Em cartaz, “O bom gigante amigo” (The BFG, Amblin Entertainment e Walt Disney Pictures, entre outros, 2016), tinha tudo para ser o grande encontro entre o diretor que cunhou o termo blockbuster em Hollywood, Steven Spielberg, e o maior império de entretenimento do mundo, a Disney. Mas não é. O longa-metragem padece de seu maior mérito, aliás, uma ousadia e tanto nesta era dominada pela pirotecnia absoluta nas telas: uma narrativa ingênua de filme infanto-juvenil com jeitinho de produção britânica, roteiro linear e edição sem picotes exagerados, vista em exemplares dos anos 1960/1970.
Encontram-se nessa lista obras que foram sucessos de público, alguns até viraram clássicos, tipo “Mary Poppins“ (1964): “Viagem Fantástica“ (1966), “O Fabuloso Doutor Doolittle“ (1967), “Se meu fusca falasse“ (1968), “O chipanzé manda-chuva” (1971), “A Fantástica Fábrica de Chocolate“ (1971), “Se minha cama voasse“ (1971), “A ilha no topo do mundo“ (1974), “A montanha enfeitiçada“ (1975) e “O buraco negro“ (1979), muitos levando a assinatura de dois bambas do gênero, Robert Stevenson e Richard Fleischer. Não por acaso, o filme se situa cronologica e visualmente nesse período-auge do aventura pueril.

“O Bom gigante amigo”: mesmo não entusiasmando como poderia, parceria de Steven Spielberg com a Disney tem lá suas qualidades (Foto: Divulgação)

Red carpet: da esquerda para a direita, Rebecca Hall, Penelope Wilton, Steven Spielberg, Ruby Barnhill e Mark Rylance, entre integranes da nova produção da Disney lançada com pompa e circunstãncia no Festival de Cannes. O filme traz um mix de habituais colaboradores da Disney e do diretor, do designer de produção Robert Stromberg (“Malévola”) ao compositor John Williams (“Indiana Jones”). (Foto: Divulgação)
Assista abaixo ao trailer oficial (Divulgação):
Em “O BGA“, nada de alguns dos males que assolam o cinema atual, mas enchem os olhos da plateia e engordam o bolso dos produtores: da overdose maneirista de Michael Bay aos velozes e furiosos movimentos de câmera acoplados ao ritmo de máquinas possantes, nem sequer nadica das espetaculares coreografias de luta à la “Matrix“ e “Harry Potter“.

Orfãzinha carente, mas aperreada: nova produção da Disney recorre ao típico apelo dos párias juvenis para tentar conquistar a plateia. Fica no meio do caminho, mas impressiona pela produção “very british” (Foto: Divulgação)

Desde “A Invenção de Hugo Cabret” e recentemente em “Alice no País dos Espelhos”, o relógio mecânico parece ter se tornado um elemento onipresente nas produções fantásticas. Resposta do cinema à atual era do imediatismo digital? (Foto: Divuglação)

Gigantes à moda antiga: personagens criados digitalmente reproduzem em “O bom gigante amigo” o esteticismo das ilustrações dos calhamaços infantis de outrora (Foto: Divulgação)
É como se a Disney olhasse para trás, a época em que seus desenhos animados andavam na berlinda e o estúdio nadava contra a maré do cinemão “gente grande como a gente” às custas da reciclagem de antigos astros da Era de Ouro (Ray Milland, Ernest Borgnine, Angela Lansbury e Bette Davis, entre outros) e dos hormônios teen do então novato Kurt Russell (sim, bem antes de Zac Efron e dos irmãos Jonas, “Tio Walt” já lançava outros pitéus).
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Magia da tela: sequências com acabamento surpreendente procuram conciliar os cânones da produção ficcional de hoje com o ritmo do cinemão de 50 anos atrás (Foto: Divulgação)
Claro que, mesmo sem apelar para os vícios formatados a partir do superespetáculo que ele mesmo ajudou a consolidar, Spielberg ainda abusa de suas marcas: a computação gráfica, os efeitos 3D e agora a motion capture que torna o gigante a cara cuspida de Mark Rylance, seu atual ator-fetiche e Oscar de ‘Melhor Ator Coadjuvante’ por outra produção sua, “Ponte dos espiões“. O personagem é quase tão arrebatador quanto a menina orfã vivida por Ruby Barnhill, que segura a realização no mesmo nível de astros-mirins dos 1960/70 como Mark Lester, Peter Ostrum e Eric Shea.

Mark Rylance em dois momentos: na première de “O bom gigante amigo” no Festival de Cannes, em maio,…

… e com suas feições fundidas ao protagonista criado digitalmente, a partir da captura de imagem que anda em voga no cinematografia atual. As semelhanças são enormes! (Fotos: Divulgalção)

Ruby Barnhill: carisma de estrela mirim do passado nesta novíssima produção de ponta, “O bom gigante amigo” (Foto: Divulgação)
Nesta história adaptada do livro de Roald Dahl (“O Fantástico Senhor Raposo”, “A Fantástica Fábrica de Chocolate”), está também outra digital do diretor: a improvável amizade entre duas criaturas tão distintas que têm em comum somente o sentimento de não-pertencimento ao mundo que lhes cerca. A relação que se forma entre os dois protagonistas de “O bom gigante amigo” é semelhante àquela vista entre o menino solitário Elliot e o alienígena de “E.T. – O Extraterrestre“ (1982), o chefe de polícia e o oceanógrafo nerd de “Tubarão“ (1975), o pai de família que se sente adolescente e a mãe do garoto abduzido em “Contatos imediatos do terceiro grau“ (1978), o industrial alemão e o contador judeu de “A lista de Schindler“ (1993), o viajante apátrida confinado num aeroporto e a aeromoça de “O Terminal“ (2004) e o guri androide e o autômato michê de “A.I.: Inteligência Artificial“ (2001), entre tantos outros filmes.

Elo que vem do sentimento comum de estranheza: como de praxe, personagens quase antagônicos se tornam best friends em mais de um filme de Spielberg, “O bom gigante amigo” (Foto: Divulgação)
Mas, quando se acredita que, ao longo da projeção, nada de novo no front vai acontecer e o filme permanecerá monocórdico, a história dá uma guinada com a presença da criadagem do Palácio de Buckingham e a participação de Penelope Wilton como uma inspiradíssima versão de Elizabeth II. É quando o diretor assume o tom farsesco que a realização de fato lucra.

A boa soberana amiga: Penelope Wilton encarna uma Rainha Elizabeth II que recupera a infância perdida sob uma existência de compromissos protocolares (Foto: Divulgação)
Para quem acreditava que a interpretação de Helen Mirren (Oscar de ‘Melhor Atriz’ pelo mesmo personagem em “A Rainha“, 2007) era definitiva, a soberana vivida por essa outra atriz inglesa colore o filme. É a partir dela que o enredo toma novo vulto. Conhecida pela prima Isobel Crawley da telessérie “Donwton Abbey“ e pela presença em longas como “Match Point“ (2005) e “O Exótico Hotel Marigold” (2011), Penelope pinta e borda nessa fantasia para toda a família e só isso já vale o ingresso.

Destaque em “O bom gigante amigo”. a britânica Penelope Wilton ficou conhecida do grande público como Lady Crawley, a prima moderninha e sufragista que se opunha à Condessa Violet (Maggie Smith) em “Downton Abbey” (Foto: Divulgação)
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