretor de arte Piero Tosi a missão de garimpar, em antiquários e afins, milhares de camisas brancas originais para serem usadas por integrantes do exército nas sequências de batalha – um exagero, considerando que elas mal aparecem por debaixo das fardas dos figurantes (Foto: Divulgação)

Nesta visão, o mal se alastra pelos becos e vielas até penetrar na segurança dos lares, corrompendo almas e destruindo famílias, diante da ausência de credo da população naquilo que paira acima da Ciência, no território metafísico que extrapola a vã filosofia. É o personagem do médico ocultista vivido por Willem Dafoe quem, tão estupefato quanto determinado, sintetiza essa percepção, bem-resolvida não apenas no roteiro e nas interpretações, mas no requinte com que “Nosferatu” flana pela reprodução fidelíssima desse período histórico, recriado meticulosamente através de visagismo, figurino e direção de arte de cair o queixo.

Ator-fetiche de Eggers desde “O Farol”, Willem Dafoe compõe um quase desajustado Professor Abin Eberhart Von Franz – que faz as vezes do Professor Abraham Van Helsing de “Drácula” -, perfeito contraponto exotérico à fria sociedade racional alemã apresentada na película (Foto: Divulgação)

Em sua obsessão por mergulhar profundamente no universo narrativo do filme que plagiou “Drácula” de Bram Stoker, Robert Eggers sobe mais degraus no pódio do detalhismo, se aproximando de outro minucioso mestre do audiovisual, Lucchino Visconti e igualmente seduzindo a plateia de maneira irresistível. Vá ver. Ótima maneira de começar o ano, ainda mais com o espetáculo desses na experiência da sala escura com tela grande.    

Confira abaixo algumas curiosidades sobre as várias versões de “Nosferatu” na telona:

“Nosferatu” pode ser considerado expoente do Cinema Expressionista Alemão ao lado de outros clássicos, como “O Gabinete do Dr. Calighari” (1920, de Robert Wiene) e de “M – O Vampiro de Dusseldorf” (1931) e “Metrópolis” (1927), ambos de de Fritz Lang. Gênero cinematográfico surgido no final dos anos 1910, na recém-inaugurada, mas frágil República de Weimar, na Alemanha da pós-Primeira Guerra Mundial, o estilo foi influenciado pelos sentimentos de impotência e falta de perspectiva social que determinaram então o ZeitGeist, num contexto tão criativo e moderno quanto decadente que depois seria demonizado pelo Nazismo (Foto: Reprodução)
Os primeiros estudos de caracterização de Bill Skarsgard (à direita) seguiam à risca a estética do Nosferatu de Max Schreck (à esquerda). Foi a pesquisa histórica realizada por Robert Eggers o motivo para a equipe de maquiagem chefiada por Sally Alcott se distanciar da concepção de Murnau (Fotos: Reprodução)
Eggers pediu à Sally Alcott que criasse um visagismo assustador para Nosferatu, descrito por ele como um ser “corpulento, soturno e pútrido, praticamente um cadáver ambulante, um aristocrata em decomposição que reflete sua degradação moral”. O resultado, que acabou incluindo um inesperado e frondoso bigode, se revelou uma surpresa para o público e um tormento para Skarsgard, que, por conta das 62 próteses, levava entre cinco a seis horas para ser maquiado (Foto: Divulgação)
Adepto de um processo imersivo de interpretação que o obrigava a viver o personagem 24 horas por dia, o esquisitão Max Schreck incomodou seus colegas de elenco alimentando teorias de que seria um vampiro de verdade – fruto do seu comportamento nada ortodoxo no set. Diante disso, na virada do Milênio seria lançado nos cinemas “A sombra do vampiro” (2000), deliciosa produção de terror com toques de humor negro que teria como argumento a pressuposta condição vampiresca de Schreck. Quem viveu o personagem nas telas? Willem Dafoe, que compõe um guloso sanguessuga cujos anseios alimentares entram em conflito com o diretor Murnau (John Malkovich), às voltas com um cronograma de produção constantemente boicotado pela interminável sede de sangue do seu ator principal (Foto: Reprodução)
Ratazana capaz de seduzir o Flautista de Hamelin: 11 mil ratos foram usados nas sequências da Bremen tomada pela peste em “Nosferatu: o vampiro da noite”, do diretor alemão Werner Herzog. Obviamente submissa aos ditamos de tempos politicamente corretos, a produção capitaneada por Robert Eggers precisou recriar a rataria digitalmente, através de efeitos visuais, evitando que polêmicas sobre proteção animal pudessem ser alimentadas por ativistas ambientais mais sedentos de sangue que vampiros (Foto: Reprodução)

Expressionismo na Era Disco: o feioso ator alemão Klaus Kinski e a francesa Isabelle Adjani, uma das mais belas atrizes de sua geração, deram vida aos protagonistas em “Nosferatu: o vampiro da noite” (1979), que ressignificou a narrativa de “Drácula” em um mundo convulsionado pela Crise do Petróleo, ameaçado pela Guerra Fria, tormentado pela revolução fundamentalista islâmica no Irã e, ainda, prestes a ser bombardeado pela epidemia da Aids. Se o Nosferatu de Murnau preconizou a então chamada “praga gay”, o de Eggers é consequência direta da Covid-19 (Foto: Reprodução)
É inegável a semelhança física entre Lily-Rose Depp e Isabelle Adjani nas duas mais recentes versões de “Nosferatu”, embora Robert Eggers enfatize diretamente, em sua realização, a questão de Helen Hutter ter sido prometida ao vampiro através de um devaneio erótico quando adolescente. A questão da repressão da pulsão sexual feminina é recorrente na filmografia do diretor (Foto: Divulgação)

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