Chega nesta quinta-feira (2/2) aos cinemas brasileiros Jackie” (idem, de Pablo Larraín, Jackie Productions e outros, 2016), a biografia da ex-primeira-dama norte-americana estrelada por Natalie Portman. O filme narra o breve período entre o assassinato do presidente John F. Kennedy, seu funeral e a saída dela e dos filhos da Casa Branca, estabelecendo a ponte entre poder, mídia e espetáculo.

Com clima intimista, silêncios, pouca música, ótima fotografia por vezes granulada (que emula o imaginário que temos dos anos sessenta) e a câmera com excesso de closes que procura revelar tanto a dor quanto as ambiguidades da protagonista, o longa-metragem embarca na onda das biografias que têm tomado Hollywood desde os anos 1990,  na contramão da ascensão dos gêneros pipoca, como Malcolm X (1992), Nixon (1995), A Rainha (2007), Diana (2013) e Snowden: herói ou traidor (2016), entre tantos outros, além das produções que procuram trazer à tona passagens curiosas da Sétima Arte, como Chaplin (1992), Sete dias com Marilyn (2011), Hitchcock (2012), Walt nos Bastidores de Mary Poppins (2013) ou Grace de Mônaco (2014).

Natalie Portman Jackie 10 final

Laquê, robe, peignoir, uísque na mão, mas nem um resquício de lágrima: a ótima reconstituição de época de “Jackie” – em cartaz ao lado de outra excelente produção ambientada no início dos sixties, “Estrelas além do tempo” – colabora no clima de perplexidade e deprê da protagonista Jacqueline Kennedy logo após o assassinato do marido (Foto: Divulgação)

Diante da tessitura com que se configurou o governo Kennedy, vale dizer que “Jackie” consegue ocupar a aura tanto dessas biografias políticas quanto a daquelas que evocam a própria Hollywood, dado o caráter cinematográfico do casal que comandou o mundo na virada dos sixties.

Afinal, poder e celebridade sempre andaram de mãos dadas, mas nunca desta forma até então, quando o rumoroso affair entre a estrela Elizabeth Taylor e o galã Richard Burton durante as gravações de Cleópatra dividia as manchetes de igual para igual com a crise dos mísseis em Cuba que quase desencadeou a terceira guerra mundial, habilmente resolvida por JFK.

Liz Taylor e Jackie O final

Estrelas de primeiríssima grandeza no cinema e na política, numa era em que ambos se misturavam, Liz Taylor e Jackie se reencontraram inúmeras vezes entre os anos 1960 e 1970, quando o jet set imperava (Foto: Reprodução)

Confira abaixo o trailer legendado (Divulgação): 

Aliás, uma das facetas da gestão Kennedy foi, sem dúvida, transformar a Casa Branca numa espécie de filial de Hollywood, usando como ninguém o aparato do star system para promover o império mais poderoso do mundo, seguindo o exemplo europeu de alguém que também soube capitalizar o charme da Meca do Cinema para catapultar seu país: o príncipe Rainier III. Mas, ao contrário do figurão norte-americano, este foi mais literal: casou mesmo com um mito das telas (Grace Kelly) e pôs definitivamente o diminuto Mônaco na rota do espetáculo.

John F. Kennedy foi mais sutil: desposou uma mulher linda, a mais elegante que pisou no Salão Oval até hoje, e transformou Jacqueline Bouvier em estrela de cinema sem que ela nunca precisasse decorar um script. Quer dizer, mais ou menos: sua função, muito além da mera decoração, foi a de poderosa ferramenta do capitalismo no auge da Guerra Fria. E, para tanto, ela tinha que memorizar umas falas.

Natalie Portman Jackie 3 final

Luz, câmera, ação: o uso constante da imagem da primeira-dama norte-americana pela máquina de propaganda estatal fica entendida em “Jackie” o qual, entre um flashback e outro, procura situar sua importância midiática dentro das engrenagens que contextualizam o poder dos EUA nos early sixties, e cujo drama pessoal colaborou mais ainda para mitificá-la (Foto: Divulgação)

Jackie JFK e Jacqueline

JFK e Jackie desembarcam do Air Force One em Dallas, momentos antes de pegar o carro oficial rumo àquela que se converteria numa das mais marcantes tragédias da política norte-americana (Foto: Reprodução)

Jackie 2 final

O longa de Pablo Larrain não poupa esforços na exatidão de reproduzir uma das imagens mais emblemáticas dos anos 1960 (Foto: Divulgação)

Isso fica claro nas poucas cenas de “Jackie” que retratam os dois anos e dez meses de poder antes do assassinato do presidente em Dallas. Os flashbacks que mostram uma Jackie K. ainda titubeante apresentando às emissoras de televisão as estripulias que fez no décor da Casa Branca –  como se esta fosse um minucioso set de uma narrativa sobre a grandeza dos EUA –, servem tanto para mostrar o quanto JFK e sua turma transformaram o poder no showbiz, pronto a ser deglutido pelas massas, quanto pontuam a evolução da jovem esposa de novata inexperiente a protagonista do planeta, como se fosse uma aspirante ao estrelato que alcança o sucesso. E, nesse caminho para ganhar a simpatia dos eleitorado, a mulher do presidente foi peça-chave na hora de converter votos úteis num público ávido por ver a arte se tornar vida real. convertendo esse caldo em popularidade para Kennedy.

Jackie 5 final

Natalie Portman procura imprimir fidelidade à  primeira-dama na linha de frente da Casa Branca, durante um concerto de música: como uma Teodora de Bizâncio, Jacqueline Kennedy atuou com figura de proa na propaganda capitalista no auge da Guerra Fria (Foto: Divulgação)

Fica clara a intenção do diretor de mostrar que Jackie, assim como as raposas da política – e talvez pela proximidade destas –, sabia como ninguém capitalizar até mesmo uma tragédia em espetáculo, transformando o funeral de JFK num longa-metragem perfeito para ficar eternizado na memória do público, na tradição das melhores narrativas de Hollywood. E isso nada teve a ver com dor.

Natalie Portman Jackie 16 final

That’s all showbiz! A despeito do seu sofrimento pessoal, Jackie Kennedy tirou proveito da morte do marido para encenar um funeral como um grande espetáculo a ser digerido pelas massas! (Foto: Divulgação)

Natalie Portman Jackie 17 final

Com seu véu cobrindo a face sofrida, de esposa traída inúmeras vezes pelo mulherengo John F. Kennedy, Jackie cunhou a partir do funeral pomposo a imagem que lhe acompanharia nos mais de 30 anos seguintes: o da grande viúva do progresso, democracia e sonho americanos (Foto: Divulgação)

Natalie Portman Jackie 8 final

No longa-metragem de Pablo Larrain, fica clara a intenção do diretor em revelar a então primeira-dama dos Estados Unidos como mais do que uma mera viúva, mas uma mulher ciente do seu tempo e afeita ao espetáculo, que aproveita a morte do presidente americano não apenas para homenageá-lo no mesmo patamar de Abraham Lincoln, mas usar o incidente para deixar sua marca na história (Foto: Divulgação)

Em geral, Larrain – que também dirigiu neste mesmo ano o ótimo Neruda“, outra biografia que traz Gael Garcia Bernal como o poeta chileno – acerta na mão, amparado pela boa direção de arte de Jean Rabasse e o ótimo figurino de Madeline Fontaine, que concorre ao Oscar e recria não apenas a atmosfera da época como reproduz com requinte looks que foram imortalizados no shape da primeira-dama, alguns de Oleg Cassini (1913-2006), seu costureiro favorito.

Natalie Portman Jackie 5 final

Figurino bacanudo: a reprodução do estilo da eterna Jackie durante o período na Casa Branca é um dos atrativos da produção, com looks icônicos apresentados ao longo da projeção (Fotos: Divulgação)

Somente uma ressalva: que Natalie Portman é boa atriz ninguém duvida. Não é uma Charlize Theron, mas manda muito bem. Talvez, porém, não merecesse ter concorrido ao Globo de Ouro de ‘Melhor Atriz Dramática’ (perdeu para Isabelle Huppert) e agora ao Oscar, ao lado desta, Meryl Streep, Emma Stone e Ruth Negga. Ela não está mal, mas pouco à vontade num papel no qual o mito facilmente engoliria intérprete. Mesmo experiente, a atriz acaba mastigada ao contracenar com Peter Saarsgard, Billy Crudup, Beth Grant, Richard E. Grant e, sobretudo, John Hurt, morto no último final de semana.

Natalie Portman Jackie 14 final

Em sua mais recente aparição nas telas, John Hurt interpreta um padre convocado como ouvido amigo pela primeira-dama Jackie (Natalie Portman). Nas cenas em que aparece, ele engole a atriz israelense da mesma maneira que, segundo o filme em sua interpretação da vida real, a esposa de JFK teria canibalizado os holofotes do assassinato em prol da sua própria posteridade (Foto: Divulgação)

Deixe seu comentário

Seu email não será publicado.