Grande parte dos críticos e certamente quase a Humanidade inteira consideram “E.T. O Extraterrestre” (1982) um dos melhores filmes sobre a infância, seus afetos, sonhos, solidão e… terrores. Imagine então se o adorável Elliott e seus irmãos Michael e Gertie, que dão uma lição aos adultos ao amar o “outro” e o “diferente” quando acolhem e devolvem o E.T. para os seus pais dos confins do Universo, reaparecessem agora como Sammy, Reggie e Natalie Fabelman, os quais – por sua vez – seriam a projeção especular de Steven, Ann, Sue e Nancy Spielberg? Esse jogo de espelhos entre personagens da filmografia de Steven Spielberg, os Fabelmans de sua autobiografia ficcionalizada lançada na semana passada nas salas de cinema do Brasil e a verdadeira família do diretor pode não parecer evidente para grande parte do público. Entretanto, Spielberg sempre admitiu existir relações diretas e metafóricas entre a sua vida íntima e a concepção dos seus personagens. O E.T., por exemplo, foi inspirado num amiguinho imaginário que ele criou durante o colapso do casamento dos seus pais, Leah e Arnold Spielberg.

E foi exatamente em respeito à privacidade deles que Steven protelou a produção de “Os Fabelmans“. Se desde 1999 o diretor acalentava um filme sobre sua infância e juventude, ele precisou esperar pacientemente o falecimento de Leah em 2017 e de Arnold em 2020 para concretizar esse mergulho no doloroso processo de encarar os fantasmas da infância para tornar-se adulto enquanto observava a dissolução da própria família literalmente através das lentes das suas câmeras caseiras.

Em “Os Fabelmans”, Spielberg finalmente desmontou com doses equilibradas de amargura, humor e afeto a ilusão da “família feliz”, enquanto nas profundezas da sua alma artística preparava intuitivamente o seu ingresso na “fábrica de ilusões” de Hollywood que ajudou a refundar com histórias de apelo universal, mas fecundadas nos labirintos das suas mágoas, alegrias e amor incondicional aos filmes.

OS SPIELBERGS versus OS FABELMANS

O casal Leah e Arnold Spielberg com o bebezão Steven no final dos anos 1940. A família Spielberg mudou frequentemente de casa assim como os Fabelmans: de Ohio para Arizona, depois para o condado de Santa Clara, na Califórnia, localidades de uma América profunda em que Spielberg sentiu na própria pele qual era o lugar reservado para um judeu no contexto de uma sociedade de hegemonia WASP. (Imagem: Reprodução)
Cena do filme: Mitzi Fabelman, entre o marido Burt e o melhor amigo do casal Bennie. Spielberg declarou recentemente que “quando somos crianças, há coisas que não queremos saber ou ver sobre a vida íntima dos nossos pais, principalmente os seus sofrimentos”. Assim como na ficção, sua mãe Leah Spielberg, enredada num casamento insatisfatório, envolveu-se meio platonicamente com o melhor amigo do seu marido, Bernie Adler, o qual Steve e suas irmãs viam como uma espécie de tiozão. (Imagem: Reprodução)
Arnold e Leah ao lado do filho Steven, em 1989. Embora fracassados no casamento e com visões de vida incompatíveis, entre Arnold e Leah existia uma poderosa ligação afetiva. Em entrevista à revista Time, Spielberg confessou ter espiado no meio da noite brigas violentas entre os pais que acabavam com Arnold prostrado, em soluços, entre os braços de Leah (Imagem: Reprodução)

MATER SEMPER CERTA EST

Este velho ditado latino parece retratar à perfeição a relação mágica que existia entre Spielberg e sua mãe. Na ficcionalização da infância e da juventude de Spielberg em “Os Fabelmans”, Mitzi é retratada como uma mulher dotada de sensibilidade e talento artísticos desperdiçados em nome de um casamento convencional. E foram elas – Mitzi/Leah – que inspiraram e apoiaram apaixonadamente Sammy/Steven a buscar no cinema os seus destinos. De fato, as mães têm sempre razão. 

Leah Spielberg e Mitzi Fabelman abortaram as suas carreiras como concertistas para se enquadrarem a um casamento de feitio patriarcal, mas a música permaneceu na vida delas como um território de sobrevivência emocional. Aliás, são as peças de piano tocadas por Mitzi – “Trois gymnopédies” de Erik Satie e o célebre 2º movimento do concerto para oboé em dó menor de Alessandro Marcello – responsáveis por duas das sequências mais tocantes do filme. (Imagem: Reprodução)
Apelidado de Mr. Showmanship (Sr. Espetáculo), o pianista e cantor americano Liberace (1919-1987) foi um dos artistas mais bem pagos do showbiz durante décadas. “Exageradas” é um adjetivo muito pobre para qualificar as suas performances de clássicos populares em pianos cravejados de pedras preciosas sobre o qual eram colocados gigantescos candelabros barrocos. Seus figurinos dariam inveja a Luís 14, o Rei-Sol. Pela sua virtuosidade e excentricidades, Liberace era amado pelo grande público, inclusive os Fabelmans. (Imagem: Reprodução)

LEAH, MITZY E ISADORA

Steven Spielberg sempre descreveu sua mãe Leah como uma mulher expansiva que não cabia no papel de mãe-e-esposa-modelo. Era uma artista nata que se deliciava em entreter as pessoas que a cercavam, muitas vezes vestida extravagantemente. Foi a pessoa mais influente na vida do diretor. Por isso, Spielberg roteirizou para Mitzi uma das cenas mais belas do filme, aquela em que toda a família Fabelman e Bennie vão acampar. À noite, ao redor de uma fogueira, Mirtzi, coberta apenas por uma bata branca transparente, entrega-se a uma dança no estilo livre e intuitivo da célebre coreógrafa americana Isadora Duncan (1877-1927), constrangendo os conservadores Fabelmans. Não temos aqui essa cena, mas temos um pouco do estilo libertário de dançar de Isadora. 

Assim como a personagem de Mitzi Fabelman, Leah Spielberg nunca abandou o penteado curto com franja, uma releitura do corte Chanel que voltou à moda no final dos anos 1940. A partir de então, o short hair cut vai se consagrar nos looks das estrelas de Hollywood como Jane Wyman (1917-2007), ex-sra. Ronald Reagan e rainha dos melodramas do diretor Douglas Sirk que abarrotavam os cinemas nos anos 1950. (Imagem: Reprodução)

AMERICAN WAY OF TECHLIFE

IBM, General Electric, Kodak, RCA, Frigidaire… Os roteiristas e os diretores de arte de “Os Fabelmans” rechearam as cenas de menções às grandes marcas americanas, icônicas até hoje e presentes no dia a dia do invejado padrão de vida material dos Estados Unidos nos anos 1950, apogeu do american way of life. 

Este anúncio de 1953 da IBM expressa muito bem o boom tecnológico no mundo ocidental durante a década de 1950, especialmente nos Estados Unidos em que a figura de engenheiros altamente preparados – como o pai de Spielberg e o de Sammy Fabelman, no filme – construíam a sociedade tecnocrática em que vivemos até hoje. Arnold Spielberg, assim como Burt Fabelman são descritos por Steven, na vida e no filme, como talentosos engenheiros eletrônicos da IBM, guiados por uma visão realista, prática e instrumental da vida. (Imagem: Reprodução)
Em várias passagens de “Os Fabelmans”, Steve Spielberg lança um olhar zombeteiro sobre o discurso publicitário risonho, otimista e superlativo da publicidade da época como o slogan “General Electric brings more light to your life” ironizado no filme. (Imagem: Reprodução)
Um imenso letreiro com a logomarca do Cinerama é visto ao fundo de uma rua numa das cenas de “Os Fabelmans”. Mais um dos “easter eggs” – mensagens, citações e até homenagens meio ocultas no interior de uma cena – que Spielberg vai espalhando ao longo do filme. Neste caso, para assinalar o advento das telas de cinema gigantes durante os anos 1950 como o Cinerama e o seu colossal arco de projeção de 146 graus, uma das cartadas dos estúdios hollywoodianos frente à ameaça da TV. (Imagem: Reprodução)
Filmar em qualquer condição desde a adolescência literalmente “salvou” a vida de Steven Spielberg, não só porque através das suas primeiras câmeras e lentes Bolex 8mm ou Nikkor 16mm (precursoras da Nikon) ele deu curso ao seu talento extraordinário e visionário, mas também porque o cinema e os filmes proporcionaram-lhe um lugar no mundo e um salvo-conduto numa sociedade extremamente antissemita. (Imagem: Reprodução)

SPIELBERG VAI AO CINEMA

O filme-epifania na vida de Spielberg sempre foi, declaradamente, Lawrence da Arábia” (1962), de David Lean. Todavia, o superespetáculo de Cecil B. DeMilleO maior espetáculo da Terra” (1952) assumiu esse papel para o pequeno Sammy no filme “Os Fabelmans”. DeMille (1881-1959) encarnou o protótipo do diretor cinematográfico com calças largas enfiadas em botas de cano longo e megafone. Foi um dos fundadores de Hollywood num momento em que a futura Meca do Cinema era dominada por diretores visionários como David W. Griffith, Mack Sennett e Charlie Chaplin antes da tomada dos estúdios pelos produtores-executivos. Spielberg, de certo modo, repetirá esse papel seminal de DeMille na segunda geração de cineastas-fundadores da Nova Hollywood no início dos anos 1970. A sequência abaixo é exatamente aquela incluída nos minutos iniciais de “Os Fabelmans”.

Aos 76 anos, Steven Spielberg já viveu diretamente grande parte dos 130 anos da história do cinema a ponto de se tornar um dos mais ativos colecionadores e restauradores de obras antigas da Sétima Arte em perigo de desaparecimento. Em 1969, ele fundou o Steven Spielberg Jewish Film, um instituto que coleciona, restaura e preserva a memória visual da diáspora judaica. O seu engajamento contra o racismo enraizado nos Estados Unidos em relação a judeus e negros expressa-se em muitas obras suas e também no resgate de filmes clássicos do passado como a versão de 1927 de “A cabana do Pai Tomás“, superprodução da Universal dirigida pelo ator Harry Pollard (que – aliás – fez uma interpretação black face do próprio Pai Tomás, em 1913), relembrado em “Os Fabelmans” no hilário episódio com o bizarro Tio Boris. (Imagem: Reprodução)
Uma das sequências mais divertidas de “Os Fabelmans” é aquela em que vemos Sammy tentando filmar a sua versão caseira de “A múmia” (1932), um dos clássicos filmes de horror da Universal, dirigido com tons expressionistas pelo alemão refugiado em Hollywood Karl Freund (1890-1969). Para sua “obra” mambembe, o aprendiz de diretor mobiliza basicamente dois recursos disponíveis em casa: as suas irmãs e muitos rolos de papel higiênico. Para rir muito! (Imagem: Reprodução)
Outro “easter egg” colocado no filme por Spielberg é o cartazete que aparece pregado num dos equipamentos de edição de Sammy promovendo a superprodução da Fox “Captain from Castile” (1947), capa-e-espada fotografado em deslumbrante technicolor e veículo para o maior astro do estúdio Tyrone Powell. Tremendo sucesso na época do lançamento, continuou a ser reprisado nas matinês para a alegria dos adolescentes dos anos 1950, como Spielberg. (Imagem: Reprodução)
O capítulo final de “Os Fabelmans” é marcado pela homenagem que Spielberg faz para “o maior diretor de todos os tempos”, como é superlativamente qualificado o lendário John Ford (1894-1973), um dos mais influentes criadores da história do cinema ao longo de uma carreira de cinco décadas e 140 filmes. Aqui o vemos entre James Stewart e John Wayne no set de “O homem que matou o facínora” (1962), clássico citado diversas vezes no filme. O encontro de Spielberg com Ford de fato aconteceu nas circunstâncias insólitas narradas em “Os Fabelmans”, mas que não detalharemos aqui para não recairmos em spoiler. (Imagem: Reprodução)

ANOS 1960: A DÉCADA QUE MUDOU TUDO. INCLUSIVE STEVEN SPIELBERG

Os anos 1960 marcaram a passagem de Steven Spielberg da adolescência para a vida adulta. Esses anos também corresponderam à preparação do terremoto sociocultural que iria sacudir o mundo no final da década e simbolizado pelas jornadas de 1968. Já 1969 testemunha a irrupção da Nova Hollywood cuja segunda geração de diretores será protagonizada pelos primeiros baby boomers e pela “molecada” formada nas escolas de cinema, como Scorsese, Spielberg, George Lucas, John Milius, Paul Schrader, Brian de Palma e Terrence Malick.  “Walk on by“, hit de Burt Bacharach e Hal David, lançado e eternizado por Dionne Warwick em 1964, parece estar em alta na Hollywood de hoje. O diretor Jordan Peele abre o seu filme “Não! Não olhe” (2022) com essa mesma canção que Spielberg utiliza para ambientar o ingresso da narrativa de “Os Fabelmans” nos anos 1960.

DEBOCHANDO DO “BEACH PARTY GENRE

O olhar ao mesmo tempo cômico e amargo que Spielberg lança sobre a sua própria juventude na Califórnia encontra um dos seus melhores momentos na longa sequência em que ele satiriza os “filmes de praia”, subgênero cinematográfico conhecido como “beach party” que arrastou milhões de teenagers às salas de cinema nas férias de verão entre 1960 e 1967, e cuja receita mistura comédia com intrigas amorosas de jovens dourados pelo sol, sexo inocente, rock bem-comportado e cenários da cultura surf da Costa Oeste. Curta (sem nenhum constrangimento) a cantora Donna Loren arrasando em “A praia dos amores” (1963), produzido pela American International Pictures, uma das maiores fábricas de filmes “B” da época. 

“Os Fabelmans” se encerra com Sammy finalmente ensaiando seus primeiros passos na Meca do Cinema, precisamente nos estúdios da Universal onde posteriormente Spielberg instalaria a sua produtora Amblin Entertainment. Na foto vemos um time de lindas recepcionistas dos tours pela Universal City, em 1964. Depois de exercer variados ofícios cinematográficos, Spielberg debuta em 1969 como diretor de uma das três histórias de horror do longa-metragem televisivoNight Gallery. No episódio intitulado “Eyes”, Steven dirigiu nada menos do que uma das maiores divas da Era de Ouro de Hollywood, Joan Crawford. A veterana estrela ficou inicialmente assustada com a perspectiva de ser conduzida por um completo iniciante. Mas logo percebeu que estava enganada: “Assim que comecei a trabalhar com Steve, tornou-se óbvio para mim e provavelmente para todos, que ele era um jovem gênio”. (Imagem: Reprodução)

*Por Flávio Di Cola

Foto destaque: Divulgação

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