Nos últimos tempos, andou pipocando na mídia a recusa de Osmar Prado em relação alguns papeis em novelas, como em “Pantanal”. Desde quando a Globo passou a dispensar a prata da casa, oferecendo contratos por obra certa, tem sido comum atores, sobretudo veteranos com tempo considerável de estrada – daqueles que seguram teledramaturgia nas costas –, não se afinarem com as novas condições de trabalho e Osmar é um deles. A prova de que o paulista, 76 anos e 66 de carreira, está certo pode ser conferida na peça “O Veneno do Teatro”, que depois de rodar algumas capitais do Brasil está no Teatro Firjan Sesi, no Rio, em curtíssima temporada (infelizmente!) até dia 2 de junho.

Escrito nos anos 1970 pelo espanhol Rodolf Sirera, o texto estabelece um tratado sobre poder e natureza humana, com requinte de crueldade e cheio de duplos sentidos, que esbarra em obras seminais como “Salò ou os 120 dias de Sodoma” (1975), epíteto do legado de Pier Paolo Pasolini inspirado no livro do Marquês de Sade, e “Ligações Perigosas”, de Choderlos de Laclos. Nestes, a aristocracia submete suas vítimas a experimentos psicológicos sem compaixão, a ponto de desumanizar os objetos de seus estudos em prol de uma fria sede de conhecimento que maquia o sadismo e o tédio de um existência vazia. Seria incerto afirmar que a obra de Sirera, habilmente conduzida pelo pulso firme do diretor Eduardo Figueiredo, se reduz apenas a esta leitura, quando o rico texto possibilita diferentes camadas de interpretação, a começar pela primeira parte onde, neste jogo entre um marquês (Osmar Prado) que convida um ator de prestígio (Maurício Machado) ao seu palacete para propor-lhe atuar em uma peça de sua própria autoria, o autor se concentra em apresentar a arte como catapulta ao poder nos paradigmas consolidados no Renascimento e reafirmados como sentido de refinamento no Iluminismo.

Nesse embate entre os dois personagens em jogos manipulatórios, a natureza humana diante de sentimentos como a vaidade, a soberba e o pavor funciona como metalinguagem para o ofício do teatro, capaz de proporcionar armadilhas tanto quanto na vida real a ponto de, em determinado momento, o público questionar se as palavras proferidas pelos dois atores se referem à realidade ou à ficção.
Brilhante, Osmar Prado pinta e borda no papel usando todo o seu aparato – expressões faciais, movimentação corporal, projeção de voz, silêncios, pausas – à máxima potência para flanar da sutileza à objetividade crua em contraponto a Maurício Machado que, por interpretar um ator de palco à antiga nessa peça atemporal, mas ambientada no passado, pode se permitir a um histrionismo antinatural. É a beleza dessas duas interpretações distintas, mas tão complementares quanto necessárias às significações propostas pela metalinguagem do texto, que tornam o resultado tão instigante.

Kleber Montanheiro acerta no figurino, mas brilha o cenário de época, literal, mas com intervenções cênicas que remetem ao exercício do palco nesta peça que procura fundir ficção com realidade através de uma única visão de mundo que desnuda as convenções sociais. A luz de Paulo Denizot e o desenho de som de Anderson Moura contribuem adequadamente para esta proposta cirúrgica, assim como a trilha sonora de Guga Stroeter, que acerta na música ao vivo Matias Roque Fideles, um achado.

Aproveite o curto tempo que ainda tem pela frente para não perder essa pérola que discute a atuação no palco e na vida em dias banais, nos quais participantes de reality shows viram astros na televisão, famosos são famosos porque são famosos e idiotas ganham voz nas redes sociais.
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