Foi como se a chuva houvesse lavado a alma daqueles que não toleram invencionices forjadas por publicitários para alavancar artistas no Super Bowl. Praticamente um mês e meio após a morte de outro artista de primeríssima grandeza – David Bowie – e quase duas semanas após Beyoncé simular engajamento político na sua bombástica aparição no evento de maior audiência da televisão norte-americana (para uma semana depois dar as caras em versão adocicada num Grammy de fast food), o temporal anunciado baixou às portas do Maracanã, arena eleita para a apresentação dos Rolling Stones na Cidade Maravilha, nesta noite de sábado (20/2), para uma plateia de cerca de 66 mil pessoas, ávida por devorar sucessos neste show da turnê “Olé“, que veio do Chile, Argentina e Uruguai e ainda segue para São Paulo e Porto Alegre. Apesar da lavagem inicial, o menu foi degustação digna de uma Festa de Babette, daqueles rega-bofes sonoros que ficam no Guia Michelin da memória.
A chuva ainda comia solta na apresentação do Ultraje a Rigor, banda nacional eleita como canapé para abrir o apetite. Líder do grupo e notório crítico ao PT, o vocalista Roger Moreira cantou amuse bouches como “Marilou“, “Inútil“ e “Sexo” e discutiu com o público que aguardava ansiosamente o prato principal e o chamou de “coxinha”, associando a turma aos glutões apoiadores do governo e disparando: “Vocês vão cair”, empunhando o dedo médio em riste naquele sinal típico e finalizando com “Nós vamos invadir sua praia“. O pé d’água serviu para expurgar os ânimos e os Stones já entraram no palco a seco, apesar do atraso de 20 minutos por problemas técnicos.

Roger Moreira, do Ultraje a Rigor, abre o show dos Rolling Stones no Maracanã: tensão entre artista e público se foi com a chuva, que limpou o terreno para uma apresentação memorável do grupo britânico (Foto: Vinícius Pereira)
Foi sopa no mel. Como um visual de mesa criada por cerimonialista para valorizar o cardápio, o quarteto dessa vez assumiu um colorido quase new wave, capaz de fazer o table designer Antonio Neves da Rocha rodopiar com a cartela de gamas. Mick Jagger, de fúcsia, capitaneou atenções, com direito a paletó com brocados e adamascados. Keith Richards assumiu o amarelo & roxo; Charlie Watts veio de canário. E, no contraponto, Ron Wood – talvez o mais vampiresco do grupo – enveredou pelo pretinho nada básico, que combina com seus cabelos preto-graúna, tipo vovô Dragon Ball Z.
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E bastou a banda começar a dedilhar os acordes para a plateia constatar o que é fazer política através do comportamento genuíno, sem afetação ou factoides. Sim, os Stones pertencem a uma era na qual papar a mídia até implicava em pantagruélicas estratégias elaboradas por gravadoras como se fossem um sofisticado suflê, mas eles vêm de outra época, quando a própria atitude lançava moda solidificando carreiras com menus consistentes – não na contramão, quando superstars se usam do big burger do estilo fácil para estabelecer sua persona artística, sem necessariamente um pingo de sinceridade e ainda que não tenham sustância suficiente para preencher uma marmita.

Megashow dos Rolling Stones no Rio: os rapazes ingleses mostram que o tempo passa e o que é bom permanece (Foto: Vinícius Pereira)

Prestes a completar 73 anos, o astro britânico continua o mesmo Mick Jagger de sempre: pintou e bordou em cena, fez biquinho com a bocarra, avançou serelepe pela passarela que ia até a área vip e saracoteou em cena como se ainda estivesse na Swinging London (Foto: Vínícius Pereira)

E, para Mick Jagger, pouco importa a ação do tempo e (felizmente) a ausência de botox: vale mesmo é aquela energia e a interação com o público (Foto: Vinícius Pereira)
Entoando pièces de resistence como “Gimme Shelter“, “Angie“, “Start Me Up“, “Midnight Rambler“ e apresentando a inevitável “Satisfaction“ na tradicional volta do final – como aquela tradicional sobremesa com vinho do porto que todo mundo conhece, mas ama –, o grupo mostrou o que é pegar o público pelo estômago num menu-degustação, típico daqueles festivais gastronômicos em que os convidados se refestelam acepipe após acepipe. E provaram que, no cardápio pop, panela velha ainda pode fazer comida boa, bastando a receita ter ingredientes orgânicos, dignos de um chef que sabe ir do ratatouille ao coq au vin com desenvoltura.
Confira abaixo mais fotos de Vinícius Pereira:
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