* Por Flávio Di Cola

O autoconhecimento pelo cinema: foi esse o mantra que inspirou o jovem cineasta colombiano Ciro Guerra ao longo do arriscado e penoso projeto de levar para as telas O abraço da serpente (El abrazo de la serpiente, 2015, produção Ciudad Lunar e distribuição Esfera Filmes) em que narra, com um requinte artesanal raramente visto nos filmes atuais, o encontro nas selvas amazônicas do xamã Karamakate com dois exploradores-cientistas ocidentais: primeiramente, em 1909, o etnólogo alemão Theodor Von Martius a quem ele cura e inicia no conhecimento das forças vitais da natureza através de uma planta alucinógena sagrada – a yakruna; e, 40 anos depois, o botânico norte-americano Richard Evans Schules, com quem o agora velho médico-sacerdote se associa na busca do último exemplar da flor que abre “as portas da percepção”, parodiando o título do livro cult dos anos 1960 (mas escrito em 1954) em que Aldous Huxley descreve suas experiências com a mescalina.

o abraço da serpente cartaz

Depois do prêmio Art Cinéma obtido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes 2015, o filme colombiano assume uma grande responsabilidade: representar a América Latina na categoria “Melhor Filme Estrangeiro” do Oscar 2016 em que enfrenta nominados da França, Dinamarca, Jordânia e o favorito “Filho de Saul” da Hungria (Divulgação)

O autoconhecimento, no caso de um colombiano como o diretor e roteirista Ciro Guerra, significa ir ao encontro das riquezas culturais e espirituais enterradas nesse imenso mundo verde representado pela parte amazônica da Colômbia (50% do seu território), um país que se reconhece muito mais como caribenho e andino. Sobre esse menosprezo pelo próprio patrimônio, o diretor desabafa: “[A Amazônia colombiana] é uma parte do nosso país que é subestimada (…). Quando começamos a estudar essa região e a desenvolver as pesquisas foi inevitável nos depararmos com o olhar estrangeiro, de membros de expedições e viajantes, quase sempre norte-americanos ou europeus que nos dão informações sobre o nosso próprio mundo, sobre nosso próprio país”.

O diretor e roteirista Ciro Guerra e o fotógrafo David Gallego nos conduzem a uma viagem tão terrível como bela aos confins da Amazônia para narrar as aventuras verídicas de um etnógrafo alemão e de um botânico norte-americano que procuram o último exemplar de uma misteriosa flor alucinógena, entre 1910 e 1940 (Divulgação)

O diretor e roteirista Ciro Guerra e o fotógrafo David Gallego nos conduzem a uma viagem tão terrível como bela aos confins da Amazônia para narrar as aventuras verídicas de um etnógrafo alemão e de um botânico norte-americano que procuram o último exemplar de uma misteriosa flor alucinógena, entre 1910 e 1940 (Divulgação)

O requinte dos enquadramentos, dos movimentos de câmera, da fotografia em película 35mm P&B e do tratamento de som tornam difícil acreditar que o diretor quase desistiu do projeto em razão das terríveis dificuldades de filmagem no meio da selva (Divulgação)

“O abraço da serpente”: requinte dos enquadramentos, dos movimentos de câmera, da fotografia em película 35mm P&B e do tratamento de som tornam difícil acreditar que o diretor quase desistiu do projeto em razão das terríveis dificuldades de filmagem no meio da selva (Divulgação)

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Uma equipe enxuta de cerca de 20 pessoas embarca para a Amazônia colombiana, raramente filmada: o capital levantado por Ciro Guerra no seu país não foi suficiente para produzir “O abraço da serpente”, mas com o filme já em andamento conseguiu a adesão de coprodutores da Argentina e Venezuela (Reprodução)

A beleza, a sabedoria e a força de “O abraço da serpente” estão justamente na forma como através do olhar de Karamakate o filme descreve o trânsito desses conhecimentos entre indígenas e europeus, em que os autóctones passam tragicamente de doadores para dependentes do saber estrangeiro sobre si mesmos. Numa primeira linha do tempo, o etnólogo alemão Theodor (Jan Bijvoet) aparece no meio da selva mais vivo do que morto, acompanhado do seu ajudante, um indígena tão aculturado como traumatizado, necessitando desesperadamente dos conhecimentos ancestrais do jovem e do solitário xamã (Nilbio Torres) para se curar. Uma vez formado o trio de aventureiros em busca da planta sagrada curativa, inicia-se uma aterrorizante descida ao inferno, representado por uma longa faixa ribeirinha devastada pelos “barões da borracha”, digna de Dante Alighieri nas cenas em que desfilam mutilação, tortura, fome, doença, opressão religiosa, genocídio físico e cultural.

"O abraço da serpente" se desdobra em duas linhas dramáticas separadas por um intervalo de 30 anos que se intercalam para narrar os efeitos destrutivos da colonização sobre a cultura indígena na figura do xamã Karamakate, desde quando se separa da sua tribo, ainda jovem, até a velhice, quando sai em busca da memória perdida (Divulgação)

“O abraço da serpente” se desdobra em duas linhas dramáticas separadas por um intervalo de 30 anos que se intercalam para narrar os efeitos destrutivos da colonização sobre a cultura indígena na figura do xamã Karamakate, desde quando se separa da sua tribo, ainda jovem, até a velhice, quando sai em busca da memória perdida (Divulgação)

"O abraço da serpente" se desdobra em duas linhas dramáticas separadas por um intervalo de 30 anos que se intercalam para narrar os efeitos destrutivos da colonização sobre a cultura indígena na figura do xamã Karamakate, desde quando se separa da sua tribo, ainda jovem, até a velhice, quando sai em busca da memória perdida (Divulgação)

“O abraço da serpente” aborda com extraordinária beleza cinematográfica um feixe de temas vitais: o encontro devastador de civilizações, a eterna busca do homem pela sua religação com os princípios criadores do universo e a memória como substância da própria vida (Divulgação)

Numa segunda linha que se cruza sistematicamente com a primeira através de uma hábil costura narrativa, acompanhamos a mesma saga quarenta anos depois: o xamã Karamakate, mais velho (Antonio Bolívar), depara-se com o botânico norte-americano Richard Schultes (Brionne Davis) que está seguindo as pistas anotadas por Theodor a fim de recuperar o vegetal sagrado que enfeitiçou o alemão. Ocorre que Karamakate já não é mais o mesmo: idoso e desmemoriado de seu próprio conhecimento xamânico, pouca serventia tem para o botânico no sentido de ajudá-lo a chegar ao santuário onde ainda existem os últimos exemplares da flor alucinógena. Sua função será a de acompanhante de um estrangeiro que detém o mapa do seu próprio território e que ele mesmo desconhece. Mas esta não será apenas uma viagem de exploração territorial ou botânica, e sim de autoconhecimento dos abismos interiores do cientista até um final surpreendente em sua desesperada melancolia.

OS VERDADEIROS THEODOR KOCH-GRÜNBERG E RICHARD EVANS SCHULTES

O roteiro de Ciro Guerra e Jacques Toulemonde Vidal foi livremente baseado nos escritos de dois cientistas que permaneceram por décadas na Amazônia, cujas obras sobre os povos da região são consideradas fundamentais até hoje:

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Etnólogo e pioneiro da fotografia antropológica, o alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), no filme Theodor Von Martius, teve ligações especiais com o Brasil: foi aqui que ele morreu de malária, em Boa Vista, e seus estudos sobre mitologia influenciaram Mario Andrade, principalmente no romance modernista “Macunaima” de 1927 (Reprodução)

O norte-americano Richard Evans Schultes (1915-2001) é considerado o fundador da moderna etnobotânica. Seus estudos sobre as plantas alucinógenas dos indígenas da Amazônia e México são clássicos, como "The plants of the Gods: their sacred, healing and hallucinogenic powers", escrito com o suiço Albert Hofmann, o primeiro a sintetizar o LSD e a fazer uma acid trip científica, em 1943 (Reprodução)

O norte-americano Richard Evans Schultes (1915-2001) é considerado o fundador da moderna etnobotânica. Seus estudos sobre as plantas alucinógenas dos indígenas da Amazônia e México são clássicos, como “The plants of the Gods: their sacred, healing and hallucinogenic powers”, escrito com o suiço Albert Hofmann, o primeiro a sintetizar o LSD e a fazer uma acid trip científica, em 1943 (Reprodução)

“O abraço da serpente” tem sido saudado por onde passa não só como uma obra cujo objetivo é abarcar uma multiplicidade de importantes temas ao mesmo tempo locais e universais, épicos e intimistas, pretéritos e atuais, reais e fantasiosos, mas também por que encontrou uma forma cinematográfica sedutora de apresentar tudo isso e que nos devolve o perdido prazer de estar no interior de uma sala para fruir um espetáculo da época em que o cinema ainda tinha a ambição de conter e de narrar o mundo.

COLÔMBIA: PRESENÇA DESTACADA NA CERIMÔNIA DO OSCAR 2016

Nosso vizinho latino-americano garantiu duas frentes de visibilidade no espetáculo de televisão com a maior audiência mundial:

Ao ser candidato à estatueta de Melhor Filme em Língua Estrangeira e projetar internacionalmente a Colômbia, "O abraço da serpente" e o diretor Ciro Guerra levaram a imprensa local ao delírio (Reprodução)

Ao ser candidato à estatueta de ‘Melhor Filme em Língua Estrangeira’ e projetar internacionalmente a Colômbia, “O abraço da serpente” e o diretor Ciro Guerra levaram a imprensa local ao delírio (Reprodução)

A voluptuosa atriz e modelo colombiana Sofía Vergara - vista recentemente nos cinemas brasileiros em "Belas e perseguidas" (Hot porsuit, 2015) ao lado de Reese Witherspoon -, e classificada pela revista Forbes como a 32ª mulher mais poderosa do mundo em 2014, foi escalada pela Academia como uma das apresentadoras da cerimônia do próximo dia 28 (Reprodução)

A voluptuosa atriz e modelo colombiana Sofía Vergara – vista recentemente nos cinemas brasileiros em “Belas e perseguidas” (Hot porsuit, 2015) ao lado de Reese Witherspoon -, e classificada pela revista Forbes como a 32ª mulher mais poderosa do mundo em 2014, foi escalada pela Academia como uma das apresentadoras da cerimônia do próximo dia 28 (Reprodução)

Ciro Guerra não se deixou contagiar pelas cores e pelos efeitos computadorizados de pós-produção e apostou tudo no seu fino artesanato, na magnitude épica da tela grande, na magia da fotografia em preto e branco que remete aos antigos cinegrafistas etnográficos do passado, e de uma malha complexa de misteriosos sons naturais misturados a nove idiomas diferentes (inclusive o português). Por outro lado, entre os possíveis defeitos, alguns podem considerar a duração do filme um pouco excessiva.

Confira o trailer oficial (Divulgação):

O crítico Stephen Holden do New York Times definiu “O abraço da serpente” como uma “elegia cinematográfica trágica”: uma visão certamente elogiosa, mas que também é claramente a de alguém distante que vê a experiência colonialista e as culturas periféricas ou ancestrais com olhos muito impressionáveis. Talvez seja melhor devolver a palavra ao artista colombiano, àquele que realmente tem o privilégio de narrar o seu próprio tempo e espaço para que ele mesmo consiga entendê-los: “Quando a sociedade emerge de processos muito difíceis e que desembocam em grandes conflitos, há um florescimento das artes por que há muito para expressar. (…) Pois a arte sempre nos ajuda a superar esses traumas.”.

SELVAS DA DEMÊNCIA

A profanação dos santuários selváticos do planeta sempre acarretaram tragédias terríveis não só para o povo violado como também para a civilização violadora. No cinema, a destruição do “paraíso” vem sempre impregnada pela loucura do invasor:

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* Publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e ex-coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá, ele só se respira se houver a Sétima Arte sua verdadeira paixão. Viaja de Bette Davis a Isabelle Huppert com a desenvoltura de quem está em num backstage conferindo a lingerie das coristas. Para ele a seriedade de certos assuntos não teria graça se não pudesse desfrutar dos momentos mundanos, onde o cotidiano depois se converte em anedotário. Daí sua visão peculiar…

 

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