Foi uma semana estranha. Começou com o Museu Nacional, no Rio, em chamas com seu acervo de memórias das histórias natural, do Brasil e do mundo virando fumaça. Avançou com a morte de uma atriz, não apenas uma de muitas que se vão toda semana, mas Beatriz Segall (leia mais aqui), cujo personagem-emblema, a vilã master da história da televisão brasileira Odete Roitman, permanece na cabeça de todos atravessando gerações, enquanto sua intérprete eternamente associada a ela foi entrando numa espécie de fumacê da ribalta, com a presença na telinha escasseando nos últimos 20 anos. E praticamente termina com a facada recebida pelo candidato à presidência da república Jair Bolsonaro sendo esfaqueado em praça pública durante um ato de campanha em Juiz de Fora, Minas, na véspera da comemoração da Independência. O que todas essas coisas trazem em comum, além das imagens que ficaram ou vão ficar para sempre nas nossas lembranças? A questão da responsabilidade, ou da falta dela, num país onde quebrar a janela do vizinho na hora de jogar futebol na pelada de rua e sair correndo para não arcar com o prejuízo se tornou façanha brejeira digna de ser celebrada. Curiosamente, tudo isso aconteceu na semana em que estreou nos cinemas o longa-metragem brasileiro “Ferrugem“, de Aly Muritiba (do ótimo “Para minha amada morta“, 2015), grande vencedor do Festival de Gramado dias antes, arrebatando ‘Melhor Filme’, ‘Melhor Roteiro’ e ‘Melhor Desenho de Som’, além de ter sido indicado ao Grande Prêmio do Júri no Sundance Festival.

A semana começou catártica, com os brasileiros – e em especial os que habitam o Rio – assistindo atônitos a destruição do Museu Nacional, fundado há 200 anos por D. João VI e sediado no palácio histórico onde a família imperial brasileira residia. Seu patrimônio de valor incalculável, entre múmias egípcias,  ossadas de dinossauros, documentos e um acervo etnográfico único virou pó. A sensação dos cariocas, que vivem um momento de desencanto, foi de que seu passado foi riscado do mapa (Foto: Reprodução)

O diretor Aly Muritiba (segundo à direita) celebra com parte do elenco de “Ferrugem” a vitória no Festival de Gramado (Foto: Divulgação)

Confira abaixo o trailer oficial de “Ferrugem” (Divulgação):

À primeira vista, “Ferrugem” trata de um assunto que anda tomando aos poucos conta da dramaturgia por sua relevância: o estrago que o vazamento de questões íntimas nas redes sociais pode causar na reputação de uma pessoa. Na narrativa, a jovem estudante Tati (a competente Tifanny Dopke) perde seu celular numa excursão do colégio e tem uma sextape que ela havia filmado com o ex-namorado, salva no smartphone, vazada nas mídias sociais. Motivo de chacota e sofrendo toda espécie de bullying e assédio, a personagem se vê em meio a uma crescente sensação de isolamento (que a fotografia e o som brilhantemente acentuam)  e, acuada, acabará sendo tragada pelo desespero resultante desse indesejado status de celebridade instantânea.

No novo longa de Aly Muritiba, premiado no Festival de Gramado e bem recebido no de Sundance, a jovem (Tifanny Dopke) vê sua vida desmoronar quando tem o celular perdido e um vídeo pornô feito com o namorado viraliza na internet (Foto: Divulgação)

Em duas partes, o filme, que prometia se restringir ao assunto da exposição na rede, dá uma guinada ao se concentrar no crush de Tati, Renet (Giovanni De Lorenzi, de “Deus salve o rei“, em atuação contida, mas densa), que pode ter sido o responsável por vazar o vídeo erótico na internet. Recluso na casa de praia da família ao lado da irmã caçula, do primo metido a malandro e do pai, o professor da escola Davi (Enrique Diaz), ele se divide entre o medo de encarar a responsabilidade acerca de uma possível escolha e o desejo de enfiar a cabeça no buraco, tal qual um avestruz, para não assumir o que pode ter feito. Protegido pelo pai, que para evitar as consequências opta pelo caminho fácil da proteção e da dissimulação, ele vai ter suas crenças abaladas com a chegada da mãe Raquel (Clarissa Kiste, um escândalo), que abandonou a família para viver um novo amor e está grávida, trazendo uma intimação para o filho depor na polícia.

Em “Ferrugem”, Renet (Giovanni De Lorenzi) é o adolescente que precisa encarar a responsabilidade de seus atos perante a sociedade, após sua colega de escola e flerte tomar uma atitude desesperada face a um episódio que denegriu sua imagem pública nas redes sociais   (Foto: Divulgação)

Com ótima direção de arte que investe no contraste de pálidos cinzas azulados com marrons avermelhados, os tons ferruginosos que aludem ao título do filme, o longa é uma porrada no estômago. Não é sobre mídias digitais, mas sobre a ferrugem que se deposita em nossas vidas decorrente das inúmeras camadas que se acumulam, fruto de empurrar a responsabilidade com a barriga. Fato que se tornou (péssimo) hábito difundido no Brasil e que se revela em sintonia com tudo aquilo que foi visto nas manchetes dessa semana.

A direção de arte lacônica e a fotografia sombria de “Ferrugem” destacam o universo inquietante dos dois protagonistas. Essa tristeza retrata, subliminarmente, a atmosfera de desencanto que os brasileiros vivem atualmente num país que perdeu o rumo, a responsabilidade e os valores, condenados por sua população em maior instância, mas que, diante das mazelas diárias, acabam também sendo reproduzidos por todos no dia a dia, sem que se perceba (Foto: Divulgação)

Ninguém sabe de quem é a responsabilidade do descaso com o palácio da Quinta da Boa Vista que levou ao fogaréu. A UFRJ, sob cuja jurisdição o Museu Nacional se encontra, tira o corpo fora e reclama da falta do repasse de verbas. Um governo que não liga para a cultura põe culpa em governos anteriores que não ligavam para a cultura. E dane-se o patrimônio cultural.

Em “Vale Tudo“, a empresária Odete Roitman representa uma classe dominante que irresponsavelmente saqueia o Brasil para depois se divertir em farras parisienses com guardanapos na cabeça. Na novela, seu assassinato por Leila (Cassia Kis) terminou com a fuga desta, ao lado do marido e filho num jatinho, para não assumir a responsabilidade, em cena que culminou numa frondosa banana para a nossa terra.

E todo mundo quer saber se a responsabilidade final acerca do incidente com Bolsonaro é mesmo do tal do Adélio Bispo de Oliveira, ou se tem alguém por trás. Todos os partidos lucram com o atentado, caso o candidato de extrema direita saia do páreo, e a vítima também pode ganhar uns bons votos se posar de mártir, o que leva à dúvida, até pela forma operística com que recebeu a facada, se ele não poderia ter “produzido” o incidente, considerando o risco. Loucura não falta, e há que fala dessa possibilidade nas mídias sociais. Black Jack e façam suas apostas.

Limada da TV nas últimas décadas, Beatriz Segall morreu no meio da semana e o assunto emocionou o país, espremido entre o incêndio do Museu Nacional e o atentado ao candidato à presidência Jair Bolsonaro. Sua personagem mais famosa, a inescrupulosa empresária Odete Roitman, sintetiza a crise moral que hoje assombra os brasileiros (Foto: Reprodução)

Violência gera violência: Em ato de campanha pelo PSL, Jair Bolsonaro (de camiseta amarela) – conhecido pelo seu discurso radical de ódio e segregação – é socorrido após ser esfaqueado em Juiz de Fora (MG), nesta quinta-feira (6/9). O presidenciável foi levado para o hospital e agora se discute a responsabilidade pelo ocorrido, apesar de o agressor ter sido identificado e detido (Foto: Reprodução)

Por isso, a ida ao cinema para conferir “Ferrugem” é fundamental. Vale para fechar a frase do galã de Hollywood nos anos 1970 e 1980, Burt Reynolds, maior bilheteria das telas durante cinco anos, de 1978 a 1982, e morto nessa quinta aos 82 anos. Preferindo flanar pelo lugar comum, evitou pegar papeis de destaque no auge, interpretando sempre o mesmo personagem do policial ou do caubói durão. Quando ficou maduro e quis experimentar outros voos artísticos, ninguém o chamava para atuar. Reconhecendo a própria responsabilidade sobre os rumos da carreira, declarou: “Não me abri a novos roteiristas porque não estava interessado em desafios como ator. Como resultado, perdi muitas oportunidades de mostrar que podia interpretar papéis sérios. Na hora em que finalmente acordei e tentei corrigir isso, ninguém me deu uma chance”.  Esse assumiu sua responsabilidade.

No mesmo dia do atentado a Bolsonaro, o mundo recebeu a notícia da morte do antigo galã dos anos 1970 e 80, Burt Reynolds, que assumiu a responsabilidade por sua carreira ter naufragado nos últimos 30 anos, após uma série de escolhas equivocadas. Apesar da distância entre o Brasil e Hollywood, seu exemplo de reconhecimento da responsabilidade por suas decisões pode ser útil a um país onde todos fazem o que querem, mas não pretendem arcar com o ônus (Foto: Reprodução)

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